Regresso das estrelas Stanislaw Lem Hall Bregg é um homem sem mundo, um astronauta que regressa duma missão no espaço e encontra a Terra Irreconhecível. Apesar de só terem passado dez anos biológicos, na Terra já decorreram cento e vinte e sete. As cidades estão construídas com uma tecnologia que ele desconhece, os hábitos sociais estão completamente alterados; é ministrada aos seres huma| nos, na infância, uma droga que neutraliza os seus impulsos agressivos. Como conseguirá um astronautal — que representa o pioneirismo — adaptar-se a uma civilização onde não se corre o menor risco, onde as pessoas se tornam menos cultivadoras do prazer e da juventude, esquecendo-se der que significa sonhar ou ambicionar? Hall Bregg irá lutar por se adaptar e encontrar um lugar para si próprio. Stanislaw Lem Regresso das estrelas Publicações Europa-América — 1983 Título original: Powrót z gwiazd Título inglês: Return from the Stars Tradução do inglês por Fernanda Pinto Rodrigues Capa: arranjo gráfico de estúdios P. E. A. sobre ilustração de Tim White Editor: Francisco Lyon de Castro I Não trouxe nada comigo, nem sequer um casaco. Desnecessário — disseram. Deixaram-me ficar com a minha camisola preta: passaria. Mas tive de lutar pela camisa. Disse que aprenderia a prescindir gradualmente das coisas. Na própria rampa, sob o ventre da nave, onde nos encontrávamos empurrados pela multidão, Abs estendeu-me a mão, com um sorriso compreensivo: — Agora calma, hem? Lembrar-me-ia. Não lhe esmaguei os dedos. Estava perfeitamente calmo. Ele queria dizer mais qualquer coisa, mas eu poupei-lhe a perda de tempo: virei-lhe as costas, como se não tivesse notado nada, subi a escada e entrei. A hospedeira conduziu-me mesmo para a fente, através das filas de lugares. Eu não tinha querido um compartimento isolado. Ter-lhe-iam dito? O meu lugar desdobrou-se silenciosamente. Ela ajustou-lhe as costas, sorriu-me e afastou-se. Sentei-me. As almofadas eram tão macias que nos afundávamos nelas, como em toda a parte. As costas do meu lugar eram tão altas que quase não via os outros passageiros. Já me habituara a aceitar as cores vivas do vestuário das mulheres, mas, no caso dos homens, ainda suspeitava, irracionalmente, de afectação, e acalentava a secreta esperança de encontrar algum normalmente vestido — o que era um deplorável reflexo. As pessoas sentaram-se rapidamente; ninguém tinha bagagem. Nem sequer uma pasta ou um embrulho. Nem mesmo as mulheres, que pareciam mais do que os homens. À minha frente iam duas mulatas de peles verde-papagaio, tufadas como penas — aparentemente, aquela espécie de estilo pássaro estava na moda. Mais adiante, um casal com uma criança. Depois das ofuscantes luzes de selénio dás plataformas e dos túneis, e da insuportavelmente berrante e incandescente vegetação das ruas, a luz do tecto côncavo parecia, a bem dizer, uma suave incandescência. Como não sabia que fazer com as mãos, pu-las nos joelhos. Já estava toda a gente sentada. Oito filas de lugares cinzentos, uma brisa perfumada de abeto, um abafar das conversas. Esperava qualquer prenúncio acerca do lançamento, quaisquer sinais, a ordem para apertar os cintos, mas não aconteceu nada. Através do tecto fosco começaram a mover-se sombras ténues da frente para a retaguarda, como recortes de papel de pássaros. «Que diabo vêm a ser estes pássaros?», perguntei a mim mesmo. «Significarão alguma coisa?» Estava entorpecido da tensão para tentar não fazer nada errado. Havia já quatro dias. Começara logo no primeiro momento. Ficava invariavelmente para trás de tudo quanto acontecia e o esforço constante para compreender a mais simples conversa ou situação transformava essa tensão em algo horrivelmente semelhante ao desespero. Tinha a certeza de que acontecia o mesmo aos outros, mas não falávamos disso, nem mesmo quando estávamos juntos, sozinhos. Limitávamo-nos a gracejar acerca do nosso músculo, da força excessiva que permanecia em nós — e na verdade precisávamos de estar atentos a esse aspecto: ao princípio, quando me queria levantar, saltava direito ao tecto, e qualquer objecto que segurasse parecia feito de papel, vazio. Mas aprendi depressa a controlar o corpo. Ao cumprimentar as pessoas, já lhes não esmagava os dedos. Era uma coisa fácil de conseguir, mas, infelizmente, a menos importante. O meu vizinho da esquerda — corpulento, bronzeado, com olhos que brilhavam de mais (de lentes de contacto?) — desapareceu de súbito. Os lados do seu lugar expandiram-se e subiram, a formar uma espécie de casulo com o formato de um ovo. Algumas outras pessoas desapareceram em cubículos semelhantes. Sarcófagos inchados. Que faziam eles? Mas eu encontrava coisas desse género a toda a hora e tentava não olhar embasbacado, desde que me não dissessem directamente respeito. Por curioso que pareça, tratava cora indiferença as pessoas que ficavam boquiabertas a olhar para nós, ao saberem quem éramos. O seu espanto não me importava muito, embora apercebesse imediatamente de que não havia nele a ínfima admiração. Quem despertava a minha antipatia eram os que olhavam por nós, o pessoal da Adaptação. Sobretudo o Dr. Abs, porque me tratava como um médico trataria um paciente anormal, fingindo — e muito bem — que estava a lidar com alguém perfeitamente normal. Quando isso se tomava impossível, gracejava. Estava farto da sua abordagem directa e da sua jovialidade. Se o interrogassem a tal respeito (ou, pelo menos, eu assim pensava), o homem da rua diria que Olaf ou eu éramos semelhantes a ele, não nos consideraria assim tão diferentes dele; o que era invulgar era apenas a nossa experiência passada. Mas o Dr. Abs, e todos os outros funcionários da Adaptação, estavam melhor informados, sabiam que nós éramos, decididamente, diferentes. Essa diferença não constituía nenhuma distinção, mas sim, apenas, uma barreira à comunicação, à mais simples troca de palavras, irra! ao mero abrir de uma porta, uma vez que os puxadores tinham deixado de existir havia… enfim, havia 50 ou 60 anos! A partida foi inesperada. Não houve absolutamente nenhuma mudança na gravidade, nenhum som chegou ao interior hermeticamente fechado, as sombras continuaram a flutuar serenamente no tecto. Deve ter sido um hábito estabelecido há muitos anos, um velho instinto, que me disse que em dado momento estávamos no espaço. Pois tratou-se de uma certeza e não de uma suposição. Mas havia mais qualquer coisa que me ocupava. Estava meio deitado, com as pernas estendidas, imóvel. Tinham-me deixado fazer a minha vontade com muita facilidade. Nem Oswann se opusera muito à minha decisão. Os argumentos em contrário que ouvira de Abs tinham sido inconvincentes — eu próprio poderia ter arranjado melhores. Só que tinham insistido numa coisa: que cada um de nós voasse separadamente. Nem sequer tinham ficado aborrecidos comigo por ter levado Olaf a rebelar-se (sim, porque se não fora eu ele teria sem dúvida nenhuma concordado em ficar mais tempo). Isso tinha sido estranho. Eu esperara complicações, qualquer coisa que estragasse o meu plano no último momento, mas não acontecera nada e ali estava, a voar. Aquela viagem decisiva terminaria dentro de 15 minutos. Era evidente que a minha intenção, assim como a maneira como me apresentara perante eles para defender uma partida antecipada, os não surpreendera. Deviam ter catalogada uma reacção desse tipo, devia tratar-se de um padrão de comportamento característico de um cajmeirão como eu, designado por um número de série apropriado nas suar tabelas psicotécnicas. Tinham-me autorizado a voar. Porquê? Porque a experiência lhes dissera que não conseguiria desenvencilhar-me sozinho? Mas como poderia isso ser, se toda aquela fuga para a «independência» envolvia voar de um terminal para outro, onde alguém da secção terrestre da Adaptação estaria à minha espera e tudo quanto eu teria de fazer seria encontrá-lo num lugar antecipadamente combinado? Aconteceu qualquer coisa. Ouvi vozes que se erguiam. Debrucei-me do meu lugar. Diversas filas à minha frente uma mulher empurrou a hospedeira que, com um movimento lento e automático, como que resultante do em purrão — embora este não tivesse sido assim tão forte —, recuava pela coxia gbaixo, enquanto a mulher repetia: «Não consinto! Não deixes aquilo tocar-me!» Não pude ver a cara de quem falava. O companheiro puxava-lhe o braço e dizia qualquer coisa para a acalmar. Qual seria o significado daquela pequena cena? Os outros passageiros não lhe ligaram a mínima importância. Pela centésima vez senti-me possuído por um sentimento de incrível alienação. Levantei a cabeça e olhei para a hospedeira, que parara a meu lado e sorria como antes. Não se tratava de um sorriso meramente exterior, de polidez facial, de um sorriso destinado a ocultar um incidente desagradável. Ela não fingia estar calma: estava de facto calma. — Deseja beber alguma coisa? Prum, extran, morr, cidra? Tinha uma voz mèlodiosa. Abanei a cabeça. Desejei dizer-lhe qualquer coisa agradável, mas só me ocorreu a pergunta estereotipada: — Quando aterramos? — Dentro de seis minutos. Deseja comer alguma coisa? Não precisa de ter pressa. Pode ficar depois de termos aterrado. — Não, obrigado. Afastou-se. No ar, mesmo defronte da minha cara, contra as costas do lugar da minha frente, acendeu-se a palavra estrato, como se tivesse sido escrita pela ponta incandescente de um cigarro. Inclinei-me para a frente, para ver de onde vinha o letreiro, e encolhi-me. A parte de trás do meu lugar acompanhou o movimento dos meus ombros e segurou-me elasticamente. Eu já sabia que o mobiliário se moldava a cada mudança de posição, mas esquecia-me constantemente. Não era agradável. Dava a impressão de CâSweiv que alguém vigiava todos os meus movimentos. Quis regressar à posição anterior, mas aparentemente exagerei: o lugar interpretou-me mal e estendeu-se como uma cama. Levantei-me de um pulo. Aquilo era idiota! Mais domínio. Sentei-me, finalmente. As letras encarnadas de estrato tremeram e transformaram-se noutras: terminal. Nenhuma sacudidela, nenhum aviso, nenhum apito. Nada. Uma voz distante ecoou como a cometa de um postilhão, quatro portas ovais abriram-se ao fundo da coxia e entrou de jacto na nave um ruído que se sobrepôs a todos os outros, como o do mar, e abafou por completo as vozes dos passageiros que se levantavam dos seus lugares. Permaneci sentado enquanto os outros saíam — uma fila de silhuetas que pareciam flutuar diante das luzes exteriores, verdes, lilases, purpúreas… Um verdadeiro baile de máscaras. Depois desapareceram e eu levantei-me. Maquinalmente, endireitei a camisola. Não sabia porquê, mas sentia-me estúpido com as mãos vazias. Pela porta aberta entrava ar mais fresco. Voltei-me. A hospedeira estava parada junto da parede divisória, sem lhe tocar com as costas. Tinha no rosto o mesmo sorriso tranquilo, dirigido às filas de lugares vazios que, por si mesmos, começavam a enrolar-se, a dobrar-se como flores carnudas, Uns mais depressa, outros mais devagar. Esse era o único movimento que acompanhava o rugido prolongado e circundante que continuava a jorrar pelas aberturas ovais e recordava o mar. «Não deixes aquilo tocar-me!» De súbito, pareceu-me que no sorriso dela havia algo errado. Disse-lhe, da saída: — Adeus… — Entendido. Não apreendi logo o significado daquela resposta, tão peculiar nos lábios de uma bonita jovem, pois ouvi-a quando estava de costas voltadas, meio saído da porta. Fiz menção de apoiar o pé num degrau, mas não havia degrau nenhum. Entre o casco de metal da nave e a orla da plataforma escancarava-se uma fenda com um metro de largura. Apanhado em desequilíbrio, desprevenido para tal armadilha, dei um salto desajeitado e, em pleno ar, senti um fluxo de força invisível apoderar-se de mim, pareceu-me que vindo de baixo, de tal modo que flutuei através do vácuo e fui suavemente depositado numa superfície branca, que cedeu elasticamente. Durante o salto, devia ter tido no rosto uma expresão nada inteligente, pois vi postos em mim diversos olhares divertidos — ou assim me pareceram. Virei-me rapidamente e caminhei ao longo da plataforma. O foguetão em que chegara repousava numa cavidade profunda, separado da orla das plataformas por um abismo desprotegido. Aproximei-me desse espaço vazio, como quem não quer a coisa, e senti pela segunda vez uma resistência invisível que me impediu de atravessar a fronteira branca. Desejei localizar a fonte dessa força peculiar, mas de súbito, como se acordasse, lembrei-me de uma coisa: estava na Terra. Fui alcançado por uma onda de peões. Empurrado, andei para a frente, na multidão. Precisei de um momento para me aperceber realmente das dimensões do átrio. Mas seria tudo um átrio? Não havia paredes: uma cintilante, branca e alta explosão de alas incríveis; entre elas, colunas, colunas que não eram feitas de qualquer substância, mas sim de entontecedor movimento. Esguichando para cima, enormes fontes de um líquido mais denso do que a água, iluminado pelo interior por projectores coloridos… Seria? Não… túneis verticais de vidro através dos quais subia velozmente uma sucessão de veículos pouco nítidos. Senti-me absolutamente confuso. Constantemente empurrado pelas turbas apressadas, tentei abrir caminho para qualquer espaço vazio. Mas ali não havia espaços vazios. Como era uma cabeça mais alto do que quantos me rodeavam, pude ver que o foguetão vazio se estava a afastar… não éramos nós que deslizávamos para a frente com toda a plataforma. Em cima brilhavam luzes fortes e, nelas, as pessoas cintilavam e refulgiam. A superfície plana em que nos encontrávamos comprimidos começou a subir e eu vi, em baixo, ao longe, faixas bancas, duplas, cheias de gente e hiantes fendas negras ao longo de naves inertes — pois encontravam-se ali dúzias de naves como a nossa. A plataforma móvel descreveu uma curva, acelerou e continuou a subir para níveis mais altos. Ruidosas e agitando o cabelo dos que estavam parados com fortes rajadas de vento, passavam velozmente, como que em impossíveis (por não terem, absolutamente, nenhum apoio) viadutos, sombras ovais trémulas de velocidade, arrastando atrás de si longas tiras de chamas, as suas luzes de sinalização. Depois, a superfície que nos transportava começou a dividir-se ao longo de imperceptíveis costuras. A minha faixa passou por um interior cheio de pessoas de pé e sentadas, rodeadas por uma multidão de minúsculos clarões, como se estivessem entretidas a lançar fogo de vistas colorido. Não sabia para onde olhar. À minha frente estava um homem que vestia qualquer coisa fofa, como peles, mas que, quando tocada pela luz, opalescia como metal. Levava pelo braço uma mulher de escarlate. O vestuário de lã era todo em grandes olhos, como os ocelos dos pavões, mas que pestanejavam. Não se tratava de nenhuma ilusão, os olhos do vestido dela abriam-se e fechavam-se, realmente. A faixa onde me encontrava, atrás do referido casal e entre uma dúzia de outras pessoas, adquiriu velocidade. Entre superfícies de vidro branco-fumo abriram-se passeios coloridos e iluminados com tectos tansparentes, tectos continuamente pisados por centenas de pés, no andar de cima. O rugido circundante ora alastrava, ora ficava confinado, à medida que milhares de vozes humanas e sons — sem significado para mim, cheios de significado para eles — eram engolidos por cada túnel sucessivo daquela viagem, cujo destino eu ignorava. Ao longe, o espaço circundante continuava a ser trespassado pelos sulcos de veículos para mim desconhecidos — aeronaves, provavelmènte, já que de vez em quando subiam ou desciam, a descrever espirais no espaço, de tal modo que eu esperava automaticamente assistir a um terrível despenhamento, pois não via fios-guia nem carris, que existiriam no caso de se tratar de comboios elevados. Quando os foscos ciclones de movimento se interrompiam por instantes, por trás deles emergiam, majestosamente lentas, imensas superfícies cheias de gente, como estações voadoras, que seguiam em várias direcções, passavam umas pelas outras, subiam e pareciam fundir-se entre si por truques de perspectiva. Era difícil descansar os olhos em qualquer coisa que não estivesse em movimento, pois a arquitectura de todos os lados parecia consistir somente em movimento, em mudança, e até o que eu iniciamente tomara por um tecto abobadado eram apenas patamares sobrepostos, patamares que cediam o lugar a outros patamares e níveis mais elevados. De súbito, um vivo clarão purpúreo, como se um incêndio atómico tivesse deflagrado algures, muito longe, no coração do edifício, filtrou-se através do vidro dos tectos, daquelas misteriosas colunas, e foi reflectido pelas superfícies prateadas. Foi como sangue a correr para todos os cantos, para os interiores das galerias que passavam e para as feições das pessoas. O verde dos néons incessantemente a pulsar tornou-se deslavado; o tom leitoso dos arçobolantes, parabólicos ficou rosado. Naquela súbita saturação do ar de vermelho havia como que um presságio de catástrofe, ou pelo menos assim me pareceu; mas ninguém prestou a mínima atenção à mudança e eu nem saberia dizer quando se dissipou. Aos lados da nossa rampa apareceram revoluteantes círculos verdes, como anéis de néon suspensos no ar, e nessa altura algumas das pessoas desceram para o desdobramento de outra rampa ou de outro caminho que se aproximava. Reparei que se podia passar livremente pelas linhas verdes daquelas luzes, como se elas não fossem materiais. Durante um bocado, deixei-me ser transportado pelo passadiço branco, até me acudir a ideia de que talvez já estivesse fora da estação e aquele fantástico panorama de vidro inclinado que parecia sempre na eminência de voo fosse de facto a cidade — e de que a cidade que eu deixara já só existia na minha memória. — Desculpe… — murmurei, e toquei no braço do homem vestido de peles. — Onde estamos? Olharam-me ambos. Os seus rostos, quando os levantaram, apresentaram uma expressão assustada. Acalentei a ténue esperança de que isso se devesse apenas à minha altura. — Estamos no poliduto — respondeu o homem. — Qual é o seu desvio? Não compreendi. — Estamos… ainda estamos na estação? — Obviamente — respondeu-me o homem, com certa cautela. — Mas… onde fica o Círculo Interior? — Já o deixou passar. Agora terá de retroceder. — O rast de Merid seria melhor — alvitrou a mulher, e todos os olhos do seu vestido pareceram fitar-me com desconfiança e espanto. — Rast? — repeti, desamparado. — Ali. — Ela apontou para uma elevação desocupada, com lados às riscas pretas e prateadas e que parecia o casco de um navio pintado de modo peculiar e deitado de lado. Tudo isso era visível através de um círculo verde que se aproximava. Agradeci ao casal e saí do passadiço, provavelmente onde não deveria, pois o impulso fez-me tropeçar. Recuperei o equilíbrio, mas senti-me rodopiar de tal maneira que não soube em que direcção ir. Pensei no que deveria fazer, mas, entretanto, o meu ponto de transferência desviara-se consideravelmente do monte preto e prateado que a mulher me mostrara e que não consegui encontrar. Como a maioria das pessoas que me cercavam se dirigia para uma rampa a subir, fiz o mesmo. Vi nela um gigantesco letreiro a arder no ar: DUCTO CENT. As restantes letras de ambos os lados não eram visíveis devido à própria magnitude. Silenciosamente, fui conduzido a uma plataforma com quase um quilómetro de comprimento, da qual estava a partir um veículo em forma de fuso, que mostrou ao elevar-se uma base sulcada de luzes. Mas talvez aquela forma de Leviatão fosse a plataforma e eu estivesse no rasl… Nem sequer havia ninguém a quem perguntar, pois a área que me cercava estava deserta. Devia ter metido pelo caminho errado. Uma parte da minha plataforma tinha construções atarracadas, sem paredes à frente. Aproximei-me e encontrei cubículos baixos e fracamente iluminados, nos quais estavam séries de máquinas pretas que tomei por carros. Mas quando as duas mais próximas emergiram e. sem que eu tivesse tempo de recuar, passaram por mim a uma velocidade tremenda, vi. antes de desaparecerem no fundo de vertentes parabólicas, que não tinham rodas, nem janelas, nem portas. Eram aerodinâmicos, como imensos pingos pretos de líquido. Fossem carros ou não fossem, pensei, de qualquer modo aquilo parecia uma espécie de parque de estacionamento. Dos rasts? Achei melhor esperar que aparecesse alguém e acompanhá-lo. Pelo menos, aprenderia alguma coisa. A minha plataforma ergueu-se ligeiramente, como a asa de um aeroplano impossível, mas permaneceu vazia; só ali havia as máquinas pretas que emergiam singularmente ou diversas ao mesmo tempo dos seus covis metálicos e partiam a grande velocidade, sempre na mesma direcção. Desci mesmo até à aresta da plataforma, até sentir de novo aquela força invisível e elástica, que assegurava uma segurança completa. A plataforma estava realmente suspensa no ar. não apoiada em coisa nenhuma. Levantei a cabeça e vi muitas outras iguais, a pairar, imóveis no espaço, do mesmo modo. com as suas grandes luzes apagadas. Algumas, aonde estavam a chegar veículos, tinham as luzes acesas. Mas aqueles foguetões, ou projécteis, não eram como o que me trouxera de Luna. Fiquei ali um bocado, até notar, no fundo de alguns passadiços mais distantes — embora não soubesse se eram reflexos, em espelhos, do meu ou realidade —, letras de fogo a deslocar-se sistematicamente através do ar: SOAMO SOAMO SOAMO, uma pausa, uma espécie de clarão azulado e depois NEONAX NEONAX NEONAX. Devia tratar-se dos nomes de estações ou, provavelmente, do anúncio de produtos. De qualquer modo, não me diziam nada. «Já é mais que tempo de me encontrar com o tal tipo», pensei. Girei nos calcanhares e, vendo um passadiço seguir na direcção oposta, passei para ele. Afinal, tratava-se do nível errado, não era sequer o átrio que eu deixara: percebi-o pela ausência das enormes colunas. No entanto, elas podiam ter ido para qualquer lado… Entretanto, já tudo me parecia possível. Encontrei-me numa floresta de fontes; mais adiante encontrei uma sala branca e rosa cheia de mulheres. Ao passar, estendi a mão, sem pensar, para o jacto de uma fonte iluminada, talvez por ser agradável encontrar alguma coisa um bocadinho familiar. Mas não senti nada, a fonte não tinha água. Passados momentos pareceu-me cheirar flores. Levei a mão ao nariz. Tinha o cheiro de mil sabonetes perfumados ao mesmo tempo. Instintivamente. esfreguei a mão nas calças. Encontrava-me parado defronte éa sala cheia de mulheres, só mulheres. Pareceu-me tratar-se de um lavabo, mas não tinha nenhuma maneira de o saber. Como preferi não perguntar, afastei-me. Um jovem, vestindo qualquer coisa que dava a impressão de lhe terem derramado por cima mercúrio que solidificara, tufado nos braços e justo nos quadris, conversava com uma rapariga loura que estava encostada à taça de uma fonte. A rapariga, com um vestido simples de cores vivas, o que me encorajou, segurava um ramo de flores rosa-pálido. Com o rosto mergulhado nas flores, sorria ao rapaz com os olhos. No momento em que parei diante deles e abri a boca para falar, vi que ela estava a comer as flores. A voz fugiu-me. Olhou para mim, a mastigar calmamente as pétalas delicadas, e os seus olhos ficaram como que petrificados. Eu, porém, já estava habituado a isso e perguntei onde ficava o Círculo Interior. O rapaz pareceu-me desagradavelmente surpreendido, zangado mesmo, por alguém ter interrompido o seu tête-à-tête. Eu devia ter desrespeitado qualquer regra da boa educação. Ele olhou-me de alto a baixo, como se esperasse encontrar andas que justificassem a minha altura. Não disse uma palavra. — Olhe, ali! — gritou a rapariga. — O rast no vuk, o seu rast. Ainda o apanha, corra! Desatei a correr na direcção indicada, mas sem saber para quê — ainda não fazia a mínima ideia do aspecto do maldito rast — e, ao fim de uns dez passos, vi descer de muito alto um funil prateado, da base de uma das enormes colunas que tanto me tinham admirado. Tratar-se-ia de colunas voadoras? Para o objecto corria gente de todas as direcções. Nisto, choquei com alguém. Não perdi o equilíbrio, fiquei apenas specadfl, mas a outra pessoa, um robusto indivíduo vestido de cor de laranja, caiu e vi acontecer-lhe algo incrível: o seu casaco de peles mirrou debaixo dos meus olhos, esvaziou-se como um balão furado! Continuei parado, estupefacto, incapaz de murmurar ao menos um pedido de desculpa. Ele levantou-se e lançou-me um olhar furioso, mas não disse nada. Virou-se e afastou-se, tocou com os dedos em qualquer coisa, no peito… e o seu casaco encheu-se de novo e iluminou-se! Entretanto, o lugar que a rapariga me apontara ficara deserto. Depois daquele incidente desisti de procurar rasts, o Círculo Interior, duetos e desvios. Resolvi sair da estação. Até então, a experiência não me encorajava a abordar transeuntes; por isso, segui ao acaso uma seta azul-celeste que apontava para cima. Sem qualquer sensação especial, o meu corpo passou através de dois letreiros luminosos que brilhavam no ar: CIRCUITOS LOCAIS. Cheguei a uma escada rolante onde se encontravam algumas pessoas. O nível seguinte era de bronze escuro e sulcado de veios com pontos de exclamação dourados. Junções fluidas de tectos e paredes côncavas. Corredores sem tecto, envoltos em cima num pó brilhante. Pareceu-me que me estava a aproximar de instalações habitacionais de qualquer espécie, pois a área tinha o ar de um sistema de gigantescos átrios de hotéis — guichés de caixas, tubos de níquel ao longo das paredes, recessos com empregados… Talvez fossem escritórios para troca de moeda ou um posto de correios. Continuei a andar. Já tinha quase a certeza de não ser aquele um caminho para qualquer saída e de (a julgar pela extensão da subida) me encontrar na parte elevada da estação. No entanto, continuei a seguir na mesma direcção. Um vazio inesperado, painéis cor de framboesa com estrelas cintilantes, séries de portas. A mais próxima estava aberta e eu olhei para dentro. Um homem forte e de ombros largos olhou-me do lado oposto: eu próprio, num espelho. Abri mais a porta. Porcelana, canos prateados, níquel. Lavabos. Senti uma pequena vontade de rir, mas de modo geral não me perturbei. Voltei-me rapidamente: outro corredor, faixas brancas como leite a descer. O corrimão da escada rolante era macio, tépido. Não contei os andares por que passei. Mais e mais gente que parava defronte de caixas de esmalte que saíam da parede a cada passo. Tocavam com um dedo e caía-lhes na mão qualquer coisa quemetiam na algibeira antes de continuarem o seu caminho. Não sei porquê, fiz exactamente a mesma coisa que o homem de casaco solto, cor de violeta, que ia à minha fiente: premi uma chave com uma pequena depressão para a ponta do dedo e caiu-me na mão um tubo colorido, translúcido e ligeiramente quente. Sacudi-o e cheguei-o a um olho. Qualquer espécie de pílulas? Não. Um frasquinho? Não tinha rolha. Para que servia? Que faziam as outras pessoas? Metiam o objecto nas algibeiras. No distribuidor lia-se uma palavra: largan. Fiquei parado. Fui empurrado. Senti-me de súbito como um macaco a quem tivessem dado uma caneta de tinta permanente ou um isqueiro. Apoderou-se de mim uma cólera cega. Cerrei os dentes, semicerrei os olhos e, de ombros inclinados para a frente, juntei-me à multidão de peões. O corredor alargou e transformou-se num átrio. Letras luminosas: REAL AMMO REAL AMMO. Por cima da cabeça das pessoas apressadas, do outro lado da turba, vi uma janela, ao longe. A primeira janela. Panorâmica. Enorme. Todos os firmamentos da noite reunidos num plano horizontal. Num horizonte de névoas luminosas — galáxias coloridas de quadrados, aglomerados de luzes espirais, clarões a tremeluzir sobre arranha-céus, as ruas: um rastejar, uma penstalase; com colares de luz e, por cima disso, na perpendicular, caldeirões de néon, coroas de penas e faíscas, círculos, aeroplanos e garrafas de chamas, dentes-de-leão vermelhos feitos de minúsculas luzes de sinalização, sóis momentâneos e hemorragias de anúncios mecânicos e violentos. Parei a olhar, enquanto ouvia atrás de mim o pisar firme de centenas de pés. De súbito, a cidade desapareceu e surgiu uma cara enorme, com três metros de altura. «— Estiveram a ver passagens de noticiários da década de 70 da série Vistas de Antigas Capitais. Agora as notícias. O Transtel está a expandir-se a fim de abranger estúdios cósmicos…» Fugi, a bem dizer. Não se tratava de nenhuma janela. Era um écran de televisão. Estuguei o passo, a transpirar um pouco. Desci. Mais depressa. Quadrados dourados de luzes. No interior, multidões, espuma em copos, um líquido quase preto — não era cerveja, com a sua virulenta cintilação esverdeada — e gente nova, rapazes e raparigas de braço dado, em grupos de seis e oito a bloquear toda a via, vindo na minha direcção. Tiveram de se separar para me deixar passar. Fui empurrado. Sem me aperceber, entrei num passadiço em movimento. Muito perto de mim passou um par de olhos assustados — uma encantadora rapariga escura vestindo qualquer coisa que brilhava como metal fosforizado. O tecido agarrava-se-lhe ao corpo, era como se estivesse nua. Rostos brancos, amarelos, alguns pretos altos — mas eu continuava a ser o mais alto. As pessoas abriam caminho para eu passar. Muito alto, atrás de janelas convexas, passavam sombras dispersas e tocavam orquestras invisíveis, mas ali prosseguia um passeio curioso. Nas passagens escuras, as silhuetas sem cabeça de mulheres: os tufos que lhes cobriam os braços emanavam uma luz, de modo que só se lhes viam os pescoços erguidos, como estranhos Scífloa brancos, e o brilho difuso do cabelo — um pó luminescente? Um corredor estreito levou-me a uma série de salas com estátuas grotescas, porque em movimento, activas, mesmo; uma espécie de rua larga, com os lados elevados, vibrava de riso. As pessoas divertiam-se. Mas que as divertia? As estátuas? Enormes figuras em cones de luz de projectores; deles corria luz cor de rubi, cor de mel e espessa como xarope, uma invulgar concentração de cores. Continuei a andar passivamente, a semicerrar os olhos, distraído. Um corredor verde e íngreme, pavilhões grotescos, pagodes aonde se chegava por pequenas pontes, por toda a parte pequenos cafés, o cheiro forte e persistente de alimentos fritos, enfiadas de chamas de gás atrás dejnontrag, o tilintar de vidros, sons metálicos repetidos, incompreensíveis. A multidão que me arrastara até ali colidiu com outra e depois tomou-se menos densa; toda a gente entrava para um veículo aberto… não, era apenas transparente, como que moldado em vidro. Até os lugares pareciam de vidro, embora fossem macios. Sem saber como, encontrei-me dentro de um, em movimento. O veículo seguia velozmente e as pessoas gritavam acima do som de um altifalante, que repetia: «Nível meridional, meridional, mudança para Spiro, Atalé, Blekk, Frosom.» Todo o veículo parecia fundir-se, trespassado por lanças de luz; aos lados deslizavam paredes em faixas de chama e cor; arcos parabólicos, plataformas brancas. «Forteran, Forteran, mudança para Galee, mudança para rasts exteriores, Makra», gritava o altifalante. O veículo parou e depois prosseguiu velozmente. Descobri uma coisa extraordinária: não havia nenhuma sensação de travagem ou aceleração, era como se a inércia tivesse sido anulada. Como era isso possível? Verifiquei, dobrando ligeiramente os joelhos, em três paragens consecutivas. Também não se sentia nada nas curvas. As pessoas entravam e saíam. À frente ia uma mulher com um cão. Nunca vira um cão assim: enorme, com a cabeça como uma bola e muito feio. Nos seus plácidos olhos cor de avelã reflectiam-se, a recuar e a diminuir, grinaldas de luzes. RAMBRENT RAMBRENT. Houve um tremeluzir de lâmpadas fluorescentes brancas e azuladas, escadas de brilho cristalino, fachadas pretas; o brilho cedeu lentamente o lugar à pedra. O veículo parou. AÊ5ei;;me e fiquei estupefacto. Acima do círculo afundado, em forma de anfiteatro, da paragem erguia-se uma estrutura de múltiplos andares que eu rçconheci. Ainda me encontrava na estação. noutro ponto do mesmo átrio gigantesco ampliado por superfícies brancas e vastas. Dirigi-me para a orla da depressão geometricamente perfeita — o veículo já partira — e tive outra surpresa. Não me encontrava no fundo, como pensara, mas alto, uns 40 andares acima das faixas dos passadiços visíveis no abismo, acima dos patamares das plataformas sempre a deslizar. Entre elas moviam-se corpos compridos e silenciosos, dos quais emergiam pessoas através de escotilhas. Era como se monstros, peixes cromados, depositassem, com intervalos regulares, os seus ovos pretos e coloridos. Acima de tudo isso, através da névoa da distância, vi palavras douradas a formarem linhas: GLENÍANIA ROON VOLTA HOJE COM O SEU REAL MIMÓRFICO E PRESTA HOMENAGEM NO ORATÓRIO À MEMÓRIA DE RAPPER KERX POLITR. BOLETIM NOTICIOSO DO TERMINAL: HOJE. EM AMMONLEE, PETIFARGUE EFECTUOU A SISTOLIZACÃO DO PRIMEIRO ENZÁO. A VOZ DO ILUSTRE GRAVITACIONISTA SERÁ DIFUNDIDA NA 27.ª HORA. ARRAKER À FRENTE. ARRAKER REPETIU O SEU ÊXITO COMO PRIMEIRO OBLITERADOR DA ÉPOCA NO ESTÁDIO DO TRANSVAL. Afastei-me. Até a maneira de dividir o tempo mudara! Atingidos pela luz das letras gigantescas que corriam sobre o mar de cabeças, como filas de igniscentes equilibristas no arame, os tecidos metálicos dos vestidos das mulheres pareciam irronjper em chamas súbitas. Continuei a andar, alheado, e qualquer coisa dentro de mim repetiu: Até a maneira de dividir o tempo mudou! Isso deprimiu-me, de certo modo. Não via nada, embora os meus olhos se mantivessem abertos. Só queria uma coisa: afastar-me, encontrar uma maneira de sair daquela infernal estação, estar debaixo do céu nu, ao ar livre, ver as estrelas e sentir o vento. Senti-me atraído por uma avenida de luzes alongadas. Na pedra transparente dos tectos estava a ser escrita qualquer coisa — letras — com uma chama viva, envolta em alabastro: teletrans teleport telethon. Através de um portal íngreme e arqueado (mas era um arco impossível, arrancado da sua fundação, como a imagem negativa da proa de um foguete), alcancei um átrio decorado de fogo dourado solidificado. Em recessos ao longo das paredes havia centenas de cubículos. Pessoas corriam para eles e voltavam a sair, apressadas, e deitavam para o chão fitas rasgadas — não eram fitas de telégrafo, mas sim qualquer outra coisa, com projecções feitas por furos. Outras caminhavam por cima dessas tiras. Quis ir-me embora. Por engano, entrei numa sala escura e, antes que tivesse tempo de sair, qualquer coisa zumbiu, brilhou um clarão, como o de uma lâmpada de flash, e de uma fenda envolta em metal, como de uma caixa de correio, saiu um bocado de brilhante papel dobrado em dois. Peguei-lhe e abri-o. Emergiu um rosto de boca aberta, lábios ligeiramente torcidos, magro, a olhar-me através de olhos semicerrados: eu próprio! Dobrei o papel em dois e a sombra plástica desapareceu. Afastei devagarinho as arestas: nada. Afastei-as mais: reapareceu, vinda não sei de onde, uma cabeça separada do resto do corpo, pairando acima do papel com uma expressão não muito inteligente. Contemplei por momentos o meu próprio rosto. Que era aquilo, fotografia tridimensional? Meti o papel na algibeira e saí. Um inferno dourado pareceu descer sobre a multidão, um tecto feito de magma ardente, irreal, mas a vomitar chamas reais. E ninguém prestava atenção. Os que tinham assuntos a tratar corriam de uma cabina para outra. Mais atrás, saltaram colunas de letras verdes, enquanto colunas de números fluíam por estreitos écrans abaixo. Outras cabinas tinham portinholas em vez de portas, as quais se levantavam rapidamente quando alguém se aproximava. Finalmente, encontrei uma saída. Um corredor curvo, com o chão inclinado, como às vezes encontrávamos no teatro. Irrompiam das paredes conchas estilizadas, enquanto em cima se sucediam sem parar as palavras infor infor infor. A primeira vez que vira um infor tinha sido em Luna e julgara tratar-se de uma flor artificial. Aproximei o rosto da concha de água-marinha, a qual se imobilizou, pronta para me ouvir, antes mesmo de eu abrir a boca. — Como saio daqui? — perguntei, não muito inteligentemente. — Para onde vai? — respondeu-me imediatamente um alto amável. — Para a cidade. — Bairro? — Não importa. — Nível? — Não importa. Só quero sair da estação! — Meridional, rasts: cento e seis, cento e dezassete, zero oito, zero dois. Triducto, nível af. ag, ac, circuito m, níveis doze, dezasseis; o nível nádir conduz a todas as direcções do lado sul. Nível central: gleeders, local vermelho, expresso branco, a. b e v. Nível ulder, directo, todas as escadas rolantes da terceira para cima… — recitou monocordicamente uma voz feminina. Tive vontade de arrancar da parede o microfone tão solicitamente inclinado para a minha cara. Dentro de mim, a cada passo, soava a palavra: Idiota! Idiota! ex ex EX ex, repetia um sinal que se erguia, circundado por uma névoa cor de limão. Seria Ex de Exit, saída? Uma saída? O imenso letreiro dizia exotai.. Uma baforada súbita de ar morno agitou-me as pernas das calças. Dei comigo debaixo do céu. Mas o negrume da noite era mantido a grande distância, como que empurrado para trás pela multitude das luzes. Um imenso restaurante. Mesas cujos tampos brilhavam, com cores diferentes. Acima delas, rostos iluminados de baixo e, por isso, um tanto ou quanto fantasmagóricos, cheios de sombras carregadas. Poltronas baixas, um líquido preto com espuma verde nos copos, lanternas que jorravam pequenas centelhas… não, pirilampos, enxames de pequenas borboletas incandescentes. O caos de luzes extinguia as estrelas. Quando levantei a cabeça viapenas um vazio preto. No entanto, e estranhamente, nesse momento a sua presença cega deu-me coragem. Parei a olhar. Roçou alguém por mim, ao passar, e captei a fragrância de um perfume forte e ao mesmo tempo suave. Passou um jovem casal; a rapariga voltou-se para o homem. Uma nuvem fofa cobria-lhe os braços e os seios. Lançou-se nos braços dele e dançaram. «Ainda dançam», pensei. «Isso é bom». O par deu alguns passos. Um círculo pálido, que parecia de mercúrio, elevou-os juntamente com os outros pares. As suas sombras vermelho-escuras moviam-se sob o enorme prato que girava lentamente, como um disco. Não se apoiava em nada, nem sequer tinha um eixo: suspenso no ar, girava ao compasso da música. Caminhei pelo meio das mesas. O piso macio, plástico, terminou e deu lugar a rocha porosa. Transpus uma cortina de luz e encontrei-me no interior de uma gruta rochosa. Era como dez, cinquenta, naves góticas formadas a partir de estalactites. Depósitos de minerais pejerocom veios, rodeavam a boca das cavernas, nas quais se sentavam pessoas de pernas pendentes, com pequenas chamas a tremeluzir entre os joelhos. Ao fundo, encontrava-se a superfície preta e ininterrupta de um lago subterrâneo, que reflectia as abóbadas de rocha. Aí também havia pessoas reclinadas em pequenas e frágeis jangadas, todas a olhar na mesma direcção. Aproximei-me da beira da água e vi, do outro lado, na areia, uma dançarina. Parecia estar nua, mas a brancura do seu corpo não era natural. Correu para a água com passos curtos, pouco firmes; quando o seu corpo se reflectiu nela, estendeu subitamente os braços e inclinou-se — era o fim —, mas ninguém aplaudiu. A dançarina ficou imóvel durante alguns segundos e depois, lentamente, afastou-se ao longo da margem, acompanhando a sua linha irregular. Encontrava-se talvez a uris 30 passos de mim quando lhe aconteceu qualquer coisa. Num momento, vi-lhe o rosto sorridente e exausto; no seguinte, como se algo se entrepusesse, os seus contornos tremeram e desapareceram. — Uma jangada, senhor? — perguntou uma voz cortês, atrás de mim. Virei-me. Ninguém. Só uma mesa aerodinâmica, a deslocar-se sobre pernas comicamente arqueadas. Moveu-se para a frente e os copos de líquido cintilante, dispostos em filas de bandejas laterais, estremeceram. Um braço ofereceu-me cortesmente um copo, o outro estendeu-se para um prato com um buraco para enfiar um dedo, uma coisa parecida com uma pequena paleta côncava. Era um robot. Vi, atrás de uma pequena chapa de vidro do centro, o ténue brilho do seu coração transistorizado. Evitei aqueles braços de insecto estendidos para me servirem, carregados de iguarias, que recusei, e saí rapidamente da caverna artificial, a ranger os dentes, como se tivesse sido insultado. Atravessei toda a largura do terraço, pelo meio de mesas em forma de S, sob avenidas de lanternas e o pó fino de pirilampos em desintegração, pretos e dourados. Mesmo ao fundo, havia como que uma beira de pedra, velha e coberta de líquenes arflarelados, e aí senti, finalmente, um vento autêntico, limpo e fresco. Perto estava uma mesa vazia. Sentei-me desajeitadamente, de costas para as pessoas, a olhar para a noite. Em baixo havia escuridão, vasta, informe e inesperada; só longe, muito longe, no seu perímetro, brilhavam pequenas luzes trémulas, curiosamente hesitantes, como se não fossem eléctricas. E, ainda mais longe erguiam-se para o céu espadas de luz, frias e estreitas. Fiquei sem saber se eram casas, se colunas. Tê-las-ia mesmo tomado pelos feixes luminosos de holofotes se as não delineasse uma rede delicada — um cilindro de vidro podia ter aquele aspecto, com a base na terra e a ponta nas nuvens, cheio de lentes côncavas e convexas, alternadamente. Deviam ser incrivelmente altos. À sua volta brilhavam, pulsavam algumas luzes, de modo que os envolvia ora uma névoa cor de laranja, ora uma névoa branca. E era tudo, era esse o aspecto da cidade. Tentei descobrir ruas, calcular onde estariam, mas o espaço negro e aparentemente sem vida, em baixo, estendia-se em todas as direcções, sem uma única centelha a iluminá-lo. — Col…? — ouvi chamar. Provavelmente, a palavra já tinha sido repetida algumas vezes, mas eu não me apercebi logo que me era dirigida. Comecei a virar-me, mas a cadeira, mais rápida do que eu, fê-lo por mim. De pé, à minha frente, estava um rapariga dos seus 20 anos, talvez, vestindo qualquer coisa azul que se lhe colava ao corpo como um líquido solidificado. Tinha os braços e os seios ocultos por uma flocosidade azul-marinha que se tomava cada vez mais transparente à medida que descia. O seu ventre esbelto e encantador lembrava uma escultura de metal que respirava. Tinha nas orelhas qualquer coisa reluzente e tão grande que lhas cobria por completo. Uma boca pequena e um sorriso hesitante, os lábios pintados e as narinas igualmente vermelhas, por dentro — já reparara que a maioria das mulheres se maquiIhava assim. Agarrou as costas da cadeira à minha frente com ambas as mãos e disse: — Como vai isso, col? Sentou-se. Pensei que estava um pouco embriagada. — Isto aqui é maçador — continuou, passados momentos. — Não acha? Vamos para outro lado qualquer, col? — Não sou um col… — comecei. Ela inclinou-se sobre a mesa, apoiada nos cotovelos, e passou a mão pelo copo meio, até a ponta da corrente de ouro que lhe rodeava os dedos mergulhar no líquido. Inclinou-se ainda mais, ao ponto de lhe poder cheirar o hálito. Se estava embriagada, não era de álcool. Porque diz isso? — perguntou. — É. Tem de ser. Toda a gente é. Que diz? Vamos? Se ao menos eu compreendesse o, que tudo aquilo significava! — Está bem — acedi. Ela endireitou-se e eu levantei-me da minha cadeira horrivelmente baixa. — Como faz isso? — perguntou-me. — Como faço o quê? Fitou as minhas pernas. — Pensei que estivesse em bicos de pés… Sorri, mas não disse nada. Ela aproximou-se e deu-me o braço, e ficou de novo surpreendida. — Oue tem aí? — Onde. aqui? Nada. — Está a cantar — observou, e apertou-me ligeiramente. Enquanto passávamos pelo meio das mesas, perguntei a mim mesmo o que significaria «cantar». Talvez «está a mangar comigo?» Conduziu-me na direcção de uma parede dourado-escura com uma marca, uma coisa um pouco parecida com uma clave de sol iluminada. À nossa aproximação a parede abriu-se. Senti uma lufada de ar quente. Descia dali uma estreita escada rolante prateada. Colocámo-nos lado a lado. Ela nem sequer chegava ao meu ombro. Tinha uma cabeça felina, cabelo preto com um brilho azul e um perfil talvez demasiado agudo; mas era bonita. Se não fossem aquelas narinas escarlates… Agarrou-se bem a mim com a sua mão pequenina, com as unhas verdes enterradas na minha grossa camisola. Não contive um sorriso ao pensar onde aquela camisola estivera e no pouco que tinha em comum com os dedos de uma mulher. Por baixo de uma cúpula circular que respirava luz — de rosa a carmim e de carmim a rosa —, passámos para a rua. Isto é, eu pensei que era uma rua, mas a escuridão por cima de nós, era momentaneamente iluminada, como que por uma momentânea alvorada. Mais adiante, silhuetas compridas e baixas deslizaram por nós, de modo muito semelhante a carros. Mas eu sabia que já não havia carros. Devia ser qualquer outra coisa. Mesmo que estivesse sozinho, teria escolhido aquela artéria larga, porque ao longe brilhavam as letras: para o centro — embora isso não significasse com certeza o centro da cidade. Fosse como fosse, deixei — me conduzir. Acabasse aquela aventura como acabasse, encontrara um guia. Pela primeira vez sem cólera, pensei no pobre tipo que, três horas depois da minha chegada, andava com certeza à minha procura por todos os infors daquela estação-cidade. Passámos por diversos bares meio vazios e por montras onde grupos de manequins desempenhavam repetidamente a mesma cena. Gostaria de ter parado para ver o que estavam a fazer, mas a rapariga continuava a andar depressa, a bater com os sapatos no chão, até que exclamou, ao ver um rosto de néon com faces vermelhas latejantes e uma língua comicamente solta, que não parava de lamber os lábios. — Oh, bonses! Quer um bons? — Acho que sim. Entrámos numa sala pequena e iluminada. Em vez de tecto tinha compridas filas de pequenas chamas, como luzes-piloto. Devia tratar-se de luz de gás. pois vinha calor de cima. Nas paredes havia recessos com balcões. Quando nos aproximámos de um deles, saíram assentos da parede, de cada lado de nós. Primeiro pareceram irromper da parede numa forma não desenvolvida, como botões, mas depois achataram-se em contacto com o ar, tomaram-se côncavos e ficaram imóveis. Sentámo-nos voltados um para o outro. A rapariga bateu com dois dedos na superfície metálica da mesa e da parede saiu uma garra niquelada que colocou um pequeno prato defronte de cada um de nós e, com dois movimentos velozes, pôs em cada prato uma porção de uma substância branca espumosa, que se tomou castanha e endureceu. Entretanto, o próprio prato escureceu. Então a rapariga dobrou-o — não era, afinal, um prato — como uma panqueca e começou a comer. — Oh! — exclamou, com a boca cheia —, não imaginava como tinha fome! Fiz exactamente o mesmo que ela. Os bornes não sabiam a nada que eu já tivesse comido. Estalavam entre os dentes como uma rosca acabada de cozer, mas derretiam-se logo na língua; a substância castanha do meio era muito condimentada. Achei que passaria a gostar de bornes. — Outro? — perguntei, quando ela acabou de comer o seu. Sorriu e abanou a cabeça. Ao sair, no corredor, meteu ambas as mãos num pequeno nicho forrado de azulejos. Qualquer coisa zumbiu, lá dentro. Fiz o mesmo. Um vento acariciador soprou-me nos dedos e quando os retirei estavam completamente secos e limpos. Depois subimos numa grande escada rolante. Eu não sabia se ainda estávamos na estação, mas preferi não perguntar. Ela conduziu-me a uma pequena cabina aberta numa parede e pouco iluminada. Tive a impressão de que por cima passava qualquer espécie de comboios, pois o chão estremecia. Tomou-se mais escuro durante uma fracção de segundo, qualquer coisa debaixo de nós soltou um profundo suspiro, como um monstro de metal a despejar o ar dos pulmões, a luz reapareceu e a rapariga empurrou a porta e abriu-a. Uma ma verdadeira, aparentemente. Não se via mais ninguém nela. De ambos os lados do passeio cresciam arbustos cortados relativamente curtos. Um pouco adiante, viam-se máquinas pretas e atarracadas, encostadas umas às outras. Um homem emergiu de uma sombra e desapareceu atrás de uma das máquinas — não o vi abrir nenhuma porta; desapareceu, simplesmente — e a engenhoca partiu com tal ímpeto que deve tê-lo espalmado contra o lugar. Não vi casas nenhumas; apenas a estrada, lisa como uma mesa e coberta de faixas de metal baço. Nos cmzamentos, em cima, pairavam luzes cor de laranja e vermelhas, um pouco parecidas com modelos de holofotes do tempo da guerra. — Aonde vamos? — perguntou a rapariga, que continuava a agarrar-me pelo braço. Abrandou o passo e uma tira vermelha atravessou-lhe a cara. — Aonde quiser. — Se assim é, a minha casa. Não vale a pena irmos de gleeder; é perto. Continuámos a andar. Ainda não se viam casas e o vento que soprava da escuridão, de trás dos arbustos, era o que seria de esperar num espaço aberto. Ali, nas imediações da estação, no próprio Centro? Pareceu-me estranho. O vento trazia uma suave fragrância de flores, que aspirei avidamente. Flores de cerejeira? Não, flores de cerejeira não eram. A seguir, chegámos a um passadiço em movimento. Parámos nele, a formar um estranho par. Deslizavam luzes e, de vez em quando, passava velozmente um veículo, como se fosse feito de um único bloco de metal. Aqueles veículos não tinham janelas, nem rodas, nem sequer luzes e viaja- vam como que às cegas, a tremenda velocidade. As luzes móveis irrompiam de aberturas estreitas e verticais que pairavam, baixo, acima do chão. Não consegui perceber se tinham alguma coisa a ver com o trânsito e a sua regulação. De vez em quando, muito alto, acima de nós, um assobio lamentoso cortava o céu invisível. De súbito, a rapariga saiu da faixa móvel, mas só para se mudar para outra que subia ingrememente, e eu dei comigo a subir também. Aquele passeio aéreo durou talvez meio minuto e terminou numa espécie de saliência coberta de flores levemente fragrantes, como se tivéssemos chegado ao terraço ou à varanda de um edifício escuro, trazidos por uma correia de transporte montada contra a parede. A rapariga entrou naquela loggia e eu, já com os olhos habituados à escuridão, pude distinguir, dela, os contornos imensos dos edifícios circundantes — sem janelas, pretos e aparentemente sem vida, pois não era só a luz que lhes faltava: não se ouvia nem um som, por mínimo que fosse, além do silvo agudo que anunciava a passagem, na rua, das máquinas pretas. Senti-me intrigado com aquela escuridão, sem dúvida intencional, assim como a ausência de letreiros de publicidade, depois da orgia de néon da estação. Mas não tive tempo para tais reflexões. — Venha, onde está? — ouvi-a murmurar, e vi apenas a mancha pálida da sua cara. Colocou a mão na porta e ela abriu-se, mas não para um apartamento. O chão moveu-se suavemente connosco. «Não podemos dar um passo, aqui», pensei. «Até admira que ainda tenham pernas.» Foi uma débil tentativa da minha parte para ironizar e proveio do espanto constante, da sensação de irrealidade de tudo quanto me acontecera nas últimas horas. Estávamos em algo parecido com um imenso átrio de entrada ou corredor, largo e quase às escuras — só os cantos das paredes brilhavam, graças a faixas de tinta luminosa. No ponto mais escuro, a rapariga voltou a estender a mão, para colocar a palma contra uma chapa metálica de uma porta, e entrou primeiro. Pestanejei. O vestíbulo, brilhantemente iluminado, estava praticamente vazio. Ela dirigiu-e para a porta seguinte. Quando me aproximei da parede, esta abriu-se subitamente e revelou um interior cheio de pequenas garrafas metálicas. Aconteceu tão depressa que estaquei. — Não desarrume o meu guarda-vestidos — disse-me a rapariga já na outra sala. Segui-a. A mobília — poltronas, um sofá baixo e mesas pequenas — parecia feita de vidro e dentro do material semitransparente circulavam livremente enxames de pirilampos, ora dispersos, ora aglomerados, de modo que um sangue luminoso parecia correr dentro dos móveis, um sangue verde-pálido com centelhas rosadas. — Por que não se senta? Ela estava de pé, lá muito ao fundo. Uma poltrona desdobrou-se para me receber, o que detestei. Afinal, o vidro não era vidro; a impressão que tive foi de me sentar em almofadas infladas. Olhando para baixo, através da superfície curva e grossa do lugar, vi indistintamente o chão. Pensara, ao entrar, que a parede oposta à porta era de vidro e que, através dela, estava a ver outra sala onde se encontrava gente, como se houvesse uma festa qualquer. Mas as pessoas eram de uma altura pouco normal e eu compreendi de repente que tinha na minha frente um écran de televisão do tamanho de uma parede. O som estava desligado. Agora, sentado, vi uma enorme cara de mulher, como se uma gigante de pele escura estivesse a espreitar para a sala por uma janela. Os seus lábios moviam-se, pois estava a falar, e pedras preciosas do tamanho de escudos cobriam-lhe as orelhas e cintilavam como diamantes. Instalei-me confortavelmente na cadeira. A rapariga, de mão na cintura — o seu abdome parecia realmente uma escultura de metal azul-celeste —, estudava-me cuidadosamente. Já não parecia embriagada. Talvez tivesse sido apenas impressão minha. — Como se chama? — perguntou-me. — Bregg. Hal Bregg. E você? — Nais. Que idade tem? «Curiosas maneiras», pensei. «Mas, se é assim que procedem…» — Quarenta, porquê? — Por nada. Pensei que tivesse cem. Não pude deixar de sorrir. — Posso ter, se insiste. — «O engraçado é que é essa a verdade», pensei. — Que lhe posso oferecer? — indagou. — Para beber? Nada, obrigado. — Está bem. Aproximou-se da parede, que se abriu tíòmo um pequeno bar. Parou defronte da abertura. Quando voltou, trazia um tabuleiro com taças e duas garrafas. Espremeu ligeiramente uma das garrafas e encheu uma das taças até acima de um líquido que parecia exactamente leite. — Obrigado, para mim não… — Mas eu não lhe estou a dar nada — observou, surpreendida. Compreendendo que cometera um erro, embora não soubesse de que género, murmurei qualquer coisa e peguei na taça. Ela deitou uma bebida para si da segunda garrafa. O líquido era oleoso, incolor e ligeiramente efervescente, abaixo da superfície, e ao mesmo tempo escureceu, talvez por entrar era contacto com o ar. A rapariga sentou-se e, depois de levar a taça aos lábios, perguntou: — Quem é você? — Um col — respondi. Ergui a taça, como para a examinar. Aquele leite não tinha cheiro. Não lhe toquei. — Não, a sério. Pensou que eu estava a atirar no escuro, hem? Desde quando! Foi apenas um cais. Encontrava-me com um seis, percebe, mas estava terrivelmente chato. A orca não prestava e de uma maneira geral… Preparava-me para sair quando você se sentou. Consegui perceber um pouco do que ela disse: devia ter-me sentado por acaso na sua mesa, quando ela lá não estava. Teria estado a dançar? Mantive um silêncio cauteloso. — De longe parecia tão… — Não foi capaz de encontrar a palavra. — Decente? — sugeri. As suas pálpebras estremeceram. Cobria-as também um película metálica? Não, devia ser a sombra. Levantou a cabeça. — Que significa isso? — Bem… alguém em que se pode confiar… — Fala de um modo estranho. De onde veio? — De longe. — De Marte? — De mais longe. — Voa? — Voei. — E agora? — Nada. Regressei. — Mas voltará a voar? — Não sei. Provavelmente, não. A conversa descambara, não sei como. Pareceu-me que a rapariga começava a lamentar o seu impetuoso convite e desejei facilitar-lhe as coisas. — Talvez me deva ir embora? — perguntei, ainda a segurar na bebida intacta. — Porquê? — Pareceu surpreendida. — Pensei que isso… lhe agradaria. — Não. Está a pensar… Não, para quê? Porque não bebe? — Bebo. Afinal, era leite. Àquela hora e naquelas circunstâncias! A minha surpresa foi tão grande que ela deve tê-la notado. — Não presta? — É leite… — Devo ter parecido um perfeito idiota. — O quê? Que leite? É brit… Suspirei. — Escute, Nais… Acho que me vou embora. Realmente. Será melhor assim. — Então porque bebeu? Qlheia-a em silêncio. A língua não mudara muito, mas mesmo assim eu não percebia nada. Absolutamente nada. Eles é que tinham mudado. — Está bem — disse ela, por fim. — Não o detenho. Mas isto… Estava confusa. Bebeu a sua limonada — era assim que chamava, nos meus pensamentos, ao líquido efervescente — e eu fiquei de novo sem saber que dizer. Como era tudo tão difícil! — Fale-me de si — sugeri. — Quer? — Pois sim. E depois diz-me…? — Sim. — Estou no Cavuta, no meu segundo ano. Ultimamente, tenho descuidado um pouco as coisas, não plasticizei regularmente e… enfim, tem sido assim. O meu seis não é muito interessante. Por isso, realmente, é… Não tenho ninguém. É estranho… — É estranho o quê? — Que eu não tenha… De novo as obscuridades. De quem estava a ela a falar? Quem é que não tinha? Pais? Amantes? Conhecidos? No fim de contas, Abs tivera razão quando dissera que não me conseguiria arranjar sem os oitos meses na Adaptação. Mas agora, talvez ainda mais do que antes, não queria voltar, penitente, para a escola. — Que mais? — perguntei e, como continuava a segurar na taça bebi outro golo de leite. Os seus olhos arregalaram-se de surpresa. Pairou-lhe nos lábios como que um sorriso trocista. Acabou a sua bebida, estendeu a mão para o tufado dos braços e arrancou-o — não o desabotoou nem o despiu, rasgou-o e deixou-o cair dos dedos, como lixo. — A verdade é que mal nos conhecemos — disse. Parecia mais livre. Sorria. Havia momentos em que se tomava encantadora, especialmente quando semicerrava os olhos e o seu lábio inferior, ao contrair-se, revelava os dentes brilhantes. Havia algo de egípcio no seu rosto. De gata egípcia. Cabelo mais preto do que preto. E quando tirou os tufados dos braços e dos seios verifiquei que não era de modo nenhum tão magra como parecera. Mas porque arrancara os tufados? Isso teria algum significado? — É a sua vez de falar — disse, a olhar-me por cima da taça. — Pois sim… — Sentia-me nervoso, como se as minhas palavras pudessem ter sabia Deus que consequências. — Sou… fui piloto. A última vez que estive aqui… Não se assuste! — Não. Continue! Os seus olhos estavam brilhantes e atentos. — Foi há 127 anos. Tinha eu então 30 anos. A expedição… Fui piloto da expedição a Fomalhaut, que fica a 23 anos-luz de distância. Voámos até lá e regressámos em 127 anos, tempo da Terra, e 10 anos, tempo da nave. Regressámos há quatro dias… O Prometheus — a minha nave — ficou em Luna. Eu vim de lá hoje. É tudo. Fitou-me sem falar. Os seus lábios mexeram-se, abriram-se e fecharam-se. Que havia nos seus olhos? Surpresa? Admiração? Medo? — Porque não diz nada? — perguntei, mas primeiro tive de pigarrear. — Afinal… que idade tem, realmente? Não contive um sorriso. Mas não foi um sorriso agradável. — Que significa esse «realmente»? Biologicamente, tenho 40 anos, mas pelos relógios da Terra tenho 157… Um longo silêncio. E, de súbito: — Havia lá algumas mulheres? — Espere — pedi. — Tem alguma coisa que se beba? — Que quer dizer? — Alguma coisa tóxica, compreende? Forte. Álcool… ou já o não bebem? — Muito raramente — respondeu com suavidade, como se pensasse noutra coisa, e as suas mãos baixaram-se devagar, a tocar no azul metálico do vestido. — Dou-lhe um pouco de… angehen, serve? Mas você não sabe o que é, pois não? — Não — respondi, inesperadamente amuado. Ela foi ao bar e tirou uma pequena garrafa bojuda. Deitou-me uma bebida. Tinha álcool — não muito — e qualquer outra coisa com um peculiar gosto amargo. — Não se zangue — pedi, enquanto despejava o copo e enchia outro. — Não estou zangada. Não me respondeu, mas talvez não queira responder. — Por que não? Posso-lhe dizer. Éramos vinte e três ao todo em duas astronaves. A segunda chamava-se Ulysses. Cinco pilotos para cada nave e o resto cientistas. Não havia mulheres nenhumas. — Porquê? — Por causa dos filhos — expliquei. — Não se podem criar filhos em tais naves, e, mesmo que se pudesse, ninguém quereria. Não se pode voar antes dos trinta anos. São precisos dois diplomas e mais quatro anos de treino, doze anos ao todo. Por outras palavras, as mulheres de trinta anos geralmente têm filhos. E houve… outras considerações. — E você? — Eu era solteiro. Escolheram solteiros. Quero dizer… voluntários. — Você quis… — Sim, claro. — E não… Ela calou-se, mas eu percebi o que queria dizer. Permaneci calado. — Deve ser estranho, regressar desta maneira — observou, quase num murmúrio. Estremeceu. Qlhou para mim e, de súbito, ruborizou-se. — Escute, o que eu disse antes foi apenas uma brincadeira… — Acerca dos cem anos? — Falei só por falar, não tinha qualquer… — Cale-se — resmunguei. — Se continua a desculpar-se sinto que tenho esses anos todos, realmente. Calou-se e eu fiz um esforço para não olhar para ela. Dentro da outra sala, da sala inexistente atrás do vidro, uma enorme cabeça de homem cantava sem som. Vi o vermelho-escuro da garganta estremecer do esforço, as faces brilhar, todo o rosto mover-se a acompanhar um ritmo inaudível. — Que vai fazer? — perguntou-me a rapariga, calmamente. — Não sei. Ainda não sei. — Não tem planos? — Não. Tenho um pouco de… trata-se de um bónus, compreende? Por todo aquele tempo. Quando partimos, foi depositado no banco em meu nome… nem sequer sei quanto é. Não sei nada de nada. Escute, que vem a ser esse Cavut? — O Cavuta? — corrigiu-me. — É… uma espécie de escola, plasticização. Nada de especial, em si mesmo, mas às vezes surge a possibilidade de entrarmos nos reais… — Espere… Que faz exactamente? — Plasticização. Não sabe o que é? — Não. — Como explicar-lhe? Simplificando: fazemos vestidos, vestuário em geral… tudo. — Costura? — Que significa isso? — Cose coisas? — Não compreendo. — Deus me valha! Desenha vestidos? — Bem… em certo sentido, sim. Mas não desenho, só faço. Desisti. — E o que é um real? Esta pergunta atirou-a mesmo às lonas. Pela primeira vez, olhou para mim como se eu fosse uma criatura de outro mundo. — Um real é… um real… — respondeu, desamparada. — São… histórias. É para ver. — Aquilo? — Apontei para a parede de vidro. — Oh, não! Aquilo é visão… — O quê, então? Filmes? Teatro? — Não. Sei o que era teatro… isso foi há muito tempo. Tinha gente a sério. Um real é artificial, mas não se nóta a diferença. A não ser, suponho, que se entre nele, lá dentro… — Que se entre? A cabeça do gigante revirou os olhos, voltou-se, olhou-me como se estivesse a divertir-se muito ao observar aquela cena. — Escute, Nais — disse, de súbito —, eu vou agora, porque é muito tarde, ou… — Prefiro o «ou». — Mas não sabe o que ia dizer! — Diga-o, então. — Está bem. Queria fazer-lhe mais perguntas acerca de várias coisas. Acerca das coisas grandes, das mais importantes, já sei um pouco. Passei quatro dias na Adaptação, em Luna. Mas isso foi uma gota de água num balde. Que fazem quando não estão a trabalhar? — Podemos fazer um monte de coisas. Podemos viajar, de facto ou por moot. Podemos divertir-nos, ir ver um real, dançar, jogar tereo, praticar desporto, nadar, voar… o que quisermos. — Que é um moot? — É um pouco como um real, com a diferença de que podemos tocar em tudo. Podemos andar em montanhas ou seja onde for… terá de ver por si próprio, não é uma coisa que se possa descrever. Mas eu tinha a impressão de que queria fazer perguntas acerca de outra coisa…? — A sua impressão está certa. Como se passam as coisas entre homens e mulheres? As suas pálpebras palpitaram. — Como sempre se passaram, suponho. Que poderá ter mudado? — Tudo. Quando cu parti — não leve isto a mal —, uma rapariga como você não me teria levado à sua casa a semelhante hora. — Sério? Porquê? — Porque só poderia significar uma coisa. Ficou um momento silenciosa. — E como sabe que não foi por isso? A minha expressão divertiu-a. Olhei-a e ela deixou de sorrir. — Nais… como se explica…? — gaguejei. — Abordou um completo estranho e… Ficou calada. — Por que não responde? — Porque você não compreeade nada. Não sei como dizer-lhe. Não tem importância… — Ah. não tem importância! — repeti. Levantei-me, incapaz de continuar sentado, e, esquecido, quase saltei. Ela encolheu-se. — Desculpe — murmurei, e comecei a andar de um lado para o outro. Atrás do vidro, desdobrava-se um parque sob o sol da manhã. Por uma vereda entre árvores de folhas rosa-pálido caminhavam três jovens de camisas que brilhavam como armaduras. — Ainda há casamentos? — Naturalmente. — Não compreendo! Explique-me, diga-me… Vê um homem que a atrai e. imediatamente, sem o conhecer… — Mas que há a dizer? — perguntou, relutante. — É realmente verdade que no seu tempo, antigamente, uma rapariga não podia levar um homem ao seu quarto? — Podia, claro, e até com esse propósito, mas… não o fazia cinco minutos depois de o conhecer… — Depois de quantos minutos, então? Olhei-a. Estava absolutamente séria. Claro, como havia ela de saber? Encolhi os ombros. — Não se tratava só de uma questão de tempo. Primeiro ela tinha de… ver qualquer coisa nele, de o conhecer e de gostar dele; depois saíam juntos… — Espere — interrompeu-me. — Parece que não compreendeu uma coisa. No fim de contas, eu dei-lhe brit. — Que é brit? Ah. o leite! Oue tem isso? — Que tem isso? Que quer dizer? Não havia… brit? Desatou a rir, a rir convulsivamente. Depois parou, olhou para mim e corou muito. — Então pensou… pensou que eu… Não! Sentei-me. Os meus dedos não paravam, queria segurar qualquer coisa. Tirei um cigarro da algibeira e acendi-o. Ela arregalou os olhos. — Que é isso? — Um cigarro. Porquê? Não fuma? — É a primeira vez que vejo um… É então isso um cigarro? Como pode inalar o fumo dessa maneira? Não, espere… o resto é mais importante. Brit não é leite. Não sei o que contém, mas dá-se sempre brit a um desconhecido. — A um homem? — Sim. — Que efeito faz? — Obriga-o a comportar-se bem, a ter de se comportar bem. Sabe… Talvez algum biólogo lhe possa explicar. — Para o diabo com oS biólogos! Isso significa que um homem a quem se deu brit não pode fazer nada? — Naturalmente. — E se ele não quiser beber? — Como pode ele não querer? Aqui parou toda a compreensão. — Não pode forçá-lo a beber — continuei, pacientemente. — Um louco poderia não beber — observou, devagar. — Mas nunca ouvi falar em tal coisa, nunca… — É alguma espécie de costume? — Não sei que dizer-lhe. Não andar por aí nu é um costume? — Bem, num sentido… é. Mas podemos despir-nos na praia. — Completamente? — perguntou a rapariga, com súbito interesse. — Não. Com um fato de banho… Mas no meu tempo havia grupos de pessoas, chamadas nudistas… — Bem sei. Não, isso é outra coisa. Pensei que todos vocês… — Não. Portanto, beber essa coisa é como usar vestuário? Igualmente necessário? — Sim. Quando somos… dois. — Bem, e depois? — Depois o quê? — Na próxima vez. A conversa era estúpida e eu sentia-me ridículo, mas tinha de descobrir. — Mais tarde? Varia. A alguns… damos sempre brit. — O pretendente recusado — resmunguei. — O que significa isso? — Nada, nada. E se é uma rapariga que visita um homem? — Nesse caso, ele bebe-o em sua casa. Olhou para mim quase com piedade. Mas eu insisti: — E se ele não tem nenhum? — Se não tem nenhum brit? Como pode não ter? — Bem, porque se gastou… ou… enfim, ele pode sempre mentir. Começou a rir-se. — Mas isso é… Pensa que tenho todas essas garrafas aqui, no meu apartamento? — Não? Onde estão, então?- — De onde vêm, não sei. No seu tempo havia água canalizada? — Havia — respondi, carrancudo. Podia não ter havido. Claro! Eu podia ter entrado no foguetão directamente da selva! Por momentos senti-me furioso, mas acalmei-me. No fim de contas, a culpa não era dela. — Aí tem… Sabia em que direcção a água corria antes de…? — Compreendo, não precisa de ir mais longe. Está bem. É, então, uma espécie de medida de segurança? Muito estranho! — Não acho. Que tem aí? Que é essa coisa branca, debaixo da sua camisola? — Uma camisa. — Que é? — Nunca viu uma camisa? É… bem, é roupa. Feita de nylon. Arregacei a manga e mostrei-lhe. — Interessante — comentou. — É um costume — disse, desorientado. Na verdade, na Adaptação tinham-me dito que deixasse de me vestir no estilo de há 100 anos. Mas eu não queria. Tinha no entanto de admitir que ela tinha razão. O brit era para mim o que uma camisa era para ela. Em última análise, ninguém tinha obrigado as pessoas a usar camisa, mas todas as tinham usado. Acontecia o mesmo com o brit, evidentemente. Ela corou um pouco. — Está com uma pressa! Ainda não sabe nada. — Não disse nenhuma inconveniência — defendi-me. — Só quis saber… Por que está a olhar para mim dessa maneira? Que tem? Nais! Ela levantou-se devagar e parou atrás da poltrona. — Há quanto tempo disse que foi? Cento e vinte anos? — Cento e vinte e sete. Porquê? — E foi… betrizado? — Que é isso? — Não foi? — Nem sequer sei o que isso significa. Nais… pequena, que tem você? Comecei a andar na sua direcção, mas ela levantou as mãos. — Afaste-se. Não! Não! Suplico-lhe! Recuou até à parede. — Mas você mesma disse que o brit… Agora estou sentado. Veja, estou sentado. Acalme-se. Diga-me o que é essa bet… qualquer coisa. — Não sei exactamente. Mas toda a gene é betrizada. A nascença. — De que se trata? — Creio que põem qualquer coisa no sangue. — A toda a gente? — Sim… porque o brit… não actua sem isso. Não se mexa! — Pequena, não seja ridícula. Apaguei o cigarro. — No fim de contas, não sou nenhum animal selvagem. Não se zangue, mas… parece-me que vocês enlouqueceram todos um pouco. Esse tal brit… bem, é como algemar toda a gente porque alguém poderia revelar-se um ladrão. Quero dizer, devia haver um pouco de confiança. — Você é terrível. — Parecia mais calma, mas continuava a não se sentar. — Sendo assim, porque se mostrou antes tão indignado por eu trazer desconhecidos a casa? — Isso é diferente. — Não vejo a diferença. Tem a certeza de que não foi betrizado? — Não fui. — Talvez agora? Quando regressou? — Não sei. Deram-me uma infinidade de injecções. É assim tão importante? — É. Eles deram-lhe muitas injecções? Óptimo. Sentou-se. — Preciso de lhe pedir um favor — disse, o mais calmamente que pude. — Tem de me explicar… — Q quê? — O seu medo. Pensou que a atacaria, ou quê? Mas isso é ridículo! — Não. Se uma pessoa encara a situação racionalmente, não. Mas foi… terrível. Um grande choque. Nunca tinha visto uma pesssoa que não estivesse… — Mas com certeza não se nota? — Oh, nota, sim! . —Como? Ficou silenciosa. — Nais… — E se… — O quê? — Tenho medo. — De dizer? — Sim. — Mas porquê? — Compreenderia, se eu lhe dissesse… A betrização não é feita com brit. Com o brit obtém-se apenas um efeito… secundário… A betrização relaciona-se com qualquer outra coisa. Estava pálida e os seus lábios tremiam. «Que mundo!», pensei. «Que mundo este!» — Não posso. Tenho um medo terrível. — De mim? — Sim. — Juro que… — Não, não. Acredito em si, mas… não. Não pode compreender. — Não me diz? Deve ter havido qualquer coisa na minha voz que a levou a dominar-se. O seu rosto tomou-se sério e eu vi pelos seus olhos que estava a fazer um grande esforço. — É… é assim para… para que seja impossível… matar. — Não! Pessoas? — Tudo. — Animais, também? — Animais. Tudo. Torcia os dedos e não tirava os olhos de mim, como se com as suas palavras me tivesse libertado de uma corrente invisível, como se me tivesse posto na mão uma faca, uma faca com a qual poderia esfaqueá-la. — Nais… — disse, muito calmamente. — Nais, não tenha medo. Palavra, não há nada de que ter medo. Tentou sorrir. — Escute… — Sim? — Quando eu disse isso… — Sim? — Não sentiu nada? — E que deveria sentir? — Imagine que está a fazer o que eu lhe disse. — Que estou a matar? Devo imaginar isso? Estremeceu. — Sim. — E agora? — Não sente nada? — Nada. Na verdade, trata-se apenas de um pensamento e eu não tenho a mínima intenção… — Mas pode? Não pode? Pode realmente. Não — murmurou, como se falasse consigo própria —, não está betrizado. Só então compreendi o significado da palavra e percebi como podia ser um choque para ela. — Trata-se de uma grande coisa — murmurei, e passados instantes acrescentei: — Mas talvez tivesse sido melhor se as pessoas tivessem deixado de o fazer sem ser por meios artificiais. — Não sei. Talvez — respondeu, a respirar fundo. — Compreende agora porque me assustei? — Compreendo, mas não completamente. Talvez um pouco. Com certeza não pensou que eu… — Como é estranho! É absolutamente como se não fosse… — deixou a frase incompleta. — Como se não fosse humano? Pestanejou. — Não quis ofendê-lo. Mas, compreende, quando se sabe que ninguém lbfc 66 — 3 33 pode sequer pensar… nisso, nunca, e de repente aparece alguém como você… a simples possibilidade… o facto de haver um que… — Não posso acreditar que toda a gente seja… — como se diz? — ah, betrizada! — Porquê? Toda a gente é, garanto-lhe! — Não, é impossível — insisti. — E as pessoas com empregos perigosos? No fim de contas, têm de… — Não há empregos perigosos. — Que está a dizer, Nais? E os pilotos? E os que trabalham em salvamentos? E os que lutam contra fogos, cheias…? — Não há tais pessoas — afirmou, e eu tive a impressão de não ter ouvido bem. — O quê? — Não há tais pessoas — repetiu. — Tudo isso é feito por robots. Fez-se silêncio. Não seria fácil para mim, pensei, tragar aquele novo mundo. E, de súbito, acudiu-me uma reflexão, uma reflexão surpreendente pelo facto de que não a teria esperado nunca se alguém me tivesse apresentado aquela situação puramente como uma possibilidade teórica: pensei que aquela destruição do matador no homem era uma deformação. — Nais, é muito tarde. Acho que vou andando. — Para onde? — Não sei. Espere! Uma pessoa da Adaptação ficou de se encontrar comigo na estação. Esquecera-me por completo! Não consegui encontrá-la, compreende? Por isso, vou procurar um hotel. Há hotéis, não há? — Há. De onde é você? — Daqui. Nasci aqui. Com tais palavras regressou o sentimento de irrealidade de tudo e deixei de ter a certeza da existência tanto daquela cidade, que só existia dentro de mim, como desta outra cidade espectral com salas onde espreitavam cabeças de gigantes. Por isso, momentaneamente, pensei se não estaria a bordo e com outro pesadelo particularmente vivo do meu regresso. — Bregg — ouvi a sua voz, como se viesse de longe. Estremeci. Esquecera-me dela por completo. — Diga. — Fique. — O quê? Ela não falou. — Quer que eu fique? Voltou a não falar. Aproximei-me dela, inclinei-me para a cadeira, agarrei-a pelos braços frios e levantei-a. Ficou de pé, submissa. Inclinou a cabeça para trás. Vi-lhe brilhar os dentes. Não a queria. Só queria dizer-lhe: «Mas está com medo», e ouvi-la responder que não estava. Mais nada. Ela tinha os olhos fechados, mas de súbito a esclerótica brilhou-lhe entre as pálpebras. Inclinei-me para o seu rosto e fitei-lhe de perto os olhos vítreos, como se desejasse conhecer o seu medo, compartilhá-lo. Ofegante, debateu-se para se libertar, mas eu não me apercebi. Só abri as mãos quando a ouvi gemer: «Não! Não!» Caiu, praticamente. Ficou encostada à parede, a bloquear parte de uma grande cara bochechuda que chegava ao tecto e que, atrás do vidro, falava incessantemente, com exagero, a mover os lábios enormes e a língua carnuda. — Nais… — murmurei calmamente, e baixei as mãos. — Não se aproxime de mim! — Mas foi você que disse… Os seus olhos estavam desvairados. Comecei a andar de um lado para o outro. Seguiu-me com o olhar, como se eu fosse… como se estivesse numa jaula… — Vou-me embora — anunciei. Ela não falou. Quis acrescentar qualquer coisa — algumas palavras de desculpa, de agradecimento, para não partir assim —, mas não fui capaz. Se ela tivesse tido medo apenas como uma mulher tem medo de um homem, de um homem estranho, até mesmo ameaçador, desconhecido, eu não teria ligado importância; mas tratara-se de outra coisa. Olhei-a e senti a cólera crescer em mim. Agarrar aqueles braços brancos nus e sacudi-la… Virei-me e saí. A porta exterior cedeu quando a empurrei. O grande corredor estava quase completamente às escuras. Não consegui encontrar a saída para o terraço, mas encontrei uns cilindros cheios de uma luz azulada, velada: elevadores. Aquele de que me aproximei já vinha para cima. Talvez a pressão dos meus pés no limiar tivesse bastado. O elevador levou muito tempo a descer. Vi camadas alternadas de escuridão e cortes transversais de tectos. Brancos com centros avermelhados, como gordura sobre músculo, passavam para cima e eu perdi-lhes o conto. O elevador descia, descia, como numa viagem para o abismo, como se eu tivesse sido atirado por uma conduta esterilizada e aquele colossal edifício, profundamente mergulhado no sono e na segurança, estivesse a desfazer-se de mim. Uma parte do cilindro transparente abriu-se e comecei a andar. Mãos nas algibeiras, escuridão, passada longa e firme, aspirei sofregamente o ar frio, a sentir o movimento das minhas narinas e o coração a trabalhar devagar, a bombear sangue. Tremeluziam luzes nas aberturas baixas, na estrada, cobertas de tempos a tempos pelas máquinas silenciosas. Não se via nenhum peão. Entre silhuetas pretas brilhava uma leve claridade e eu pensei que talvez fosse um hotel. Era apenas um passadiço iluminado. Meti-me nele. Por cima de mim, passavam as extensões esbranquiçadas das estruturas; algures, ao longe, por cima das arestas pretas dos edifícios, sucediam-se as letras brilhantes dos noticiários. De súbito, o passadiço conduziu-me a um interior iluminado e parou. Desciam degraus largos, prateados como uma cascata silenciosa. A desolação surpreendeu-me. Desde que deixara Nais não encontrara um único transeunte. A escada rolante era muito comprida. Em baixo brilhava uma rua larga, com corredores para edifícios de ambos os lados. Vi pessoas paradas debaixo de uma árvore de folhas azuis — possivelmente não era uma árvore verdadeira —; aproximei-me e depois afastei-me. Estavam a beijar-se. Caminhei na direcção do som abafado de música. Devia tratar-se de algum restaurante ou bar aberto toda a noite, à beira da rua. Desejei entrar e perguntar onde havia um hotel. De súbito choquei, com o corpo todo, contra uma barreira invisível. Era uma chapa de vidro absolutamente transparente. A entrada ficava próximo. No interior, alguém começou a rir e apontou-me aos outros. Entrei. Um homem de camisola interior preta, um tanto ou quanto parecida com a minha própria camisola, mas com uma grande gola inflada, estava sentado de lado a uma mesa, de copo na mão, a olhar para mim. Parei defronte dele. O sorriso petrificou-se na boca semiaberta. O ruído de vozes dimimuiu. Só a música tocava, parecendo que atrás de uma parede. Uma mulher emitiu um estranho e fraco som. Olhei em redor, para os rostos imóveis, e saí. Só quando me encontrei de novo na rua me lembrei de que tivera a intenção de perguntar onde ficava um hotel. Entrei numa alameda. Estava cheia de montras. Escritórios de turismo, lojas de artigos de desporto, manequins em poses diversas. Não se tratava exactamente de montras, pois estava tudo na rua, de cada lado do passeio erguido que lhe corria pelo meio. Por diversas vezes tomei erradamente as figuras que lá se moviam por pessoas. Eram marionetas de publicidade, que efectuavam repetidamente os mesmos gestos. Observei uma delas, durante um bocado. Era um boneco quase do meu tamanho, uma caricatura de bochechas dilatadas, a tocar flauta. Fazia-o tão bem que senti o impulso de lhe dirigir a palavra. Mais adiante havia salões de uns jogos quaisquer. Giravam grandes rodas com as cores do arco-íris, tubos de prata pendiam do tecto e entrechocavam-se com o som de guizos de trenó, brilhavam espelhos prismáticos. Mas estava tudo deserto. Mesmo no fim da alameda às escuras acendeu-se um letreiro: aqui hahaha. Desapareceu de novo. Encaminhei-me na sua direção. O aqui hahaha acendeu-se outra vez e desapareceu novamente, como se o tivessem soprado. Quando voltou a acender-se vi uma entrada. Ouvi vozes.Entrei através de uma cortina de ar tépido em movimento. Dentro estavam dois carros sem rodas. Brilhavam algumas lâmpadas e, debaixo delas, três pessoas gesticulavam acaloradamente, como se discutissem. Dirigi-me a elas. — Olá! Nem sequer se viraram. Continuaram a falar muito depressa e eu compreendi muito pouco do que diziam. «Então trabalha, então trabalha duro» dizia em voz fininha o mais baixo, que era barrigudo. Usava um barrete alto. — Cavalheiros, procuro um hotel. Onde há…? Não me prestaram atenção, como se eu não existisse. Fiquei furioso. Sem uma palavra, meti-me no meio deles. O que se encontrava mais perto de mim — vi olhos estúpidos, com o branco à vista e lábios trémulos — perguntou com receio: — Tenho de trabalhar? Trabalhe você! Exactamente como se estivesse a falar comigo. — Por que armam em surdos? — perguntei e, de súbito, do lugar onde me encontrava, como se saísse de mim, do meu peito, soou um grito agudo: — Eu mostro-lhe como é! Palavra que mostro! Saltei para trás. Apareceu o gordo, do barrete. Fora ele que falara. Estendi a mão para lhe agarrar no braço, mas os meus dedos penetraram nele e só agarraram o ar. Fiquei especado, aparvalhado, e eles continuaram a tagarelar. De súbito, tive a impressão de que da escuridão por cima dos carros, lá muito no alto. alguém me observava. Aproximei-me mais da luz e vi as manchas pálidas das caras. Lá em cima havia qualquer coisa semelhante a uma varanda. Ofuscado pela luz, pouco consegui ver, mas foi o suficiente para me aperceber da grande figura de parvo que fizera. Saí dali como se alguém corresse atrás de mim. A rua seguinte subia e terminou numa escada rolante. Pensei que talvez encontrasse um infor e tomei a escada de tom dourado-claro. Encontrei-me numa praceta circular, muito pequena. No centro erguia-se uma coluna alta e transparente como vidro. Dançava qualquer coisa nela: formas purpúreas, castanhas e violeta, sem semelhanças fosse com o que fosse meu conhecido, como esculturas abstractas que tivessem ganhado vida, mas muito interessantes. As cores dilatavam-se. primeiro uma e depois outra, concentravam-se e adquiriam forma de um modo muito cómico. Essa melée de formas, ainda que desprovida de rosto, cabeça, pernas e braços, tinha um carácter muito humano, lembrava mesmo uma caricatura. Passados momentos, descobri que o violeta era um bufão vaidoso, arrogante e ao mesmo tempo cobarde; quando ele explodia num milhão de bolhas, o azul entrava em acção, angelical, modesto, senhor de si, mas de certo modo santimonial, como se rezasse para consigo. Não sei quanto tempo estive a olhar. Nunca tinha visto nada que se assemelhasse, nem de longe. Além de mim, não estava ali mais ninguém, embora o trânsito dos carros pretos fosse abundante. Nem sequer sabia se iam ou não ocupados, pois não tinham janelas. Da praceta circular partiam seis ruas, umas a subir e outras a descer. Parecia.serem extensas, um delicado mosaico de luzes coloridas. Quanto a infor, nada. Entretanto, sentia-me exausto, e não só fisicamente. Tinha a sensação de que não podia absorver mais impressões. Ocasionalmente, enquanto andava, perdia a noção das coisas, embora não dormitasse. Não me lembro como nem quando entrei numa larga avenida. Num cruzamento, afrouxei o passo, levantei a cabeça e vi a luminosidade da cidade nas nuvens. Fiquei surpreendido, pois julgara que caminhava por uma artéria subterrânea. Continuei a andar, agora num mar de luzes em movimento e de montras sem vidro à frente, entre manequins gesticulantes que giravam como piões e faziam ginástica furiosamente; estendiam objectos luminosos uns aos outros e estavam a inflar qualquer coisa, mas eu nem sequer olhei na sua direcção. Ao longe, caminhavam diversas pessoas — mas eu não tive a certeza de que não fossem bonecos e não tentei alcançá-los. Os edifícios afastaram-se e vi um enorme letreiro — parque terminal — e uma reluzente seta verde. Uma escada rolante partia do espaço entre os edifícios, entrava subitamente num túnel prateado com uma espécie de pulsação dourada nas paredões, como se por baixo da máscara de mercúrio das paredes o nobre metal corresse deveras. Senti uma lufada de ar quente, apagou-se tudo e encontrei-me num pavilhão de vidro. Tinha a forma de uma concha, com um tecto com nervuras e um brilho verde quase imperceptível. A luz saía de veios delicados, como a luminescência de uma única e trémula folha gigantesca. Abriam-se portas em todas as direcções. Para lá delas, escuridão e pequenas letras a suceder-se no chão: parque terminal parque terminal… Saí. Era realmente um parque. As árvores murmuravam incessantemente, invisíveis na escuridão. Não senti nenhum vento. Devia estar a soprar mais alto e a voz das árvores, firme e majestosa, envolvia-me num arco invisível. Senti-me só pela primeira vez, mas não como se estivesse só numa multidão, pois a sensação era agradável. Devia estar um certo número de pessoas no parque: ouvia murmúrios, ocasionalmente via brilhar a mancha de uma cara e uma vez até rocei por alguém. As copas das árvores uniam-se, de modo que as estrelas só eram visíveis através dos seus ramos. Lembrava-me de que para chegar ao parque tivera de subir e de que na praceta das cores dançantes e onde as ruas estavam cheias de montras tivera sobre mim um céu enevoado. Como se explicava então que, um nível mais alto, o céu que via agora fosse estrelado? Não consegui entender. As árvores afastavam-se, mas antes de ver a água cheirei-a: captei o odor de lodo, de folhas a apodrecer ou encharcadas. Estaquei. Um pequeno matagal formava um círculo à volta do Iago. Ouvi o roçagar de juncos e canas e ao longe, do outro lado, vi erguer-se, numa imensidade única, uma montanha de rocha luminosa e vítrea, um maciço translúcido acima das planícies da noite. Os penhascos verticais emanavam uma radiância espectral pálida e azulada, bastião após bastião, muralhas de cristal, abismos — e aquele colosso cintilante, impossível e inacreditável, reflectia-se numa cópia mais longa e mais pálida nas águas pretas do lago. Fiquei a olhar, estupefacto e extasiado. O vento trazia ecos ténues de música e, esforçando os olhos, consegui ver os socalcos e os terraços horizontais do gigante. Compreendi de repente que, pela segunda vez, estava a ver a estação, o imponente Terminal por onde vagueara perdido no dia anterior, e que talvez até estivesse a olhá-lo do fundo da negra extensão que tanto me intrigara no lugar onde encontrara Nais. Aquilo ainda seria arquitectura ou construção de montanhas? Deviam ter compreendido que ao ultrapassarem certos limites tinham de abandonar a simetria e a regularidade da forma e aprender com o que era maior — inteligentes estudiosos do Planeta! Contornei o lago. O colosso parecia guiar-me com a sua subida luminosa e imóvel. Sim, era preciso coragem para desenhar tal forma, para lhe dar a crueldade do precipício, a obstinação e a aspereza de penhascos e picos, mas sem cair na imitação mecânica, sem perder nada, sem falsificar. Voltei à muralha de árvores. O azul do Terminal, pálido contra o céu negro, ainda se via através dos ramos. Mas, finalmente, desapareceu, oculto pelo bosque. Afastei com as mãos os gravetos; silvas prendiam-se à camisola e batiam nas pernas das minhas calças; o orvalho, sacudido de cima, caía como chuva na minha cara. Meti algumas folhas na boca e mastiguei-as; eram folhas novas e amargas. Pela primeira vez desde o meu regresso senti que já não desejava, não procurava, não necessitava de uma única coisa; bastava-me andar às cegas para a frente, através daquela escuridão, no bosque murmurante. Teria imaginado que seria assim, 10 anos antes? O matagal abriu-se e surgiu um carreiro sinuoso. O saibro rangeu debaixo dos meus pés, a brilhar levemente. Embora preferisse a escuridão, caminhei a direito para um círculo de pedra, onde se encontrava de pé uma figura humana. Não sabia de onde vinha a luz que a banhava; o lugar estava deserto e à sua volta havia bancos, uma mesa caída e areia solta e funda. Senti os meus pés enterrarem-se nela e achei-a morna, apesar da frescura da noite. Debaixo de uma abóbada suportada por colunas rachadas e em ruínas encontrava-se uma mulher de pé, como se estivesse à minha espera. Pude ver-lhe a cara, o fluir de centelhas dos discos de diamantes que lhe ocultavam as orelhas, o vestido branco que a sombra da noite tomava prateado. Aquilo não era possível. Um sonho? Encontrava-me ainda a dúzias de passos dela quando começou a cantar. Entre as árvores invisíveis a sua voz era fraca, quase infantil, e eu não conseguia distinguir as palavras que cantava. Mas talvez não ouvesse palavras. Tinha a boca semiaberta, como se bebesse, e no seu rosto não havia nenhum sinal de esforço, não havia nada além de um olhar fixo, como se tivesse visto alguma coisa impossível de ver e fosse disso que cantava. Receoso de que me visse, caminhei cada vez mais devagar. Já me encontrava no halo de luminosidade que cercava o círculo de pedra. A sua voz tomou-se mais forte, a apelar para a escuridão, a suplicar; os seus braços pendiam como se tivesse esquecido que os tinha, como se naquele momento não tivesse mais nada além da voz e se perdesse nela, como se tivesse deitado fora tudo o mais e estivesse a dizer adeus, sabendo que com o último som moribundo algo mais do que a canção terminaria. Nunca imaginara que tal coisa fosse possível. Ela calou-se e eu continuei a ouvir a sua voz. De súbito, soaram passos ligeiros atrás de mim: era uma rapariga que corria para a cantora, seguida por alguém. Com uma gargalhada curta e gutural voou pelos degraus acima e correu através da cantora. Ouem a perseguia surgiu à minha frente, em contornos escuros, e desapareceram ambos. Ouvi ainda uma vez o riso provocante da rapariga e fiquei como um bloco de madeira, pregado na areia, sem saber se devia rir ou chorar. A cantora inexistente trauteava suavemente qualquer coisa. Não quis ouvir. Afastei-me na escuridão como uma criança a quem tivessem mostrado a falsidade de um conto de fadas. Tinha sido uma espécie de profanação. A sua voz perseguiu-me, enquanto eu caminhava. Descrevi uma curva, o caminho continuava, e vi sebes a brilhar tenuemente, ramos húmidos de folhas suspensas sobre uma cancela de metal. Abri-a. Havia mais luz, atrás dela. As sebes terminaram numa clareira larga; da erva irrompiam pedregulhos, um dos quais se moveu e aumentou em tamanho. Vi as chamas pálidas de dois olhos. Parei. Era um leão. O animal levantou-se pesadamente, primeiro os quartos dianteiros. Finalmente vio-o todo, a cinco passos dc mim. Tinha uma juba rala e emaranhada. Espreguiçou-se uma, duas vezes, e com uma lenta ondulação dos ombros aproximou-se de mim, sem fazer o mínimo ruído. Mas eu já me refizera. — Pronto, pronto, porta-te bem — disse. Nâo podia ser real, era um fantasma como a cantora, como os outros que vira junto dos carros pretos… Bocejou a um passo de distância. Na caverna escura da boca brilharam as presas. Fechou as mandíbulas com um som que lembrou um cadeado a ser fechado e chegou-me às narinas o fedor do seu hálito. Rosnou. Senti pingos da sua saliva e, antes que tivesse tempo para me aterrorizar, bateu-me no quadril com a enorme cabeça e roçou-se contra mim, a ronronar. Senti um estremecimento idiota no peito… Apresentou-me a parte inferior do pescoço, com a pele pesada e solta. Meio consciente, comecei a coçá-lo, a afagá-lo, e ele ronronou ainda mais. Atrás dele brilhou outro par de olhos, outro leão… não, era uma leoa, que o afastou. A garganta do leão emitiu um som, mas era um ronrom e não um rugido. A leoa persistiu. Ele bateu-lhe com uma pata e ela rosnou furiosamente. «Isto ainda acabará mal», pensei. Estava indefeso e os leões estavam tão vivos e eram tão genuínos quanto era possível imaginar. Encontrava-me entre o fedor forte dos seus corpos. A leoa continuava a rugir. De súbito, o leão soltou a juba áspera das minhas mãos, virou a enorme cabeça para ela e rugiu também. Ela estendeu-se no chão, silenciosa. «Tenho de ir andando», disse-lhes mudamente, apenas com os lábios. Comecei a recuar na direcção da cancela, lentamente. Não foi ura raomento agradável, mas o leão pareceu não reparar em mim. Deitou-se pesadamente e voltou a parecer um pedregulho alongado. A leoa aproximou-se e bateu-Ihe com o focinho. Quanto fechei a cancela atrás de mim tive de fazer um grande esforço para não desatar a correr. Tinha os joelhos um pouco fracos e a garganta seca, e quando pigarreei o pigarro transformou-se numa gargalhada descabelada. Lembrei-me do que dissera ao leão: «Pronto, pronto, porta-te bem», convencido de que era apenas uma ilusão. As copas das árvores recortavam-se mais distintamente no céu; começava a alvorecer. Senti-me grato por isso, pois não sabia como sair do parque, que entretanto ficara completamente vazio. Passei pelo círculo de pedra onde a cantora aparecera; na alameda seguinte deparou-se-me um robot a aparar a relva. Não sabia nada a respeito de nenhum hotel, mas disse-me como chegaria à escada rolante mais próxima. Creio que desci vários níveis e ao desembocar na rua, no fundo, fiquei surpreendido por ver de novo o céu por cima de mim. Mas a minha capacidade de me surpreender estava quase esgotada. Já tinha a minha conta de surpresas. Caminhei um bocado. Lembro-me de que, mais tarde, me sentei junto de uma fonte, embora talvez não fosse uma fonte. Levantei-me e caminhei na luz que alastrava do novo dia, até acordar do meu entorpecimento defronte das grandes e brilhantes montras e das letras ígneas do Alcaron Hotel. No cubículo do guarda-portão, que parecia uma banheira gigantesca virada ao contrário, estava sentado um robot de belo estilo e semitransparente, com braços compridos e delicados. Sem perguntar nada, estendeu-me o livro de registo de hóspedes; assinei-o e subi, a segurar num pequeno bilhete triangular. Alguém — não faço ideia quem — me ajudou a abrir a porta — ou melhor, a abriu por mim. Paredes de gelo e, nelas fogos em circulação. Debaixo da janela, à minha aproximação, emergiu uma cadeira do nada e deslizou para debaixo de mim. O tampo de uma mesa começara também a descer, a formar uma espécie de secretária, mas o que eu queria era uma cama. Não vi nenhuma e nem sequer tentei procurar: deitei-me na fofa carpete e adormeci imediatamente na luz artificial do quarto sem janela, porque o que eu tomara por janela era, evidentemente, uma televisão. Adormeci por isso com o conhecimento de que, atrás da placa de vidro, uma cara gigantesca me fazia caretas, meditava, ria, tagarelava… Libertou-me um sono que parecia a morte, um sono em que até o tempo se imobilizou. II Com os olhos ainda fechados, toquei no peito. Tinha a camisola vestida. Se adormecera sem me despir, isso significava que estava de vigia. Apeteceu-me chamar: «Olaf!», e sentei-me bruscamente. Estava num hotel e não no Prometheus. Lembrei-me de tudo: dos labirintos da estação, da rapariga, da minha iniciação, do seu medo, do penhasco azulado do Terminal sobre o lago negro, da cantora, dos leões… Ao procurar a casa de banho encontrei ocasionalmente a cama: estava numa parede e descia num rotundo quadrado cor de pérola quando se premia qualquer coisa. Na casa de banho não havia banheira, não havia nada além de placas brilhantes no tecto e uma pequena depressão para os pés, forrada de um plástico esponjoso. Também não parecia um chuveiro. Senti-me como um homem de Neanderthal. Despi-me rapidamente e depois fiquei com a roupa na mão, pois não havia cabides. Mas havia um pequeno compartimento na parede e atirei tudo para lá. Perto, vi três botões: azul, encarnado e branco. Premi o branco. A luz apagou-se. O vermelho. Ouviu-se um som esguichante, mas não era água e sim um vento forte, que soprava ozono e mais qualquer coisa. Envolveú-me; gotas densas e cintilantes formaram-se-me na pele, efervesceram e evaporaram-se e nem sequer tive a sensação de humidade. Era como se uma quantidade de eléctrodos macios me massajasse os músculos. Experimentei o botão azul e o vento mudou. Agora parecia trespassar-me, o que me causava uma sensação muito peculiar. Pensei imediatamente que se uma pessoa se habituasse àquilo acabaria por gostar. Na Adaptação, em Luna, não tinham aquilo; tinham apenas casas de banho vulgares. Perguntei a mim mesmo porquê. O meu sangue circulava com mais força e eu sentia-me bem. O único problema era não saber como lavar os dentes nem com quê. Desisti, a esse respeito. Na parede havia mais uma porta onde se lia: «Roupões de banho.» Olhei lá para dentro, mas não vi roupões nenhuns: apenas três garrafas metálicas, um pouco parecidas com sifões. Mas, entretanto, eu secara por completo e não precisava de me enxugar. Abri o compartimento onde metera a roupa e tive um choque: estava vazio. Ainda bem que colocara as cuecas em cima do compartimento! Apenas com elas vestidas, voltei ao quarto e procurei um telefone, a fim de averiguar o que acontecera à minha roupa. Foi uma trabalheira. Finalmente lá o encontrei junto da janela — mentalmente, ainda chamava janela ao écran da televisão. Saltou da parede quando comecei a praguejar alto: creio que reagiu ao som da minha voz. Que mania idiota aquela de esconder as coisas nas paredes! Perguntei pela minha roupa ao recepcionista que atendeu. — Pô-las no compartimento da lavandaria — respondeu um barítono suave. — Estará pronta dentro de cinco minutos. «Admissível», pensei. Sentei-me perto da secretária, cujo topo se colocou prestavelmente debaixo fio meu cotovelo no momento em que me inclinei para a frente. Como funcionava aquilo? Não havia necesidade de me preocupar com esses pormenores; a maioria das pessoas beneficia da tecnologia da sua civilização sem a entender. Fiquei ali sentado nu, apenas com as cuecas, a considerar as possibilidades. Podia ir para a Adaptação. Se se tratasse apenas de uma apresentação da tecnologia e dos costumes, não teria hesitado, mas em Luna reparara que, ao mesmo tempo, tentavam instilar-nos maneiras especiais de abordar os assuntos e até o julgamento dos fenómenos. Por outras palavras, começavam com uma escala de valores preparada e se uma pessoa os não aceitava, atribuíam isso — e, em geral, tudo — a conservadorismo, resistência subconsciente, hábitos enraizados, etc. Eu não tinha intenção nenhuma de desistir desses hábitos e dessa resistência enquanto não estivesse convencido de que aquilo que me ofereciam era melhor — e as lições da noite anterior não tinham feito nada para que mudasse de ideias. Não queria escola infantil nem reabilitação, certamente não com tal polidez e imediatamente. Era curioso não me terem aplicado a tal betrização. Tinha de descobrir porquê. Podia procurar um de nós: Olaf. Isso estaria em evidente contravenção das recomendações da Adaptação. Sim, porque eles nunca ordenavam; repetiam constantemente que agiam no melhor dos meus interesses, que podia fazer o que me apetecesse, até saltar da Lua para a Terra (o chistoso Dr. Abs), se tinha assim tanta pressa. Por mim, estava decidido a ignorar a Adaptação, mas isso podia não convir a Olaf. De qualquer modo, escrever-Ihe-ia. Tinha a sua morada. Trabalho. Tentar arranjar emprego? Em que qualidade? Piloto? E efectuar carreiras Marte-Terra-Marte? Era especialista nesse género de coisa, mas… De súbito, lembrei-me de que tinha algum dinheiro. Não era exactamente dinheiro, pois agora tinha outro nome qualquer, mas isso não fazia diferença nenhuma, quanto a mim, na medida em que tudo se podia obter com ele. Pedi à recepcionista uma ligação para a cidade. No receptor, um cantar distante. O telefone não tinha números nem disco. Precisaria de indicar o nome do banco? Tinha-o escrito num cartão, mas o cartão estava com a minha roupa. Fui ver à casa de banho e lá estava no compartimento, recém-lavada. Os meus objectos, incluindo o cartão, estavam nas algibeiras. O banco não era um banco: chamava-se Omnilox. Disse o nome e. rapidamente, como se tivessem esperado o telefonema, uma voz áspera respondeu: — Aqui Omnilox. — Chamo-me Bregg, Hal Bregg, e disseram-me que tinha uma conta aberta aí… Gostaria de saber qual o seu montante. Ouvi um estalido e outra voz, mais alta, perguntou: — Hal Bregg? — Sim. — Quem abriu a conta? — Cosnav, Cosmic Navigation, por ordem do Instituto Planetológico e da Comissão de Assuntos Cósmicos das Nações Unidas, mas isso foi há 127 anos. — Tem alguma identificação? — Não. Tenho apenas um cartão da Adaptação de Luna, do director Oswann… — Isso serve. A situação da conta: 26 407 ets. — Ets? — Sim. Deseja mais alguma coisa? — Gostaria de levantar algum din… quero dizer, alguns ets. — Em que forma? Talvez deseje um caLiter? — Que é isso? Um livro de cheques? — Não. Poderá pagar imediatamente a contado. — Está bem. — De que importância deverá ser o caLster? — Francamente não sei… cinco mil… — Cinco mil. Óptimo. Quer que lho mandemos ao hotel? — Sim. Espere… esqueci-me do nome deste hotel. — Não é daquele de onde está a falar? — É o Alcaron. Mandar-lhe-emos o calster imediatamente. Só mais uma coisa: a sua mão direita não se modificou, pois não? — Não. Porquê? — Por nada. Se se tivesse modificado, teríamos de adaptar o calster. Recebê-lo-á muito em breve. — Obrigado — agradeci, e desliguei. Vinte e seis mil… A quanto equivaleria isso? Não fazia a mínima ideia. Qualquer coisa começou a zumbir. Um rádio? Era o telefone. Levantei o auscultador. — Bregg? — Sim. — O meu coração bateu mais depressa, mas apenas durante um momento; reconheci a voz dela. — Como soube onde eu estava? — perguntei, pois ela não falou imediatamente. — Soube por um infor. Bregg… Hal… escute, queria explicar-lhe… — Não tem de explicar nada, Nais. — Está zangado. Mas tente compreender… — Não estou zangado. — Francamente, Hal… Venha hoje a minha casa. Vem? — Não, Nais. Diga-me, por favor: quanto é 26 mil ets? — Quanto? Que quer dizer? Hal, tem de vir. — Bem… quanto tempo se pode viver com essa quantia? — Quanto tempo quiser. No fim de contas, viver não custa nada. Mas esqueçamos isso. Hal, se quisesse… — Espere. Quantos se gasta num mês? — Varia. Umas vezes vinte, outras cinco, outras nada… — Ah! Obrigado. — Escute, Hal! — Estou a escutar. — Não acabemos assim… — Não estamos a acabar nada — respondi —, porque não começou nada, nunca. Obrigado por tudo, Nais. Pousei o auscultador. Viver não custava nada? Isso era o que mais me interessava, de momento. Significaria que havia certas coisas, certos serviços, grátis? De novo o telefone. — Aqui Bregg. — Fala da recepção, Sr. Bregg. O Omnilox mandou-lhe um calster. Vou-lho enviar para cima. — Obrigado. Olhe… — Diga? — Um quarto paga-se? — Não, senhor. — Nada? — Nada, senhor. — Há um restaurante no hotel? — Há quatro. Deseja o pequeno-almoço no seu quarto? — Está bem… Pagam-se as refeições? — Não, senhor. Agora tem o calster. O pequeno-almoço será servido dentro de momentos. O robot desligou e eu não tive tempo de perguntar onde devia procurar o calster. Não fazia a mínima Ideia do seu aspecto. Levantei-me da secretária que, abandonada, imediatamente encolheu e mirrou, e vi uma espécie de mesinha sair da parede próxima da porta. Em cima dela encontrava-se um objecto achatado, embrulhado em plástico transparente e parecido com uma pequena cigarreira. Num dos lados tinha um série de pequenas janelinhas em que se viam os números 1100 1000. Ao fundo havia dois minúsculos botões com a indicação de «1» e «O». Olhei o objecto, intrigado, até compreender que a importância de 5000 ets tinha sido traduzida no sistema binário. Premi o «1» e caiu-me na mão um pequeno triângulo de plástico com o núnjero 1 gravado. Aquilo era, afinal, uma espécie de máquina de gravar ou de imprimir dinheiro até à quantia indicada nas janelinhas. O número de cima ficou diminuído numa unidade. Estava vestido e pronto para sair quando me lembrei da Adaptação. Telefonei-lhes e disse-lhes que não conseguira encontrar o seu homem no Terminal. — Estávamos a ficar preocupados a seu respeito — disse uma voz de mulher —. mas esta manhã soubemos que estava no Alcaron… Sabiam onde éu estava. Porque me não tinham então encontrado na estação? Fora planeado nesse sentido, sem dúvida. Pretendia-se que eu me perdesse, a fim de me aperceber de como fora temerária a minha «rebelião» em Luna. — A sua informação está correcta — respondi cortesmente. — Neste momento vou sair para ver a cidade. Voltarei a comunicar mais tarde. Saí do quarto. Sucediam-se os corredores, prateados e em movimento, e a parede movia-se com eles — o que era uma novidade para mim. Tomei uma escada rolante que descia e passei por bares em andares sucessivos. Um deles era verde, como se estivesse submerso em água. Cada andar tinha a sua cor dominante, prateada ou dourada, e isso já começara a aborrecer-me. E ao fim de um único dia! Era estranho que eles gostassem. Estranhos gostos… Mas depois lembrei-me da vista do Terminal, à noite. Precisava de adquirir roupas. Saí, com essa decisão tomada. O céu estava carregado, mas as nuvens eram brilhantes, muito altas, e ocasionalmente o Sol brilhava por entre elas. Só então vi — do bulevar por cujo centro descia uma série dupla de grandes palmeiras com folhas rosadas como línguas — um panorama da cidade. Os edifícios erguiam-se como ilhas, separados, e aqui e ali subia um pináculo para o céu, um jacto solidificado de qualquer material líquido, de uma altura incrível. Tinham sem dúvida quilómetros inteiros. Sabia — alguém mo dissera em Luna — que já ninguém os construía e que a febre de construir edifícios altos morrera de morte natural pouco depois de os existentes terem sido erguidos. Eram monumentos a determinada época arquitectónica, pois, além da sua imensidade, só ultrapassada pela esbeltez da sua forma, não tinham nada que cativasse os olhos. Pareciam tubos castanhos e dourados, brancos e pretos, com riscas transversais, ou prateados, que serviam para suportar ou encurralar as nuvens, e as almofadas de aterragem que irrompiam deles, contra o céu, e que pairavam no ar em apoios tubulares, lembravam estantes de livros. Os novos edifícios eram muito mais atraentes e não tinham janelas para que todas as paredes pudessem ser decoradas. Toda a cidade assumia o aspecto de uma gigantesca exposição de arte, uma galeria para mestres da cor e da forma. Não posso dizer que tenha gostado de tudo quanto adornava aquelas alturas de 20 e 30 andares, mas para um tipo de 150 anos confesso que não me senti muito escandalizado. Para o meu gosto, os edifícios mais atraentes eram os divididos ao meio por jardins. Talvez não fossem casas — o facto de as estruturas serem divididas ao meio e pareceram assentar em almofadas de ar (as paredes dos jardins altos eram de vidro) dava uma impressão de leveza. Ao mesmo tempo, atravessavam os edifícios faixas de um verde ondulado, agradavelmente irregulares. Nos bulevares, ao longo das fileiras de carnudas palmeiras, de que eu não gostava, definitivamente, fluíam dois rios de automóveis pretos. Sabia já que se chamavam gleeders. Por cima dos edifícios voavam outros veículos, que no entanto não eram helicópteros nem aviões. Pareciam lápis afiados em ambas as extremidades. Nos passadiços viam-se algumas pessoas, mas não tantas como houvera na cidade um século antes. Verificara-se um acentuado descongestionamento do trânsito, especialmente pedestre, talvez devido à multiplicação de níveis, pois por baixo da cidade que eu vira alastravam andares subterrâneos sucessivos e mais baixos, com ruas, praças e lojas — um infor de esquina disse-me, por exemplo, que era melhor comprar no nível Sereano. Era um infor de primeira categoria, ou talvez eu tivesse aprendido a exprimir-me melhor, pois deu-me um livrinho de plástico com quatro desdobráveis e mapas do sistema de trânsito da cidade. Quando queria ir a qualquer lado, tocava no nome impresso em tom prateado — rua, nível, praça — e no mapa acendia-se imediatamente um circuito de todas as ligações necessárias. Também podia viajar por gleeder. Ou por rasí. Ou, finalmente, a pé. Portanto, quatro mapas. Mas já me apercebera de que andar a pé (mesmo com os passadiços móveis e as escadas rolantes) demorava, frequentemente, muitas horas. O Sereano, se não estava enganado, era o terceiro nível. E mais uma vez a cidade me surpreendeu: ao sair do túnel encontrei-me não debaixo do chão, mas sim numa rua debaixo do céu e sob a intensa luz do Sol. No centro de uma praça cresciam grandes pinheiros, mais adiante pináculos às riscas assumiam uma tonalidade azul e, na outra direcção, atrás de uma pequena piscina onde chapinhavam crianças, a percorrer a água em pequenas bicicletas coloridas, erguia-se um arranha-céus branco, atravessado por faixas verde-palma e com uma estrutura muito peculiar, em forma de barrete e a brilhar como vidro, no cimo. Lamentei não se encontrar por ali ninguém que pudesse interrogar acerca daquela curiosidade. Depois lembrei-me subitamente — ou melhor, o meu estômago lembrou-me — de que não tomara o pequeno-almoço, pois esquecera-me por completo de que tinham ficado de mo levar ao quarto, no hotel, e eu partira sem esperar por ele. Talvez o robot da recepção se tivesse enganado. Voltei, pois, ao infor. Já não fazia nada sem primeiro me informar exactamente do porquê e do como; além do mais, o infor podia reservar-me um gleeder, embora eu ainda não estivesse preparado para o pedir, pois não sabia como se entrava na maquineta, quanto mais o que deveria fazer depois. Mas tinha tempo. No restaurante, bastou-me um olhar à lista para perceber que era grego para mim. Pedi firmemente um pequeno-almoço, um normal pequeno-almoço. — Ozote, kress ou herma? Se o criado fosse humano, ter-lhe-ia pedido que me servisse o que ele próprio preferia, mas era um robot. A um robot tanto fazia. — Há café? — perguntei, pouco à vontade. — Há. Kress, ozote ou herma? — Cafée… bem, o que der melhor com café… — Ozote — disse o robot e afastou-se. Êxito. Já devia ter tudo preparado, pois voltou imediatamente e com um tabuleiro tão carregado que desconfiei de alguma partida. Mas a visão do tabuleiro recordou-me que, além do bons que comera na véspera e de uma taça do famoso brit, não tinha comido nada desde que regressara. A única coisa familiar era o café, que parecia alcatrão fervido. As natas eram apresentadas em pequenos montinhos azuis e não provinham, definitivamente, de nenhuma vaca. Lamentei não poder observar ninguém, para saber como tudo aquilo se comia, mas aparentemente a hora do pequeno-almoço terminara, pois encontrava-me sozinho. Pequenos pratos em forma de crescente continhám massas fumegantes das quais emergiam coisas como paus de fósforo e em cujo centro se encontrava uma maçã assada — mas não era uma maçã, claro, assim como não eram paus de fósforo, e o que eu tomei por flocos de aveia começou a subir ao contacto da colher. Comi tudo. Estava tão esfomeado que a saudade do pão (do qual não havia nem vestígios) só me atacou mais tarde, quando o robot apareceu e aguardou a certa distância. — Quanto pago? — perguntei-lhe. — Nada, obrigado — respondeu-me. Era mais uma peça de mobiliário do que um manequim. Tinha um olho redondo, e cristal, e movia-se qualquer coisa lá dentro, mas eu não fui capaz de lhe espreitar para a barriga. Nem sequer havia ninguém a quem gratificar. Duvidei que me compreendesse se lhe pedisse um jornal; provavelmente já os não havia. Por isso, saí para ir fazer compras. Mas primeiro encontrei a agência de viagens. Uma revelação. Entrei. A grande sala prateada, com consolas cor de esmeralda (começava a estar cansado de tais cores), estava praticamente deserta. Montras de vidro fosco e enormes fotografias coloridas do Grand Canyon. da Cratera de Arquimedes, dos penhascos de Deimos, de Palm Beach e da Florida — de tal modo feitas que, ao olhá-las, se tinha a impressão de profundidade, e até as ondas do oceano se moviam, como se não se tratasse de fotografias e sim de janelas abertas para os verdadeiros cenários. Dirigi-me para o balcão que tinha o letreiro de Terra. Sentado ao balcão estava, evidentemente, um robot. Desta vez dourado. Ou melhor, salpicado de ouro. — Em que lhe posso ser útil? — Tinha uma voz profunda e se eu fechasse os olhos poderia jurar que quem me falara fora um homem musculoso e de cabelo escuro. — Quero uma coisa primitiva — respondi. — Acabo de regressar de uma longa viagem, muito longa, mesmo, e não desejo excesivo conforto. Quero paz e sossego, água, árvores… também pode haver montanhas. Mas teráde ser primitivo e antiquado. Coisa de há uns cem anos. Têm algo do género? — Se o deseja, temos de ter. As Montanhas Rochosas, Fort Plumm, Maiorca, as Antilhas… — Queria uma coisa que ficasse mais perto… Digamos, num raio de mil quilómetros. Há? — Clavestra. — Onde é isso? Apercebera-me de que não tinha dificuldade nenhuma em falar com robots, pois absolutamente nada os surpreendia. Eram incapazes de sentir surpresa. Uma qualidade muito apreciável. — Uma antiga f)ovoacão mineira perto do Pacífico. As minas não são exploradas há quase quatrocentos anos. Interessantes excursões em passadiços subterrâneos. Convenientes ligações por gleeder e ulder. Casas de repwuso com cuidados médicos, vilas para alugar com jardins, piscinas e ar condicionado. O nosso escritório local organiza toda a espécie de actividades: excursões, jogos, reuniões sociais… Também há real, moot e stereon. — Sim, isso pode interessar-me — comentei. — Uma vila com jardim. Mas tem de ter água. Falou numa piscina, não falou? — Naturalmente, senhor. Uma piscina com pranchas de mergulhos. Também há lagos artificiais com cavernas subaquáticas, instalações bem equipadas para mergulhadores, espectáculos subaquáticos… — Deixe lá os espectáculos. Quanto custa? — Cento e vinte ets por mês. Mas se a compartilhar com outro grupo ficará por quarenta. — Compartilhar? — As vilas são muito espaçosas, senhor. Têm de doze a dezoito divisões, serviço automático, comida feita em casa, local ou exótica como preferir… — Sim, interessa-me… Muito bem. Chamo-me Bregg. Fico com ela. Como se chama o sítio? Clavestra? Pago agora? — Como desejar. Estendi-lhe o meu calster. Sucedia que só eu podia manejar o calster, mas o robot não se admirou absolutamente nada com a minha ignorância. Começava a gostar cada vez mais deles. Indicou-me o que tinha de fazer para que só saísse um disco com o número correcto gravado. Os números das janelinhas de cima foram reduzidos pela mesma importância e passaram a indicar o saldo da conta. — Quando posso lá ir? — Quando desejar. Em qualquer momento. — Mas… com quem partilharei a vila? — Com os Margers. Ele e ela. — Sabe dizer-me de que género de gente se trata? — Sei apenas que são um casal jovem. — Hmm… E não os incomodarei? — Não. Metade da vila está para alugar e o senhor terá um andar inteiro só para si. — Óptimo. Como lá chegarei? — Por ulder será melhor. — Como trato disso? — Terei o ulder à sua disposição no dia e hora que indicar. — Telefonarei do meu hotel. Pode ser? — Certamente, senhor. O pagamento começará a contar no momento em que entrar na vila. Quando saí, já tinha um plano vagamente delineado. Compraria livros e algum equipamento desportivo. O mais importante eram os livros. Assinaria também algumas revistas especializadas. Sociologia, física… Com certeza tinham sido feitas muitas coisas nos últimos 100 anos. Ah, e também precisava de comprar algumas roupas. Mas fui uma vez mais desviado desse objectivo. Ao contornar uma esquina vi — não acreditei nos meus olhos — um carro. Um carro verdadeiro. Talvez não fosse exactamente como eu os recordava: o corpo era todo em ângulos agudos. Tratava-se, no entanto, de um automóvel genuíno, com pneus, portas e um volante. E atrás dele encontravam-se outros. Atrás de uma grande montra, com um grande letreiro: antiguidades. Entrei. O proprietário, ou o vendedor, era um humano. «Uma pena», pensei. — Posso comprar um carro? — Com certeza. Qual desejaria? — São muito caros? — De quatrocentos a oitocentos ets. «Puxadote», pensei. Mas as antiguidades nunca tinham sido baratas. — E pode-se viajar nele? — indaguei. — Naturalmente. Não em toda a parte, é verdade… há restrições locais… mas, de modo geral, é possível. — E quanto a combustível? — perguntei, cauteloso, pois não fazia a mínima ideia do que se encontrava debaixo da capota. — Não haverá nenhum problema a esse respeito. Uma carga durar-lhe-á para toda a vida do carro. Incluindo, claro, os parastatos. — Muito bem. Gostava de uma coisa forte e durável. Não precisa de ser grande. Basta que seja veloz. — Nesse caso, sugeria-lhe este giabile ou aquele modelo ali… Conduziu-me por um grande salão, ao longo de uma série de carros que brilhavam como se fossem realmente novos. — Claro que não se podem comparar com os gleeders — observou o vendedor —, mas a verdade é que, hoje, um automóvel já não é um meio de transporte… Apeteceu-me perguntar-lhe o que era então, mas não disse nada. — Muito bem, quanto custa este? — apontei para uma limusina azul-pálido, com faróis prateados, embutidos. — Quatrocentos e oitenta ets. — Mas quero-o em Clavestra — expliquei. — Aluguei lá uma vila. Poderá obter a morada certa da agência de viagens desta rua. — Excelente, senhor. Poderá ser enviado por ulder, o que não lhe custará nada. — Deveras? Eu também sigo para lá de ulder. — Nesse caso, indique-nos a data e pô-lo-emos no seu ulder. Será a maneira mais simples. A não ser que prefira… — Não, não. Como disse está bem. Paguei o automóvel — afinal o calster dava muito jeito — e saí da loja de antiguidades envolto no cheiro de couro e borracha. Exótico. Com a roupa não tive sorte. Daquilo que conhecia não existia quase nada. Pelo menos, descobri o segredo das misteriosas garrafas que se encontravam no hotel, no compartimento onde se lia: «Roupões de banho.» Náo só roupões desse género, mas também fatos, peúgas, camisolas, roupa interior — era tudo feito poV spray. Compreendi como isso podia agradar às mulheres, pois fazendo esguichar de algumas dúzias de garrafas um líquido que solidificava imediatamente em tecidos de textura macia ou áspera — veludo, pele ou metal maleável —, podiam ter uma nova criação sempre que quisessem, só para uma ocasião. Claro que nem todas as mulheres o faziam pessoalmente: havia salões especiais de plasticização (era então isso que Nais fazia!). Mas a moda de roupa justa que resultava de tal processo não me atraía muito. E vestir-me mediante o manejo de um sifão parecia-me uma chatice desnecessária. Havia algumas coisas prontas a vestir, mas não me serviam. Até os tamanhos maiores eram quatro números abaixo do meu. No fim, decidi-me por roupas em garrafas, pois compreendi que a minha camisa não aguentaria muito mais tempo. Claro que podia mandar vir o resto das minhas coisas do Prometheus, mas a bordo não tinha fatos nem camisas brancas, vestuário que era muito pouco preciso a quem se encontrava nas imediações da constelação de Fomalhaut. Comprei também diversos pares de calças semelhantes ao cotim, que pareciam calças de jardineiro, mas que tinham pernas relativamente largas e cuja altura poderia ser aumentada. Paguei um et por tudo, ou seja, o preço das calças. O resto foi de graça. Pedi que mandassem as roupas para o hotel e deixei-me convencer a ir a uma loja de modas, por simples curiosidade. Fui recebido por um indivíduo com ar de artista, que começou por me avaliar visualmente e concordou que eu deveria usar roupas soltas. Compreendi que não se encontrava particularmente encantado comigo. Nem eu com ele. Acabei por adquirir algumas camisolas, que ele me fez enquanto eu esperava. Parei de braços levantados e ele deitou-se ao trabalho, a esguichar de quatro garrafas ao mesmo tempo. O líquido no ar, branco como espuma, assentava quase instantaneamente e dele surgiram camisolas de várias cores. Uma tinha uma risca atravessada no peito, vermelho sobre preto. Reparei que a parte mais difícil era terminar a gola e as mangas. Isso exigia claramente habilidade. Mais rico com a experiência, que aliás me não custara nada, encontrei-me na rua, sob o sol quente do meio-dia. Havia menos gleeders, mas, em contrapartida, por cima dos telhados, viam-se mais veículos em forma de charuto. As pessoas desciam nas escadas rolantes para níveis mais baixos; toda a gente tinha pressa, só eu dispunha de tempo. Durante cerca de uma hora aqueci-me ao sol, debaixo de um rododendro com uma espécie de cascas lenhosas deixadas pelas folhas mortas, e depois regressei ao hotel. No átrio, em baixo, adquiri um aparelho para me barbear. Quando comecei a barbear-me na casa de banho notei que tinha de me inclinar ligeiramente para usar o espelho, embora me lembrasse de que anteriormente fora capaz de me ver erecto. A diferença era mínima, mas um momento antes, ao despir a camisa, notara algo de estranho: ela estava mais curta. Como se tivesse encolhido. Observei-a cuidadosamente. Nem as mangas nem o colarinho apresentavam qualquer mudança. Coloquei-a em cima da mesa. Era a mesma camisa, mas quando voltei a vesti-la quase me não chegava abaixo da cintura. Eu é que mudara, não a camisa; crescera. Pensamento absurdo, mas que me preocupou. Telefonei ao infor do hotel a pedir a morada de um médico, de um especialista de medicina cósmica. Se fosse possível, preferia não ir a correr para a Adaptação. Após um breve silêncio, quase como se o autómato do outro lado hesitasse, ouvi a morada. Morava um médico na mesma rua, a alguns quarteirões de distância. Fui consultá-lo. Um robot conduziu-me a uma sala grande e penumbrenta, onde não se encontrava ninguém. O médico não tardou a aparecer. Parecia ter saído de um retrato de família do escritório do meu pai. Era baixo, mas robusto, e tinha cabelo grisalho e uma barbicha branca e usava óculos de aros de ouro — os primeiros óculos que via num rosto humano desde que desembarcara. O seu nome era Dr. Juffon. — Hal Bregg? — perguntou. — É o senhor? — Sou, sim. Observou-me em silêncio. — De que se queixa? — Na realidade, de nada, doutor. Sucede apenas que… — e contei-lhe as minhas estranhas observações. Sem uma palavra, abriu uma porta à minha frente. Entrei num pequeno consultório. — Dispa-se, por favor. — Tudo? — perguntei, quando só me restavam as calças. — Sim. Examinou-me nu. — Já não existem homens como você — murmurou, como se falasse consigo próprio. Auscultou-me o coração através de um estetoscópio frio, que me encostou ao peito. «E em mil anos isso nào mudará», pensei, e o pensamento causou-me um pequeno prazer. Mediu-me a altura e depois mandou-me deitar. Observou a cicatriz debaixo da clavícula direita, mas não disse nada. Examinou-me durante quase umã hora. Reflexos, capacidade pulmonar, electrocardiograma, tudo. Quando me vesti, sentou-se a uma pequena secretária preta. A gaveta rangeu quando a abriu à procura de qualquer coisa. Depois de tanta mobília que seguia uma pessoa, como que possessa, a velha secretária agradou-me. — Que idade tem? Expliquei-lhe a situação. — Tem o corpo de um homem na casa dos trinta — observou. — Hibernou? — Hibernei. — Quanto tempo? — Um ano. — Porquê? — Regressámos com propulsão acelerada. Foi necessário estarmos dentro de água. Havia a absorção do choque, como o doutor compreende, e portanto, como seria difícil conservarmo-nos conscientes dentro de água durante um ano… — Claro. Pensei que tivesse hibernado mais tempo. Podemos facilmente subtrair esse ano. Em vez de quarenta, apenas trinta e nove. — E… as outras coisas? — Não é nada, Bregg. Quanto apanhou? — Aceleração? Dois gs. — Aí tem. Pensou que estava a crescer? Não está. Trata-se simplesmente dos discos intervetebrais. Sabe o que são? — Sei. Bocados de cartilagem na espinha… — Exactamente. Estão a expandir-se, agora que se libertou de todo esse peso. Qual é a sua altura? — Quando parti, 1,97 m. — E depois disso? — Não sei. Não me medi. Havia outras coisas em que pensar, como sabe. — Agora tem 2,02 m. — Maravilhoso! E isso continuará durante muito tempo? — Não. Provavelmente já terminou… Como se sente? — Óptimo. — Parece tudo demasiado leve, não parece? — Agora cada vez menos. Na Adaptação, em Luna, deram-me comprimidos para reduzir a tensão muscular. — Desgravitizaram-no? — Sim, nos primeiros três dias. Disseram que não era suficiente, ao fim de tantos anos, mas por outro lado não quiseram manter-nos fechados mais tempo, depois de tudo quanto… — E o seu estado de espírito? — Bem… — hesitei. — Há momentos… Tenho a sensação de que sou um homem de Neanderthal que foi trazido para a cidade… — Que tenciona fazer? Falei-lhe da vila. — Podia fazer pior, talvez, mas… — A Adaptação seria melhor? — Não disse isso. Você… Lembro-me de si, sabia? — Como é possível? Com certeza não podia ser… — Não. Mas ouvi o meu pai falar de vocês, tinha eu 12 anos. — Isso deve ter sido anos depois de termos partido — observei. — E ainda se lembravam de nós? É estranho. — Não acho. Pelo contrário, o estranho é que tenham esquecido. Mas vocês sabiam, não sabiam, como seria o regresso, embora, obviamente, o não pudessem imaginar? — Eu sabia. — Quem lhe indicou o meu nome? — Ninguém. Quero dizer… o infor do hotel. Porquê? — É engraçado. Não sou, realmente, médico. — O quê? — Há quarenta anos que não exerço. Estou a trabalhar na história da medicina cósmica — porque agora é história, Bregg — e fora da Adaptação já não há trabalho para nós, especialistas. — Lamento. Não sabia… — Disparate! Eu é que deveria estar-lhe grato. Você é uma prova viva contra a tese da escola de Millman a respeito dos efeitos nocivos da aceleração aumentada sobre o corpo humano. Não apresenta sequer hipertrofia do ventrículo esquerdo, nem qualquer vestígio de enfisema… e o coração está excelente. Mas você sabe disso, não sabe? — Sei. — Como médico, não tenho mais nada a dizer-lhe, Bregg. No entanto… Hesitou. — No entanto? — Está a sair-se bem… no seu presente modo de vida? — Vou andando. — O seu cabelo está grisalho, Bregg. — Isso significa alguma coisa? — Significa. Cabelo grisalho significa idade. Agora ninguém fica grisalho antes dos oitenta, e mesmo então é raro. Apercebi-me de que era verdade: não tinha visto gente velha. — Porquê? — perguntei. — Há preparados, remédios que detêm o embranquecimento. Também se pode restituir a cor original ao cabelo, embora dê um pouco mais de trabalho. — Óptimo. Mas porque me está a dizer isso? Percebi que estava indeciso. — Mulheres, Bregg — respondeu, bruscamente. Encolhi-me. — Isso pretende significar que pareço… um velho? — Um velho… não. Parece mais um atleta… mas a verdade é que não anda por aí nu. É principalmente quando se senta que parece… enfim, que uma pessoa média o poderá tomar por um velho que se submeteu a uma operação de rejuvenescimento, tratamento com hormonas, etc. — Não me importo — respondi. Não sei por que motivo o seu olhar calmo me fez sentir tão mal. O doutor tirou os óculos e pô-los em cima da secretária. Tinha olhos azuis, ligeiramente húmidòs. — Há muitas coisas que não compreende, Bregg. Se pretendesse viver como um monge durante o resto da sua vida, o seu «não me importo» admitir-se-ia, mas… a sociedade a que regressou não é entusiástica a respeito daquilo pelo qual você deu mais do que a vida. — Não diga isso, doutor. — Estou a dizer o que penso. Dar a vida… que é isso? As pessoas fazem-no há séculos. Mas dar todos os amigos, pais, parentes, conhecidos, mulheres… Você sacrificou-os, Bregg! — Doutor… A palavra quase não me saiu da garganta. Apoiei um cotovelo na velha secretária. — Tirando um punhado de especialistas, ninguém se interessa, Bregg. Sabe isso? — Sei. Disseram-mo em Luna, na Adaptação, com a diferença de que o fizeram… mais delicadamente. Ficámos um bocado em silêncio. — A sociedade a que regressou está estabilizada. A vida é tranquila. Compreende? O romance dos primeiros tempos da astronáutica passou. É como as proezas de Colombo. A sua expedição foi algo de extraordinário, mas quem se interessava pelos capitães dos galeões duzentos anos depois dele? No real deram uma notícia de duas linhas a respeito do vosso regresso. — Mas, doutor, isso não é importante. — A sua simpatia começava a irritar-me mais do que a indiferença de outros, embora lho não pudesse dizer. — É, sim, Bregg, ainda que você o não queira encarar. Se fosse outra pessoa qualquer eu calar-me-ia, mas você merece a verdade. Está só. Um homem não pode viver só. Os seus interesses, aqueles com os quais regressou, são uma ilha num mar de ignorância. Duvido que haja muita gente a quem interessasse ouvir o que lhes poderia contar. Por acaso, sou um dos interessados, mas tenho oitenta e nove anos… — Não tenho nada para dizer — afirmei, zangado. — Nada de sensacional. Não descobrimos nenhuma civilização galáctica e, de qualquer modo, eu fui apenas um piloto. Pilotei a nave. Alguém tinha de o fazer. — Sim? — perguntou serenamente, de sobrancelhas brancas arqueadas. Eu estava calmo, à superfície, mas interiormente sentia-me furioso. — Sim, mil vezes sim! E essa indiferença de agora, se quer que lhe diga, só me afecta por causa dos que ficaram para trás… — Dos que ficaram para trás? — perguntou, com a mesma serenidade. Acalmei. — Foram muitos. Arder, Venturi, Ennesson… Doutor, de que vale…? — Não pergunto por mera curiosidade. Isso foi — e acredite que também não gosto de palavras pomposas —, isso foi uma parte da minha própria juventude. Foi por vossa causa que me dediquei a estes estudos. Somos iguais na nossa inutilidade. Você pode, claro, não o aceitar e, por isso, não insisto. Mas gostaria de saber. Que aconteceu a Arder? — Ninguém sabe ao certo. De súbito, não me interessou. Porque não havia de falar do assunto? Olhei para o polimento preto estalado da secretária. Nunca imaginara que seria assim. — Pilotávamos duas sondas sobre Arcturus. Perdi contacto com ele. Não conseguia encontrá-lo. Tinha sido o rádio dele que emudecera, não o meu. Quando o meu oxigénio se esgotou, regressei. — Esperou? — Esperei. Quero dizer, contornei Arcturus. Seis dias. Cento e cinquenta e seis horas, para ser exacto. — Sozinho? — Sim. Tive pouca sorte, porque Arcturus adquiriu novas manchas e eu perdi completamente o contacto com o Prometheus. Com a minha nave. Estática. Ele não podia regressar sozinho, sem rádio. Refiro-me ao Arder. Nas sondas, o teleran direccional está ligado ao rádio. Ele não podia regressar sem mim, e não regressou. Gimma ordenou-me que voltasse. Teve toda a razão: para entreter o tempo, mais tarde calculei quais tinham sido as minhas probabilidades de encontrar o Arder por meios visuais, no radar. Não me lembro exactamente do número, mas andava à volta de uma num trilião. Espero que ele tenha feito o mesmo que Arne Ennesson. — Que fez Ame Ennesson? — Perdeu a focalização por feixe. A sua impulsão começou a exercer efeito nele. Podia ter permanecido em órbita, não sei, mais umas vinte e quatro horas. Descreveria espirais e por fim cairia em Arcturus. Por isso, preferiu entrar imediatamente na primeira protuberância. Ardeu diante dos meus olhos. — Quantos eram os pilotos, além de você? — No Prometheus, cinco. — Quantos voltaram? — Olaf Staave e eu próprio. Sei no que está a pensar, doutor, que foi heroísmo. Eu também pensei assim, em certa altura, ao ler livros acerca de tais pessoas. Mas não se trata disso. Está a ouvir? Se eu pudesse, teria deixado o Arder e regressado imediatamente, mas não pude. Ele também não teria regressado. Nenhum de nós o teria feito. Incluindo o Gimma. — Por que protesta tanto? — perguntou, suavemente. — Porque existe uma diferença entre heroísmo e necessidade. Fiz o que qualquer teria feito. Para o compreender, doutor, seria necessário ter lá estado. Um homem é um bolha de fluido. Basta uma impulsão desfocalizada ou um campo desmagnetizaclo… desencadeiam-se vibrações e o sangue coagula num instante. Note que não estou a falar de causas exteriores, como meteoros, mas apenas de mau funcionamento, de defeitos. A mais pequena coisa avariada, um filamento queimado no transmissor… e pronto. Se as pessoas se abandonassem umas às outras em tais condições, as expedições equivaleriam a suicídio. Compreende? — Fechei os olhos durante um segundo. — Doutor… eles agora não voam? Como pode isso ser? — Você quer voar? — Não. — Porquê? — Eu digo-lhe: nenhum de nós teria voado se tivesse sabido. Mas ninguém sabe como é. Ninguém que lá não tenha estado. Nós éramos um grupo de animais mortalmente assustados, desesperados. — Como concilia isso com o que disse há um momento? — Não concilio. As coisas são como são. Nós tinhamos medo. Doutor, enquanto andei em órbita à volta daquele sol, à espera de Arder, imaginei diversas pessoas e falei com elas. Falei por mim próprio e por elas e quase no fim convenci-me de que estavam realmente ali comigo. Cada uma se salvou o melhor que sabia e podia. Pense nisso, doutor. Estou aqui sentado à sua frente. Aluguei uma vila, comprei um automóvel antigo e quero; prender, ler e nadar. Mas tenho tudo aquilo dentro de mim. O espaço, juele silêncio… e como o Venturi gritou por socorro e eu, em vez de o salvar, fiz marcha a trás a toda a velocidade! — Porquê? — Estava a pilotar o Prometheus e a bateria dele avariou-se. Ele podia ter-nos atirado a todos pelos ares. Mas não explodiu; não explodiria. Talvez tivéssemos tido tempo de o safar, mas eu não tinha o direito de arriscar. Depois, com Arder, foi ao contrário. Eu queria salvá-lo, mas Gimma ordenou-me que regressasse, pois tinha medo de que morressemos ambos. — Bregg… diga-me, que esperavam todos de nós? Da Terra? — Não faço ideia. Nunca pensei nisso. Era como alguém a falar do mundo depois deste ou do Céu: aconteceria, mas nenhum de nós sabia imaginar como seria. Quero perguntar-lhe uma coisa: Que é, ao certo, essa… betrização? — Que sabe a esse respeito? Contei-lhe, mas não lhe disse como nem através de quem obtivera o conhecimento. — Sim, é mais ou menos isso no conceito popular. — E eu…? — A lei abre uma excepção no vosso caso, porque a betrização de adultos pode afectar a saúde e ser até perigosa. Além de que se considera — e justamente, na minha opinião — que passaram num teste de… atitude moral. E, de qualquer modo, são tão poucos… — Mais uma coisa, doutor. Mencionou mulheres. Porque me disse isso? Mas talvez esteja a roubar-lhe muito tempo… — Não, não está. Porque lhe disse isso? Com quem pode um homem ser íntimo. Bregg? Com os seus pais. Os seus filhos. Amigos. Uma mullier. Você não tem pais nem filhos e nào pode ter amigos. — Porquê? — Não pensei nos seus camaradas, embora não saiba se desejaria estar constantemente na sua companhia, para recordar… — Não. meu Deus! Nunca! — Portanto… Conhece duas eras. Na primeira consumiu a sua juventude, e à segunda aprenderá a conhecê-la em breve. Se incluir-mos esses dez anos. a sua experiência não poderá ser comparada com a de pessoas da sua idade. Não poderá estar em pé de igualdade com elas. Que fazer então? Viver entre velhos? Restam as mulheres. Bregg. Só as mulheres. — Talvez só uma — murmurei. — Ah. só uma é difícil, hoje em dia! — Porquê? — Vivemos num período de prosperidade. Traduzido na linguagem dos assuntos sexuais isso significa: arbitrariedade. Nào se podem comprar amor ou mulheres por… dinheiro. Os factores materiais deixaram de existir aqui. — E chama a isso arbitrariedade? Doutor! — Sim. Pensa sem diivida, já que falei de comprar amor, que me refiro à prostituição, oculta ou às claras. Mas não. Isso agora pertence ao passado distante. Outrora, o êxito costumava atrair as mulheres. Um homem podia impressionar uma mulher com o seu salário, com as suas qualificações profissionais, com a sua posição social… Numa sociedade igualitária isso não é possível… com uma ou duas excepções. Se. por exemplo, você fosse um realista… — Mas eu sou um realista. O doutor sorriu. — A palavra tem agora outro significado. Um realista é um actor que aparece no real. Já foi ao real. — Não. — Assista a uns dois melodramas e compreenderá quais são hoje os critérios de selecção sexual. A coisa mais importante é a juventude. É por isso que todos lutam tanto por ela. Rugas e cabelos brancos, sobretudo quando prematuros, evocam os mesmos sentimentos que a lepra suscitava, há séculos… — Mas porquê? — É difícil para si compreender. Mas os argumentos baseados na razão são impotentes contra os costumes prevalecentes. Não se apercebe de quantos factores, outrora decisivos na esfera erótica, desapareceram. A natureza detesta o vácuo e. por isso tiveram de ser criados outros factores para os substituir. Considere, por exemplo, qualquer coisa a que se habituou, qualquer coisa a que se habituou de tal modo que deixou de ver a natureza excepcional do fenómeno: o risco. Já não existe, Bregg. Um homem não pode impressionar uma mulher com actos heróicos, com façanhas tenerárias: no entanto, a literattira, a arte, toda a nossa cultura de séculos foi alimentada por essa corrente: o amor perante a adversidade. Orfeu foi para Hades por Eurídice. Otelo matou por amor. A tragédia de Romeu e Julieta… Hoje não há tragédia nenhuma. Nem sequer a sua possibilidade. Eliminámos o inferno da paixão e depois verificámos que, com o mesmo gesto, fizemos com que o paraíso deixasse também de existir. Agora é tudo morno, Bregg. — Morno? — Sim. Sabe o que fazem até os amantes mais infelizes? Comportam-se razoavelmente, sensatamente. Nada de impetuosidade, de rivalidade… — Quer dizer que tudo isso desapareceu? Senti pela primeira vez uma espécie de medo supersticioso deste mundo. O velho médico ficou calado. — Não é possível, doutor. Deveras? — Sim, deveras. E deve aceitá-lo, Bregg, como aceita o ar, a água. Disse que era difícil ter só uma mulher. Para uma vida inteira é praticamente impossível. A duração média de um casamento é de cerca de sete anos. E isso já representa um progresso. Há meio século era menos de quatro anos… — Doutor, não quero roubar-lhe tempo. Que me aconselha a fazer? — O que já disse antes: restaure a cor original do seu cabelo. Parece banal, bem sei, mas é importante. Sinto-me embaraçado ao dar-lhe semelhante conselho. Embaraçado não por mim… Mas que posso eu…? — Obrigado. Sinceramente. Uma única coisa: diga-me, que ar tenho eu na rua? Que pareço às pessoas na rua? Que há em mim…? — Bregg, você é diferente. Primeiro, há o seu tamanho. Parece uma coisa tirada da Ilíada. Proporções antediluvianas. Poderia ser até uma oportunidade, mas você conhece, não conhece, o destino dos que são muito diferentes? — Conheço. — É um pouco grande de mais. Não me lembro de gente desse tamanho, nem mesmo na minha juventude. Agora parece um homem muito alto, terrivelmente vestido, mas isso não se deve ao facto de as roupas lhe assentarem mal e, sim, ao de ser incrivelmente musculoso. Também o era antes da viagem? — Não, doutor. Foram os dois gs… — E possível. Sele anos. Sele anos de peso duplo. Os meus músculos tiveram de alargar, os respiratórios e os abdominais, e o tamanho do meu pescoço também. Se não fosse assim, leria sufocado como um rato. Os músculos trabalhavam mesmo enquanto eu dormia. Até na hibernação. Pesava o dobro. Foi essa a razão. — Os outros também? Desculpe perguntar, é a minha curiosidade médica… A vossa foi a expedição mais longa que se fez. — Bem sei. Os outros? Olaf é muito semelhante a mim. Depende sem dúvida do esqueleto. O meu foi sempre grande. Arder era maior. Mais de dois metros. Sim, o Arder… Que estava eu a dizer? Os outros… bem, eu era o mais novo e, portanto, o mais apto a adaptar-me melhor. Pelo menos era isso que o Venturi dizia… Está familiarizado com a obra de Janssen? — Se estou familiarizado? É um clássico para nós, Bregg. — Sério? É interessante. Era um doutorzinho muito activo… Sabia que aguentei 79 gs para ele, durante segundo e meio? — Não está a brincar? Sorri. — Tepho-o escrito. Mas isso foi há cento e trinta anos. Agora quarenta já seriam de mais para mim. — Bregg, hoje ninguém aguentaria vinte! — Porquê? Por causa da betrização? Ficou calado. Pareceu-me que sabia qualquer coisa que não me queria dizer. Levantei-me. — Bregg, já que falámos do assunto, tenha cuidado. — Com quê? — Consigo e com os outros. O progresso nunca é grátis. Libertámo-nos de mil perigos e conflitos, mas tivemos de o pagar. A sociedade amoleceu, enquanto você é… você pode ser duro. Compreende-me? — Compreendo — respondi, a pensar no homem que se rira no restaurante, mas que se remetera ao silêncio quando eu me aproximara dele. — Doutor, acabo de me lembrar de uma coisa… A noite passada encontrei um leão… ou melhor, dois leões. Por que seria que não me fizeram mal nenhum? — Agora não há predadores, Bregg… A betrização… Encontrou-os a noite passada? E que fez? — Cocei-lhes o pescoço — respondi, e exemplifiquei. — Mas aquela história da Ilíada é um exagero, doutor. Apanhei um grande susto. Quanto lhe devo? — Não pense nisso. E se alguma vez precisar… — Obrigado. — Mas não guarde para muito tarde… — acrescentou, quase como se falasse para si mesmo, enquanto eu saía. Só na escada compreendi o significado das suas palavras: tinha quase noventa anos… — Regressei ao hotel. No átrio estava um barbeiro. Um robot, naturalmente. Eu estava muito guedelhudo, com uma quantidade de cabelo a saltar as orelhas. Nas têmporas era onde tinha mais cabelos grisalhos. Quando o trabalho ficou pronto, pareceu-me que tinha um ar um pouco menos selvagem. Numa voz melodiosa, o robot perguntou-me se queria que escurecesse o cabelo. — Não — respondi. — Aprex? — Para que é isso? — Para as rugas. Hesitei. Sentia-me estúpido, mas talvez o doutor tivesse razão. — Está bem — concordei. O robot cobriu-me a cara com uma camada de geleia de cheiro forte, que endureceu e se transformou numa máscara. Depois aplicou-me compressas e eu senti-me grato por ter o rosto tapado. Subi. Os embrulhos com o vestuário líquido já estavam no meu quarto. Despi-me e fui à casa de banho, onde havia um espelho. Sim, podia inspirar terror. Ignorara que parecia um gigante de circo. Peitorais entalhados, torso, todo eu era músculos. Quando levantava o braço e flectia o peito, aparecia nele uma cicatriz da largura da palma da minha mão. Tentei ver a outra, perto da omoplata, por causa da qual me tinham chamado um felizardo, porque se o estilhaço tivesse penetrado mais três centímetros para a esquerda me teria desfeito a espinha. Bati na tábua do meu estômago. — Animal — disse, virado para o espelho. Apetecia-me um banho, um banho a sério, não o vento de ozono, e pensei com satisfação antecipada na piscina da vila. Resolvi vestir uma das coisas novas, mas não fui capaz de me separar das calças. Por isso vesti apenas a camisola branca, embora preferisse muito mais a velha camisola preta de cotovelos remendados, e dirigi-me para o restaurante. Metade das mesas estavam ocupadas. Passei por três salas até chegar ao terraço, de onde podia ver os grandes bulevares e a infindável sucessão de gleeders. Sob as nuvens, como o pico de uma montanha azul no ar distante, erguia-se o Terminal. Pedi o almoço. — Que quer? — perguntou o robot, e fez menção de me entregar uma lista. — Não tem importância — respondi. — Um almoço normal. Só quando comecei a comer notei que as mesas à minha volta estavam vazias. Procurara isolar-me, automaticamente. Nem sequer me apercebera disso. Não sabia o que estava a comer. Já nãotinha a certeza de haver tomado a decisão certa. Umas férias, como se quisesse recompensar-me, já que mais ninguém tinha pensado nisso. O criado aproximou-se silenciosamente. — Sr. Bregg? — Diga. — Tem uma visita… no seu quarto. — Uma visita? Pensei imediatamente em Nais. Bebi o resto do líquido escuro e efervescente e levantei-me. Senti olhares fixos nas minhas costas, enquanto me afastava. Teria sido agradável poder serrar lOcm à minha altura. No meu quarto encontrava-se sentada uma mulher jovem, que nunca tinha visto antes. Usava um vestido cinzento flocoso, com tufos encarnados nos braços. — Sou da Adaptação — apresentou-se. — Hoje falei consigo. — Ah, foi você?! Tornei-me um pouco mais reservado. Que queriam agora de mim? Sentei-me devagar. — Como se sente? — Óptimo. Hoje fui a um médico, que me examinou. Está tudo em boa ordem. Aluguei uma vila. Quero ler um pouco. — Muito sensato. Clavestra é ideal para isso. Terá montanhas, sossego… Ela sabia que era Clavestra. Andariam a espiar-me? Fiquei imóvel, à espera. — Trouxe-lhe uma coisa… da nossa parte. Apontou para um pequeno embrulho que estava em cima da mesa. — É o mais moderno que há — afirmou, com uma animação que parecia artificial. — Antes de se deitar liga esta máquina e ao fim de cerca de uma dúzia de noites aprenderá da maneira mais fácil possível, sem qualquer esforço, muitas coisas úteis. — Deveras? Isso é útil. Ela sorriu-me e eu sorri-lhe também, como um aluno bem comportado. — É psicóloga? — Sou. Adivinhou. Hesitou e eu compreendi que queria dizer qualquer coisa. — Diga o que tem a dizer — convidei. — Não ficará zangado comigo? — Por que haveria de ficar zangado? — Porque… compreende… a maneira como está vestido é um pouco… — Bem sei. Mas gosto destas calças. Talvez com o tempo… — Ah, não me refiro às calças! A camisola. — A camisola? — Fiquei surpreendido. — Fizeram-na hoje para mim. É a última palavra em moda, não é? — Sim, mas não devia tê-la inflado. Dá-me licença? — Faça favor — respondi, suavemente. Ela inclinou-se para a frente e tocou-me no peito com os dedos estendidos. Soltou um pequeno grito. — Que tem aí? — Nada, além de mim próprio — redargui, com um sorriso cínico. Apertou os dedos da mão direita com os da esquerda e levantou-se. De súbito, a minha calma, misturada com uma satisfação maliciosa, tomou-se fria como gelo. — Por que não se senta? — Mas… Lamento muitíssimo, eu… — Não pense nisso. Trabalha há muito tempo na Adaptação? — Vou no segundo ano. — Ah! É o seu primeiro paciente?… — Apontei um dedo a mim próprio e ela corou um pouco. — Posso perguntar-lhe uma coisa? As suas pálpebras palpitaram. Terá julgado que lhe ia fazer uma pergunta inconveniente? — Com certeza. — Como conseguem que o céu seja visível a todos os níveis da cidade? Arrebitou. — É muito simples: televisão. Era assim que lhe chamavam há muito tempo. Nos tectos estão instalados écrans que transmitem o que está por cima da Terra — o céu, as nuvens… — Mas os níveis não são assim tão altos… Têm edifícios de quarenta andares… — É uma ilusão — respondeu, a sorrir. — Os edifícios só são parcialmente reais; a sua continuação é uma imagem. Compreende? — Compreendo como se faz, mas não compreendo a razão. — É para que as pessoas que vivam a cada nível não se sintam privadas em sentido nenhum… — Ah! sim, isso é inteligente. Mais uma coisa. Vou comprar livros. Pode sugerir-me algumas obras da sua especialidade? Uma visão global… — Quer estudar Psicologia? — Estava surpreendida. — Não. Mas gostaria de saber o que se fez em todo este tempo. — Recomendo-lhe Mayssen. — Que é isso? — Um manual escolar. — Preferia algo maior. Extractos, monografias… É sempre melhor ir à fonte. — Isso poderá ser… derfiasiado difícil. Sorri cortesmente. — Talvez não. Qual seria a dificuldade? — A psicologia tomou-se muito matemática. — Também eu. Pelo menos até à altura da minha partida, há cento e tal anos. Preciso de saber mais? — Mas não é um matemático… — Por profissão, não sou, mas estudei a matéria. No Prometheus. Havia muito tempo livre, sabe? Surpreendida e desconcertada, não disse mais nada. Deu-me um bocado de papel com uma lista de títulos. Quando se foi embora, voltei para a secretária e sentei-me pesadamente. Até ela, uma empregada da Adaptação… Matemática? Como era possível? Um homem selvagem. «Odeio-os», pensei, «odeio-os». Mas odiava quem? Não sabia. Toda a gente. Sim, toda a gente. Tinha sido ludibriado. «Mandaram-me para lá sem saber o que estavam a fazer. Não devia ter regressado, como Venturi, Arder, Thomas… mas regressei para os assustar, para andar por aí como uma consciência culpada que ninguém quer. Sou inútil.» Se ao menos fosse capaz de chorar! Q Arder era. Dizia que não deviamos ter vergonha das lágrimas. Talvez eu tivesse mentido ao médico. Nunca tinha falado disso a ninguém, mas não tinha a certeza se o teria feito por mais alguém. Talvez tivesse. Pelo Olaf, mais tarde. Mas não tinha a certeza absoluta disso. Arder! Destruíram-nos e nós acreditávamos neles, nunca deixávamos de sentir que a Terra estava por nós, presente, tinha fé em nós, se importava connosco. Ninguém falava disso. Para quê falar do que é óbvio? Levantei-me. Não podia estar quieto. Comecei a andar de um lado para o outro. Bastava. Abri a porta da casa de banho, mas claro, não havia água para chapinhar a cara. Estúpido. Histerismo. Voltei para o quarto e comecei a fazer as malas. III Passei a tarde numa livraria. Que não tinha livros. Não tinha sido impresso nenhum havia quase meio século. E como eu os desejara, depois dos microfilmes que constituíam a biblioteca do Prometheus! Não teria essa sorte. Já não era possível caminhar entre estantes, sopesar os volumes na mão, sentir-lhes o peso, a promessa de apaixonante leitura. A livraria parecia mais um laboratório de electrónica. Os livros eram cristais com o conteúdo gravado. Podiam ser lidos com a ajuda de um opton, que era semelhante a um livro, mas tinha apenas uma página entre as capas. Um toque e apareciam nele sucessivas páginas de texto. Mas os optons eram pouco usados, disse-me o robot vendedor. O público preferia os lectons: os lectons liam alto, podiam ser regulados para qualquer voz, ritmo e modulação. Só se imprimiam, numa imitação plástica de papel, publicações científicas, que tinham uma distriuição muito limitada. Por isso, todas as minhas aquisições couberam numa algibeira, embora devessem constar de quase 300 títulos. Um punhado de milho de cristal, os meus livros. Escolhi um certo número de obras de história e sociologia, algumas sobre estatística e demografia, e o que a rapariga da Adaptação me recomendara sobre psicologia. Um par dos maiores manuais de matemática — maiores, claro, no aspecto do conteúdo e não do seu tamanho físico. O robot que me serviu era ele próprio uma enciclopédia, em virtude de, como se disse, estar directamente ligado, por intermédio de catálogos electrónicos, a padrões de todos os livros da Terra. Por norma, uma livraria só tinha «cópias» simples de livros e quando alguém queria determinado livro o conteúdo da obra era gravado num cristal. Os originais — cristomatrizes — não se viam; estavam gravados atrás de chapas de aço esmaltadas, azul-pálido. Assim, podia-se dizer que um livro era impresso todas as vezes que alguém o queria. Os problemas das edições, da sua quantidade e do seu esgotamento tinham cessado de existir. Na realidade, tratava-se de um grande progresso, mas eu lamentei o desaparecimento dos livros. Ao ser informado de que havia livrarias de segunda mão que tinham livros de papel, procurei uma. Fiquei decepcionado, pois não havia praticamente obras científicas. Literatura ligeira, alguns livros infantis e algumas séries de antigos periódicos. Comprei (só se pagavam os livros antigos) alguns contos de fadas de quarenta anos atrás, a fim de ficar a saber o que consideravam, agora, contos de fadas, e dirigi-me a uma loja de artigos de desporto. Aí a minha decepção não teve limites. O atletismo só existia numa forma insignificante. Corrida, lançamento, saltos, natação; mas quase não havia desportos de combate. Não havia boxe e aquilo a que chamavam «luta» era perfeitamente ridículo, uma troca de empurrões em vez de um combate respeitável. Observei um combate do campeonato do mundo na sala de projecções do estabelecimento e julguei que rebentava de raiva. Em certas passagens desatei a rir como um maluco. Fiz perguntas a respeito do estilo livre americano, do judo, do ju-jitsu, mas ninguém percebeu do que estava a falar. Compreensível, dado que o râguebi tinha morrido sem deixar herdeiros, como uma actividade em que se verificavam recontros violentos e danos físicos. Havia hóquei, mas não era hóquei! Jogavam com equipamentos tão inflados que pareciam enormes bolas. Era interessante ver as duas equipas chocar uma com a outra, mas tratava-se de uma farsa e não de um desafio. Mergulho, sim, mas só de uma altura de quatro metros. Pensei imediatamente na minha (minha!) piscina e comprei uma prancha desdobrável, para acrescentar à que devia ter em Clavestra. Aquela desintegração era obra da betrização. Que touradas, lutas de galos e outros espectáculos sangrentos tivessem desaparecido, não me incomodava, e também nunca fora entusiasta do boxe profissional. Mas a papa tépida que restava não me atraía minimamente. Tolerara apenas no negócio turístico a invasão do desporto pela tecnologia. Mas ela aumentara, especialmente nos desportos subaquáticos. Dei uma olhadela a vários equipamentos para mergulhar: pequenos torpedos eléctricos que se podia usar para viajar ao longo do fundo de um lago; barcos a motor; hidroplacas que se moviam sobre uma almofada de ar comprimido, e microgleders aquáticos, tudo munido de dispositivos especiais de segurança contra acidentes. As corridas, que desfrutavam de considerável popularidade, não as considerava um desporto. Claro que não havia cavalos nem automóveis: máquinas accionadas por controlo à distância disputavam as corridas e podia-se apostar nelas. A competição perdera a importância. Explicaram-me que os limites da capacidade física do homem tinham sido atingidos e que os recordes existentes só poderiam ser derrubados por uma pessoa anormal, por algum monstro de força ou velocidade. Racionalmente, tive de concordar com iso. E a popularidade universal das disciplinas atléticas que tinham sobrevivido à dizimação merecia orgulho. No entanto, ao fim de três horas de observação saí, deprimido. Pedi que me enviassem para Clavestra o equipamento de ginástica que tinha escolhido. Depois de pensar um bocado, resolvi não comprar um barco a motor. Qugiiaomprar um iate, mas não havia nenhum decente, isto é, com velas sériiye bolinas; havia apenas uns barcos miseráveis que asseguravam tal estabilidade que me era impossível compreender como velejar neles poderia dar prazer a alguém. Anoitecia quando regressei ao hotel. Do ocidente avançaram flocosas nuvens avermelhadas, o Sol já se pusera, a Lua começava a mostrar o seu quarto crescente e no zénite brilhava outra, um enorme satélite qualquer. No alto, por cima dos edifícios, passavam enxames de máquinas voadoras. Havia menos peões e mais gleeders e estavam a aparecer, a atravessar a estrada, aquelas luzes metidas em aberturas, cujo propósito ainda desconhecia. Meti por um caminho de regreso diferente e fui ter a um grande jardim. Ao princípio pensei que era o parque do terminal, mas a montanha da estação brilhava ao longe, na parte setentrional e mais elevada da cidade. A vista era invulgar, pois apesar de a escuridão, entrecortada pelas luzes das ruas, envolver toda a área, os níveis superiores do Terminal ainda brilhavam como picos alpinos cobertos de neve. Estava muita gente no parque. Havia muitas novas espécies de árvores, especialmente palmeiras, e cactos em flor e sem espinhos. A um canto, afastado dos passeios principais, encontrei um castanheiro que devia ter duzentos anos. Três homens do meu tamanho não lhe poderiam ter abarcado o tronco. Sentei-me num pequeno banco e durante algum tempo olhei para o céu. Como as estrelas pareciam inofensivas e amigas, a piscar e a brilhar nas invisíveis correntes atmosféricas que delas protegiam a Terra! Pela primeira vez em anos pensei nelas como «estrelinhas». Lá em cima, ninguém teria falado de tal maneira, pois se o fizesse julgá-lo-íamos doido. Estrelinhas, sim, famintas estrelinhas. Por cima das árvores, já completamente escuras, explodia fogo de vista, ao longe, e de súbito, e com espantosa realidade, vi Arcturus, as montanhas de fogo sobre as quais voara a bater os dentes com frio, enquanto a geada do equipamento arrefecido se fundia e escorria, vermelha de ferrugem, pelo meu fato abaixo. Andava a recolher amostras com um sifão corona e tinha um ouvido atento ao silvo dos compressores, no caso de alguma perda de rotação, porque uma paragem de um simples segundo, o seu emperramento. bastaria para transformar a minha blindagem, o meu equipamento e eu próprio num puf! invisível de vapor. Uma gota de água a cair numa chapa ao rubro não desaparece tão depressa como um homem, lá em cima. O castanheiro estava quase no fim da floração. Nunca me interessara pelo cheiro das flores, mas agora recordava-me coisas de havia muito tempo. Por cima das sebes, o clarão do fogo de vista acendia-se e apagava-se, em ondas. Um ruído aumentava, orquestras misturavam-se e com intervalos de poucos segundos, transportado pelo vento, voltava ao grito coral de participantes nalgum espectáculo, talvez de passageiros de um carro. Mas o meu cantinho permanecia imperturbado.- Nisto, um vulto alto e escuro emergiu de um carreiro lateral. A verdura ainda nào estava completamente cinzenta e eu só vi o rosto da pessoa que se aproximava muitíssimo devagar, passo a passo e mal levantando os pés do chão, só vi, dizia, quando ele parou a alguns metros de distância. Tinha as mãos enfiadas numa espécie de funis dosquais saíam duas hastes delgadas que terminavam numa bola preta. Ele apoiava-se nelas não como um paralítico, mas sim como alguém num estado de extremo enfraquecimento. Não olhou para mim nem fosse para o que fosse — o riso, os gritos, a miisica e o fogo de vista pareciam não existir para ele. Ficou parado talvez um minuto, a respirar com grande esforço, e eu vi-lhe intermitentemente o rosto nos clarões de luz de fogo de vista, um rosto tão velho que os anos lhe tinham apagado toda a expressão e deixado apenas a pele e o osso. Quando ele se preparava para recomeçar a andar, avançando com aquelas esquisitas muletas ou membros artificiais, uma delas escorregou. Saltei do banco para o amparar, mas ele já recuperara o equilíbrio. Era uma cabeça mais baixo do que eu. mas mesmo assim alto para um homem da época. Ólhou-me com olhos brilhantes. — Desculpe-me… — murmurei. Queria afastar-me, mas fiquei: nos seus olhos havia um não-sei-quê de autoritário, que me retinha. — Já o vi em qualquer lado… Mas onde? — disse, em voz surpreendentemente forte. — Duvido — respondi, a abanar a cabeça. — Regressei ontem, apenas… de uma viagem muito longa. — De…? — De Fomalhaut. Os seus olhos iluminaram-se. — Arder! Tom Arder! — Não — corrigi. — Mas estive com ele. — E ele? — Morreu. O desconhecido começou a respirar com dificuldade. — Ajude-me… a sentar. Peguei-lhe no braço. Sob o tecido preto e escorregadio só havia ossos. Sentei-o devagarinho no banco e fiquei a olhá-lo, de pé. — Sente-se… Sentei-me. Ele continuava a ofegar, de olhos semicerrados. — Não é nada… foi a excitação… — murmurou e, passados momentos, descerrou as pálpebras. — Sou Roemer — disse, simplesmente. Mas bastou para me deixar sem respiração, — O quê?! Será possível… o senhor… o senhor…? Que idade… — Cento e trinta e quatro — respondeu, secamente. — Então tinha… sete. Lembrei-me dele. Visitara-nos com o pai, o brilhante matemático que trabalhava como assistente de Geonides, o criador da teoria ligada ao nosso voo. Arder mostrara ao garoto a enorme sala de experiências e as centrifugadoras. Era assim que permanecia na minha memória, vivo como uma chama, com sete anos e os olhos escuros do pai. Arder erguera-o no ar, para que o pequeno pudesse ver de perto o interior da câmara de gravitação onde eu me encontrava. Ficámos ambos silenciosos. Havia algo de estranho naquele encontro. Qlhei através da escuridão, com uma espécie de avidez dolorosa, para aquele rosto terrivelmente velho, e senti um aperto na garganta. Apeteceu-me tirar um cigarro da algibeira mas os dedos tremiam-me tanto que não fui capaz. — Que aconteceu a Arder? — perguntou-me. Contei-lhe. — Não recuperaram… nada? — Sabe que nunca se recupera nada. — Confundi-o com ele… — Compreendo. A minha altura e tudo o mais. — Sim… Que idade tem agora, biologicamente? — Quarenta anos. — Eu podia… — murmurou. Compreendi em que estava a pensar. — Não o lamente — disse-lhe, em tom firme. — Não o deve lamentar. Não deve lamentar nada, compreende? Ergueu pela primeira vez o olhar para o meu rosto. — Pprquê? — Porque não há nada para eu fazer aqui. Ninguém precisa de mim. E eu… de ninguém. Não pareceu ouvir-me. — Como se chama? — Bregg. Ha! Bregg. — Bregg — repetiu. — Bregg… Não, não me lembro. Estava lá? — Estava. Em Apprenous, quando o seu pai foi levar as correcções que Geonides fez no último mês antes da partida… Tinha-se verificado que os coeficientes de refracção das poeiras escuras eram muito baixos… Isso diz-Ihe alguma coisa? — Calei-me, hesitante. — Diz. Claro — respondeu, com certa ênfase. — O meu pai. Claro. Em Apprenous? Mas que fazia lá você? Onde estava? — Na câmara de gravitação, em casa de Janssen. O senhor estava lá nessa altura, o Arder levou-o. Ergueu-se na plataforma e observou enquanto eles me aplicavam quarenta gs. Quando sai, sangrava do nariz e o senhor deu-me o seu lenço. — Ah! Era você? — Era. — Mas a pessoa que estava na câmara tinha cabelo escuro. Pareceu-me, pelo menos. — Pois tinha. O meu cabelo não é claro: é grisalho. O senhor é que não vê bem agora. Seguiu-se outro silêncio, mais longo. — É professor, suponho? — perguntei, para dizer alguma coisa. — Fui. Agora… nada. Há vinte e três anos. Nada. — E repetiu ainda, serenamente: — Nada. — Hoje comprei alguns livros e, entre eles, a topologia de Roemer. E seu ou do seu pai? — É meu. É matemático? Fitou-me, como que com interesse renovado. — Não, mas dispus de muito tempo… lá. Cada um de nós fazia o que queria. Eu achei a matemática útil. — Como a compreendeu? — Dispúnhamos de um número enorme de microfilmes: ficção, romances o que quiséssemos. Sabia que tinhamos trezentos mil títulos? O seu pai ajudou Arder a compilar a parte matemática. — Estou ao corrente disso. — Ao princípio, encarámo-lo como… uma diversão. Para matar o tempo. Mas depois, após alguns meses, quando perdêramos por completo o contacto com a Terra e pairávamos lá em cima, aparentemente imóveis em relação às estrelas… então, compreende, ler que um Peter qualquer fumava nervosamente sem saber se a Lucy viria ou não, e que ela entrava nervosamente a torcer as luvas… bem, primeiro começámos por rir como idiotas, mas depois ficámos simplesmente furiosos. Por outras palavras, ninguém tocava nessas leituras. — E na matemática? — Não, logo, não. Ao princípio estudei línguas e continuei a estudá-las até ao fim, embora soubesse que podia ser tempo perdido, pois quando voltasse algumas ter-se-iam tomado dialectos arcaicos. Mas Gimma — e Thurber, especialmente — instigaram-me a aprender Física. Disseram que podia ser útil. Assim fiz, juntamente com Arder e Olaf Staave, mas nós três não éramos cientistas… — Tinha um diploma. — Sim, um mestrado em teoria da informação e cosmodromia e um diploma em engenharia nuclear, mas tudo isso era profissional e não teórico. Não ignora como os engenheiros sabem matemática… Portanto, depois dediquei-me à física. Mas queria mais qualquer coisa, só para mim, e por isso, finalmente, voltei-me para a matemática pura. Não tinha inclinação nenhuma para matemática. Nenhuma. Só tinha persistência. — Sim — murmurou serenamente —, era necessário tê-la para voar… — Particularmente para se tomar membro da expedição — corrigi-o. — E sabe porque teve a matemática esse efeito? Só o compreendi lá. Porque a matemática se eleva acima de tudo. As obras de Abel e Kronecker valem tanto hoje como há quatrocentos anos, e será sempre assim. Surgem novas estradas, mas as velhas é que indicam o caminho. As ervas daninhas não as invadem. Lá… lá temos etemidade. Só a matemática não a receia. Lá em cima compreendi como é definitiva. E forte. Não havia nada como ela. E o facto de eu ter de me esforçar, de luíar, também era bom. Esfalfava-me a estudá-la e quando não conseguia dormir revia mentalmente o material que estudara nesse dia. — Interessante — comentou, mas não havia interesse nenhum na sua voz; eu nem sequer sabia se me estava a ouvir. Ao longe, no parque, subiam colunas de fogo, clarões vermelhos e verdes acompanhados por gritos de contentamento. Ali, onde nos sentávamos debaixo das árvores, estava escuro. Calei-me. Mas o silêncio era insuportável. — Para mim, teve o valor da autopreservação — disse. — A teoria da pluralidade… o que Mirea e Averin fizeram com o legado de Cantor… Operações utilizando quantidades infinitas e transfinitas, os continua de aumentos discretos… era maravilhoso. Lembro-me como se fosse ontem do tempo que passei com essas coisas. — Não é tão inútil como pensa — murmurou. Afinal estava a ouvir. — Suponho que não ouviu falar dos estudos de Igalli? — Não. De que se trata? — Da teoria do antipólo descontínuo. — Não sei nada a respeito de nenhum antipólo. Que é? — Retroniilação. Foi donde surgiu a parastática. — Nunca ouvi sequer falar desses termos. — É natural, pois tiveram a sua origem há sessenta anos. Mas isso foi apenas o princípio da gravitologia. — Estou a ver que tenho que estudar um bocado… Gravitologia. É a teoria da gravitação? — Muito mais. Só pode ser explicada por intermédio da matemática. Estudou Appiano e Froom? — Estudei. — Nesse caso, não deve ter dificuldade. São expansões metagénicas numa série n-dimensional, configuracional e degenerativa. — Oue está a dizer? Skriabin não provou que não há metragens além dos variacionais? — Provou. Uma prova muito elegante. Mas isto, compreende, é transcontínuo. — Impossível! Isso… mas isso deve ter aberto todo um novo mundo! — Pois abriu — respondeu secamente. — Lembro-me de um ensaio de Mianikowski… — comecei. — Oh, não está relacionado! No máximo, uma direcção similar. — Precisaria de muito tempo para alcançar tudo quanto foi feito em todos estes anos? Não respondeu logo. — Oue utilidade poderá ter para si? Não soube que responder. — Não tenciona voltar a voar? — Não. Sou muito velho. Não suportaria a espécie de aceleração que… e, de qualquer modo, agora não voaria. Depois destas palavras ficámos muito tempo silenciosos. A elação inesperada com que eu falara a respeito de matemática evaporara-se de súbito, e continuei ao lado dele a sentir o peso do meu próprio corpo e o seu tamanho desnecessário. Tirando a matemática não tínhamos nada a dizer um ao outro e sabíamo-lo ambos. Ocorreu-me então que a emoção com que eu falara do abençoado papel da matemática na viagem tinha sido um subterfiigio. Enganara-me a mim próprio com a modéstia, o heroísmo sério do piloto que se ocupa, nos intervalos das nebulosas, com estudos teóricos de infinito. Hipocrisia. O que tinha sido na realidade? Se um náufrago, à deriva durante meses no mar, contou mil vezes o número de fibras de madeira que constituem a sua jangada, a fim de manter a sanidade mental, deverá depois gabar-se disso, quando alcançá terra? Deverá gabar-se de ter tido a tenacidade de sobreviver? E depois? Quem se interessa? Por que havia de interessar a alguém como eu enchera o meu pobre cérebro durante aqueles dez anos, e por que era isso mais importante do que a maneira como enchera o estômago? «Tenho de deixar de representar o papel de herói sereno», pensei. «Poderei permitir-me fazê-lo quando tiver o aspecto dele. Agora devo concentrar-me no futuro.» — Ajude-me a levantar — pediu, num murmúrio. Conduzi-o a um gleeder que estava parado na rua. Fomos muito devagar. Onde havia luzes, entre as sebes, as pessoas seguiam-nos com o olhar. Antes de entrar no gleeder, voltou-se para se despedir de mim. Nem ele nem eu encontrámos nada que dizer. Roemer fez um movimento ininteligível com a mão, da qual irrompia uma das canas como uma espada, abanou a cabeça e entrou. O veículo escuro afastou-se silenciosamente. Fiquei de braços pendentes, até o gleeder desaparecer no meio de outros. Meti as mãos nas algibeiras e comecei a andar, incapaz de responder à pergunta quanto a qual de nós escolhera melhor. Era uma boa coisa que não restasse nada da cidade que eu deixara, nem uma pedra sobre outra. Era como se, então, tivesse vivido numa Terra diferente, entre homens diferentes. Isso começara e terminara de uma vez para sempre e isto era novo. Nem relíquias nem ruínas para lançarem dúvidas sobre a minha idade biológica. Pudera esquecer a sua contagem terrestre, tão contrária à natureza, até aquela incrível coincidência me fazer encontrar uma pessoa que vira pela última vez quando ela era uma criança pequena. Durante todo o tempo que estivera sentado a seu lado, a olhar para as suas mãos secas como as de uma múmia e para o seu rosto, sentira-me culpado e soubera que ele tivera consciência disso. Pensei e tornei a pensar que se tratara de um acidente improvável, até compreender que ele podia ter sido atraído para aquele lugar pela mesma coisa que me atraíra a mim: afinal, crescia ali aquele castanheiro que era mais velho do que qualquer de nós. Ainda não fazia ideia do que eles tinham conseguido no capítulo de aumentar a duração da vida humana, mas percebera que a idade de Roemer era algo de excepcional: devia ser o último ou um dos últimos da sua geração. «Se eu não tivesse saído da Terra, já não estaria vivo», pensei — e pela primeira vez vi que a nossa expedição tinha um reverso inesperado: o subterfúgio, a partida cruel que pregara a outros. Continuei a andar às cegas. À minha volta havia o barulho de uma multidão, uma corrente de transeuntes foi-me empurrando. Até que parei, subitamente desperto. Havia um barulho indescritível. No meio da mistura de gritos e música, rajadas de fogo de vista explodiam no céu e ficavam a pairar, muito alto, em ramos coloridos; esferas incandescentes caíam nas copas das árvores próximas; com intervalos regulares ouvia-se o som penetrante de muitas vozes, como que um grito de terror misturado com riso, exactamente como se algures, ali perto, houvesse uma montanha russa. Mas olhei em vão em busca da sua armação. No meio do parque erguia-se um grande edifício com torres e ameias, como um castelo fortificado vindo directamente da Idade Média. As chamas frias das luzes de néon que lhe lambiam o telhado ordenavam-se com intervalos de poucos segundos nas palavras pal ácio de merlin. A multidão que para ali me arrastara desviou-se para o lado, na direcção da parede escarlate de um pavilhão que tinha a particularidade de se parecer com um rosto humano, com olhos incandescentes a servirem de janelas e uma boca imensa e disforme cheia de dentes, aberta para engolir a dose seguinte de gente que se empurrava, ao compasso da alegria geral. Todas as vezes a boca consumia a mesma quantidade: seis. Ao princípio, a minha intenção era sair da turba e ir-me embora. Mas isso não teria sido fácil e. além do mais, não tinha aonde ir e ocorreu-me a ideia de que, de todas as maneiras possíveis de passar o resto da noite, aquela, desconhecida, podia não ser a pior. Eu parecia o único que estava sozinho — eram principalmente pares, rapazes e raparigas, homens e mulheres enfileirados a dois e dois — e quando chegou a minha vez, anunciada pelo clarão branco dos grandes dentes e pela escuridão iante e escarlate da misteriosa garganta, dei comigo em apuros, pois não sabia se me podia juntar a um sexteto já completo. No último momento, decidiu por mim uma mulher que estava com um jovem de cabelo escuro e vestido mais extravagantemente do que todos os outros: agarrou-me na mão e, sem cerimónia, puxou-me atrás de si. Ficou quase completamente escuro. Senti a mão quente da mulher desconhecida, o chão moveu-se, a luz voltou e encontrámo-nos numa gruta espaçosa. A última dúzia de passos era a subir, sobre saibro solto e entre montes de pedra esmagada. A desconhecida largou a minha mão e, um por um, inclinámo-nos para passar pela estreita saída da caverna. Apesar de estar preparado para uma surpresa, fiquei boquiaberto. Encontrámo-nos na margem larga e arenosa de um grande rio, sob os raios escaldantes de um sol tropical. A outra margem estava invadida pela selva. Na água parada da margem estavam ancorados barcos, ou melhor canoas escavadas, e contra o fundo do rio verde-acastanhado que corria indolentemente atrás deles, encontravam-se negros imensamente altos, como que petrificados em poses hieráticas, nus, reluzentes de óleo e cobertos de tatuagens brancas, cada um inclinado para o remo espatulado, junto ao costado do barco. Um dos barcos estava a partir, cheio. A sua tripulação negra dispersava, com pancadas dos remos e gritos assustadores, crocodilos que se encontravam meio imersos no lodo, como troncos. Os crocodilos viravam-se e, debiimente, batiam com as mandíbulas orladas de dentes, enquanto deslizavam para água mais funda. O nosso grupo de sete desceu o aterro íngreme da margem. Os primeiros quatro tomaram lugar no barco seguinte. Com visível esforço, os negros cravaram os remos na margem e afastaram o barco pouco estável, de modo que ele deu uma volta. Eu fiquei na retaguarda, tendo à minha frente apenas o casal a quem devia a minha presença e a viagem prestes a iniciar-se. pois surgiu o barco seguinte, com cerca de dez metros de comprimento. Os remadores negros gritaram-nos e, lutando contra a corrente, encostaram habilmente a embarcação. Saltámos para o interior a apodrecer do barco e levantámos uma poeira que cheirava a madeira queimada. O jovem extravagantemente vestido — uma pele de tigre, com a metade superior do crânio do predador caída sobre o ombro, para poder servir de capuz — ajudou a companheira a sentar-se. Eu sentei-me defronte deles. Já andáramos um bocado, e embora alguns minutos antes tivesse estado no parque, no meio da noite, naquele momento não estava muito certo disso. O negro alto que se encontrava na proa aguçada do barco soltava um grito selvagem de poucos segundos em poucos segundos. Duas filas de costas dobraram-se, reluzentes, os remos bateram na água com pancadas breves e violentas, o barco raspou na areia, pareceu desgovernado e, de súbito, entrou na corrente principal do rio. Aspirava-se o cheiro pesado e quente da água, do lodo e da vegetação em decomposição que passava a flutuar pelos lados do barco, que mal se encontrava uma mão travessa acima da superfície da água. As margens foram-se afastando. Passámos por mato caracteristicamente verde-acinzentado, como que queimado. De baixios arenosos batidos pelo sol deslizavam de vez em quando crocodilos, como troncos animados de vida que caíam na água com um splash! Um deles permaneceu um bom bocado à nossa ré, com a cabeça alongada à superfície. Lentamente, a água começou a cobrir-lhe os olhos salientes e a certa altura já só se via a ponta do focinho, escura como uma pedra do rio, a abrir rapidamente a água castanha. Entre as costas ritmicamente ondulantes dos remadores pretos viam-se elevações no rio, quando ele corria sobre obstáculos submersos. Então o homem da proa soltava um grito áspero, os remos de um lado começavam a bater na água mais vigorosamente e o barco virava. É difícil dizer quando os gemidos cavos soltados pelos pretos, ao inclinarem-se sobre os remos, começavam a amalgamar-se num canto inexprimivelmente triste e infinitimente repetitivo, numa espécie de grito irado que se transformava numa queixa e tinha como coro o bater da água aberta pelos remos. Assim continuámos, como se viajássemos realmente pelo coração da África, num enorme rio no meio de uma selva verde-acinzentada. A sólida parede da selva recuou finalmente e desapareceu numa massa tremeluzente de ar escaldante. O timoneiro negro acelerou o ritmo. Na savana distante pastavam antílopes e a certa altura passou uma manada de girafas numa nuvem de poeira e num trote indolente. Depois senti o olhar da mulher sentada defronte de mim e olhei para ela. O seu encanto surpreendeu-me. Já notara antes que era atraente, mas isso fora apenas de passagem e não me prendera a atenção. Agora estava tão perto dela que não podia cometer o mesmo erro: não era atraente, era bela. Tinha cabelo escuro com um brilho de cobre, rosto branco e indescritivelmente tranquilo e lábios escuros e imóveis. Cativou-me. Não como uma mulher, mas antes de um modo semelhante ao daquela vasta exposição silenciosa sob o sol. A sua beleza tinha a perfeição que sempre me assustara um pouco. Possivelmente porque, na Terra, a experimentara muito pouco e pensara muito nela. De qualquer modo, ali à minha frente estava uma daquelas mulheres que parecem feitas de barro diferente do usado no comum dos mortais, embora essa magnificente vida se deva somente a uma certa configuração das feições e seja inteiramente superficial — mas quem, ao olhar, pensa nisso? Sorria apenas com os olhos; os seus lábios conservavam uma expressão de desdenhosa indiferença. Não para comigo, porém. Talvez para com os seus próprios pensamentos. O seu companheiro estava sentado numa saliência da canoa e tinha a mão esquerda indolentemente pendurada do lado de fora, de modo que os seus dedos arrastavam pela água, mas não olhava nessa direcção nem para o panorama da África selvagem que se desenrolava a toda a volta. Estava sentado como na sala de espera de um dentista, muitíssimo chateado. À nossa frente surgiram rochas cinzentas, espalhadas através de toda a largura do rio. O timoneiro começou a gritar, como se praguejasse, com uma voz penetrante e forte. Os negros bateram furiosamente com os remos e quando se verificou que as «rochas» eram hipopótamos mergulhados o barco readquiriu velocidade. A manada dos animais de pele dura ficou para trás e acima do spiash rítmico dos remos e do canto rouco e forte dos remadores, ouviu-se uma espécie de rugido cavo. de origem desconhecida. Ao longe, onde o rio desaparecia entre margens cada vez mais íngremes, vi dois arco-íris imensos, tremeluzentes, a inclinarem-se um para o outro. — Age. Atmai! Annai! Agee! — gritou freneticamente o timoneiro. Os negros redobraram os esforços e o barco pareceu ter adquirido asas. A mulher estendeu a mão. sem olhar, para a mão do companheiro. O timoneiro gritava. A canoa avançava a uma velocidade espantosa. A proa ergueu-se. nós descemos da crista de uma vaga enorme e aparentemente imóvel e por entre as filas de costas pretas que se moviam a um ritmo incrível vi uma curva do rio: as águas subitamente escurecidas embatiam numa porta de pedra. A corrente partia-se em duas. Mantivemo-nos do lado direito, onde a água subia em cristas de espuma cada vez mais brancas, enquanto o braço esquerdo do rio desaparecia, como que amputado, e só um trovejar monstruoso e colunas de névoa turbilhonante inidicavam que aquelas rochas ocultavam uma queda-dágua. Evitámo-la e chegámos ao outro braço do rio. mas as coisas aí também não estavam pacíficas. A canoa empinava-se como um cavalo entre penedos pretos, cada um dos quais detinha uma parede alta de água rugidora. As margens aproximaram-se e os negros do lado direito do barco pararam de remar e encostaram ao peito os cabos rombos dos remos. Depois, com um choque cuja força pôde ser avaliada pelo som cavo que produziu, o barco foi repelido pela rocha e lançado no centro da corrente. A proa pareceu voar para cima e o timoneiro que lá se encontrava manteve o equilíbrio graças a algum milagre. Senti o frio dos salpicos soltados pelas arestas das rochas quando a canoa, a vibrar como uma mola, acelerou e desceu. À nossa passagem pelos rápidos foi e.xtraordinária. De ambos os lados brilhavam rochas pretas com jubas ondulantes de água e. vezes repetidas, a canoa foi desviada delas pelos remos e, com um estremeção, pareceu fazer tabela e voltou para a garganta da água mais rápida, como uma seta lançada através de espuma branca. Olhei para cima e vi. lá no alto entre as copas dos sicómoros, pequeninos macacos aos saltos de ramo para ramo. Tive de me agarrar aos lados da embarcação, tão forte foi o solavanco seguinte, e na parede de água que correu para nós de ambos os lados ficámos num instante encharcados até aos ossos. Descemos num ângulo ainda mais agudo — estávamos a cair, os penhascos da margem desfilavam como estátuas de pássaros monstruosos num caos de asas aguçadas e trovoada. Recortadas no céu. as silhuetas tensas dos remadores, como guardiões num cataclismo foram lançados a direito para um pilar de pedra que dividia o estreito em dois e à frente do qual redemoinhava um vórtice preto de água. Voámos na direcção da barreira e eu ouvi um grito de mulher. Os negros lutavam com o frenesi do desespero e o timoneiro levantava os braços; vi-lhe os lábios escancarados num grito, mas não ouvi nenhuma voz. Ele pareceu dançar na proa, a canoa virou-se de lado, uma onda deteve-nos, durante um segundo ficámos imobilizados, como se o trabalho dos remos não servisse para nada, depois o barco deu uma volta e andou para trás cada vez mais depressa. Num instante, as duas filas de negros largaram os remos e desapareceram: sem hesitar, lançaram-se pela borda fora de cada lado da embarcação. O último a efectuar o perigoso salto foi o timoneiro. A mulher gritou segunda vez. O seu companheiro aguentava firme com os pés contra o lado oposto do barco e ela agarrava-se a ele. Observei, extasiado, o espectáculo da água revolta e dos arco-íris. O barco embateu em qualquer coisa, ouviu-se um grito, um grito penetrante… Através do caminho da impetuosa corrente descendente que nos arrastava encontrava-se, imediatamente acima da superfície, uma árvore, um gigante da floresta, que caíra e formara uma espécie de ponte. Os outros dois deixaram-se cair no fundo da embarcação. Na fracção de segundo que me restava, perguntei-me se deveria fazer o mesmo. Sabia que tudo aquilo — os negros, a velocidade dos rápidos e a queda de água africana — era apenas uma espantosa ilusão, mas não era capaz de continuar sentado enquanto a proa da canoa se infiltrava sob o tronco resinoso e a pingar da enorme árvore. Era superior às minhas forças. Atirei-me ao chão, mas ao mesmo tempo levantei a mão, que passou através do tronco da árvore sem lhe tocar. Não senti nada, como esperara, mas apesar disso a ilusão de que escapáramos miraculosamente a uma catástrofe manteve-se intacta. Mas ainda não acabara, A onda seguinte empinou o barco, depois uma enorme vaga apanhou-nos e virou-nos, e nos segundos seguintes a embarcação descreveu um círculo diabólico, arrastada para o centro do redemoinho. Se a mulher gritou, não a ouvi; não teria ouvido nada naquele momento. Senti com o corpo todo o choque, o rachar da canoa, e os meus ouvidos foram como que tapados pelo rugir da queda-dágua. A canoa foi atirada para cima com enorme força e ficou entalada entre dois rochedos. Os outros dois saltaram para uma rocha coberta de espuma e amarinharara por ela acima comigo atrás. Encontrámo-nos num penhasco entre dois braços de brancura trémula. A margem direita estava muito distante; para a esquerda seguia uma ponte presa em fendas da rocha, uma espécie de passagem elevada acima das ondas que mergulhavam nos abismos daquele diabólico caldeirão. O ar estava frio da névoa e da espuma; a ponte estreita pairava, sem corrimãos e escorregadia da humidade, acima da parede de som. Era necessário colocar os pés nas tábuas meio podres, mal unidas umas às outras por meio de cordas, e caminhar alguns passos para chegar à margem. Os outros estavam de joelhos à minha frente e aparentemente discutiam quem deveria ir primeiro. Eu não ouvia nada, claro. Era como se o próprio ar tivesse endurecido em consequência do troar constante. Por fim, o jovem levantou-se e disse-me qualquer coisa, a apontar para baixo. Vi a canoa. A sua proa partida dançou numa onda e desapareceu, a rodopiar cada vez mais depressa, atraída pelo redemoinho. O jovem de pele de tigre estava menos indiferente ou sonolento do que no princípio da viagem, mas parecia aborrecido, como se estivesse ali contra sua vontade. Agarrou no braço da mulher e eu pensei que tivesse endoidecido, pois não havia dúvida de que a puxava a direito para a garganta rugidora. Ela disse-lhe qualquer coisa e vi-lhe um clarão de indignação nos olhos. Pus as mãos nos ombros deles, disse-lhes por sinais que me deixassem passar e pus os pés na ponte, que balouçava e dançava. Caminhei não muito depressa, movendo os ombros para me equilibrar. No meio balancei uma ou duas vezes e, de súbito, a ponte começou a oscilar, de tal modo que quase caí. Sem esperar que eu chegasse ao outro lado, a mulher meteu também pela pene. Com medo de cair, saltei para a frente, pousei mesmo à beirinha do rochedo e virei-me imediatamente. A mulher não atravessara: voltara para trás. O homem novo começou a atravessar primeiro, a segurá-la pela mão. As estranhas formas criadas pela queda-dágua, fantasmas pretos e brancos, constituíam um pano de fundo da sua instável passagem. Ele estava perto; estendi-lhe a mão. Ao mesmo tempo, a mulher tropeçou, a ponte começou a oscilar e eu puxei como se preferisse arrancar-lhe o braço a deixá-lo cair. O ímpeto transportou-o numa distância de dois metros e ele aterrou de joelhos atrás de mim. Mas largou a mulher. Ela ainda estava no ar quando eu saltei, com os pés para a frente, a fim de entrar na água em ângulo, entre a margem e a face vertical do rochedo mais próximo. Pensei em tudo isso mais tarde, quando tive tempo. Essencialmente, sabia que a queda-dágua e a travessia da ponte eram uma ilusão, como o provava o tronco da árvore através do qual a minha mão passara. Apesar disso, saltei como se ela corresse verdadeiro perigo de vida, e até me lembro de que, por instinto, me preparei para o impacte gelado com a água, cujos salpicos nos tinham molhado constantemente o rosto e as roupas. No entanto, não senti nada além de um forte jacto de ar e aterrei numa sala espaçosa, de pernas ligeiramente dobradas, como se tivesse saltado, no máximo, da altura de um metro. Ouvi um coro de gargalhadas. Fiquei parado num chão macio, que parecia de plástico, rodeado por outras pessoas, algumas ainda com a roupa molhada. Olhavam para cima e riam à gargalhada. Segui a direcção do seu olhar. Era extraordinário. Não havia vestígios de quedas-dágua, de penhascos, nem do céu africano. Vi um tecto iluminado e, debaixo dele, uma canoa que acabava de chegar. Na realidade, tratava-se de uma espécie de decoração, pois só parecia uma embarcação vista de cima e dos lados. A base era uma espécie de construção metálica qualquer. Estavam quatro pessoas deitadas dentro dela, mas nada as cercava — nem remadores negros, nem rochedos, nem rio: apenas finos jactos de água que esguichavam de vez em quando de agulhetas ocultas… A certa distância erguia-se o obelisco de rocha onde a nossa viagem terminara. Erguia-se como um balão preso, pois não tinha nada a suportá-lo. Dele, a ponte conduzia a uma saída de pedra que irrompia da parede de metal. Um pouco mais alto, pequenos degraus com um corrimão e uma porta. E era tudo. A canoa com as pessoas lá dentro levantou-se e caiu sem o mínimo som. A única coisa que eu ouvia eram as explosões de riso que acompanhavam cada fase sucessiva da aventura da queda-dágua que não existia. Passado um bocado, a canoa colidiu com a rocha e as pessoas saltaram; tinham de atravessar a ponte… Tinham decorrido talvez 20 segundos depois do meu salto. Olhei à procura da mulher. Estava a observar-me. Senti-me ainda mais confuso. Não sabia se devia ir ter com ela. Mas a multidão começou a sair e no momento seguinte encontrámo-nos ao lado um do outro. — É sempre a mesma coisa — comentou ela, então. — Caio sempre! A noite no parque, o fogo de vista e a música não me pareceram, não sei explicar porquê, inteiramente reais. Saímos com a multidão, que estava agitada após os terrores que acabara de experimentar. Vi o companheiro da mulher a abrir caminho na direcção dela. Mostrava-se de novo letárgico. Nem sequer pareceu reparar em mim. — Vamos ao Palácio de Merlin — disse a mulher, tão alto que ouvi. Não tencionara escutar, mas uma nova onda de gente excitada aproximou-nos ainda mais. Por essa razão, continuei parado perto deles. — Estás com um ar de quem tenta escapar — disse ela, a sorrir. — De que estás com medo, de bruxaria?… Falava com ele, mas olhava para mim. Podia ter aberto caminho para me afastar, claro, mas, como sempre em tais situações, tive muito medo de parecer ridículo. Continuaram a andar e deixaram um vazio na multidão. Outros, perto de mim, decidiram de súbito visitar o Palácio de Merlin, e quando segui nessa direcção, com algumas pessoas a separar-nos, compreendi que um momento antes me não enganara. Avançámos um passo de cada vez. No relvado encontravam-se potes de alcatrão com chamas trémulas, cuja luz revelava íngremes bastiões de tijolo. Atravessámos uma ponte levadiça, por cima de um fosso, e passámos por baixo dos dentes nus de uma porta levadiça. Envolveram-nos a penumbra e o frio de um átrio de pedra; uma escada de caracol subia, cheia de ecos de passos. Mas o corredor arqueado do andar superior continha menos gente. O corredor conduzia a uma galeria com vista para um pátio onde uma turba barulhenta, montada em cavalos ajaezados, perseguia uma monstruosidade negra qualquer. Segui, hesitante, sem saber para onde ir, entre diversas pessoas que começava a reconhecer. A mulher e o companheiro passaram por mim entre colunas. Havia armaduras vazias em recantos das paredes. Mais adiante, uma porta com adornos de cobre — uma porta para gigantes — abriu-se e permitiu-nos a entrada numa câmara forrada de damasco vermelho e iluminada por archotes cujo fumo resinoso irritava o nariz. Em diversas mesas, banqueteava-se uma ruidosa companhia, de piratas ou cavaleiros andantes; enormes metades de animais giravam em espetos, lambidos por chamas; uma luz avermelhada dançava nos rostos suados; ossos estalavam entre os dentes dos farristas de armadura, que de vez em quando se levantavam da mesa e se misturavam connosco. Na sala seguinte, diversos gigantes jogavam boliche, utilizando crânios como bolas. Tudo aquilo me pareceu tremendamente ingénuo, medíocre. Parara ao lado dos jogadores, que eram tão altos como eu, quando alguém chocou comigo, por trás, e gritou de supresa. Voltei-me e deparou-se-me o olhar de um jovem, que tartamudeou uma desculpa e se afastou muito depressa, com uma expressão idiota no rosto. Só o olhar da mulher de cabelo escuro, que era a razão da minha presença naquele palácio de maravilhas baratas, me permitiu compreender o que acontecera: o jovem tentara passar através de mim, tomando-me por um dos farristas irreais de Merlin. O próprio Merlin nos recebeu numa ala distante do palácio, rodeado por um séquito de homens mascarados que o ajudavam passivamente nos seus actos mágicos. Mas eu já vira o suficiente e observei com indiferença as demonstrações da arte negra. O espectáculo não tardou a terminar e a assistência começara a sair quando Merlin, grisalho e majestoso, nos barrou a passagem e apontou silenciosamente a porta oposta, coberta por um lençol. Convidou a entrar apenas a nós três. Ele não entrou. Encontrámo-nos numa sala relativamente pequena, muito alta, uma das paredes da qual era um espelho desde o tecto ao chão preto e branco. A impressão que dava era a de uma sala com o dobro do tamanho e seis pessoas de pé num tabuleiro de xadrez de pedra. Não havia móveis, nada além de um jarrão alto de alabastro com um ramo de flores que pareciam orquídeas, mas tinham grandes cálices. Era cada uma de sua cor. Nós estávamos voltados para o espelho. Depois a minha imagem olhou para mim. O movimento não foi uma reflexão de mim próprio. Eu fiquei imóvel, mas a imagem, alta e de ombros largos, olhou primeiro, lentamente, para a mulher de cabelo escuro e depois para o seu companheiro. Nenhum de nós se mexia, só as nossas imagens, que misteriosamente se tinham tomado independentes de nós, pareciam ter adquirido vida e desempenhavam entre elas uma cena silenciosa. No espelho, o jovem aproximou-se da mulher e fitou-a nos olhos. Ela abanou a cabeça, numa recusa, e depois tirou as flores do vaso branco e escolheu três: uma branca, uma amarela e um preta. Deu a branca ao jovem e dirigiu-se-me com as outras duas. A mim, no espelho, ofereceu ambas as flores. Eu aceitei a preta. Depois ela voltou para o seu lugar e todos três — ali, na sala do espelho — assumimos exactamente as posições que na realidade ocupávamos. Quando isso aconteceu, as flores desapareceram das mãos dos nossos duplos, que voltaram a ser apenas simples reflexos, a repetir fielmente cada movimento nosso. Abriu-se uma porta na parede mais distante e descemos uma escada de caracol. Colunas, alcovas, abóbadas, assumiam imperceptivelmente o prateado e o branco dos corredores de plástico. Continuámos a caminhar em silêncio, nem separados nem juntos. A situação estava a tomar-se intolerável, mas que havia eu de fazer? Dar um passo em frente e apresentar-me à moda antiga, com um antiquado savoir-vivre? O som abafado de uma orquestra. Era como se estivéssemos nos bastidores, atrás de um palco invisível. Havia algumas mesas vazias, com as cadeiras puxadas para trás. A mulher parou e perguntou ao companheiro: — Não danças? — Não quero — respondeu ele. Ouvi a sua voz pela primeira vez. Era um jovem atraente, mas cheio de inércia, de uma inexplicável passividade, como se nada no mundo lhe importasse. Tinha belos lábios, quase de rapariga. Olhou para mim e depois para ela, mas não disse nada. — Bem, então vai-te embora, se queres — disse ela. Ele afastou uma cortina que formava uma das paredes e foi-se embora. Comecei a segui-lo. — Por favor?… — ouvi a voz dela chamar. Parei. De trás da cortina chegou o som de aplausos. — Não se senta? Sentei-me, sem uma palavra. Ela tinha um perfil magnífico. Pequenos escudos de pérola cobriam-lhe as orelhas. — Sou Aen Aenis. — Hal Bregg. Pareceu surpreendida. Não pelo meu nome — que não significava nada para ela —, mas sim pelo facto de eu ter recebido o seu tão indiferentemente. Pude olhá-la melhor. A sua beleza era perfeita e implacável, assim como a indiferença calma e controlada dos seus movimentos. Usava um vestido cinzento-rosado, mais cinzento do que rosado, que lhe realçava a brancura do rosto e dos braços. — Não gosta de mim? — perguntou calmamente. — Não a conheço. — Sou Ammai, em Os Sinceros. — Que é isso? Olhou-me com curiosidade. — Não viu Os Sinceros? — Nem sequer sei o que é. — De onde veio? — Vim do meu hotel. — Realmente? Do seu hotel… — Havia um franco tom trocista na sua voz. — E posso perguntar-lhe onde esteve antes de chegar ao seu hotel? — Em Fomalhaut. — Que é isso? — Uma constelação. — Que quer dizer? — Um sistema de estrelas a vinte e três anos-luz daqui. As pálpebras palpitaram-lhe. Entreabriu os lábios. Era muito bonita. — Astronauta? — Sim. — Compreendo. Eu sou uma realist… muito famosa. Não disse nada. Ficámos silenciosos. A música tocava. — Dança? Quase ri alto. — O que dançam agora, não. — É uma pena. Mas pode aprender. Porque fez aquilo? — O quê? — Lá na ponte. Não respondi imediatamente. — Foi… um reflexo. — Estava familiarizado com aquilo? — Com aquela viagem de faz de conta? Não. — Não? — Não. Um momento de silêncio. Os seus olhos, por instantes verdes, tornaram-se quase pretos. — Só em impressões muito antigas se encontra esse género de coisa — observou, como que involuntariamente. — Ninguém representaria… Não é possível. Quando vi aquilo, pensei que… que você… Fiquei à espera. — … que talvez fosse capaz. Porque tomou o caso a sério. Não tomou? — Não sei. Talvez. — Não se preocupe. Eu sei. Estaria interessado? Sou amiga de Frenet. Mas não sabe quem ele é, pois não? Hei-de dizer-lhe… É o principal produtor do real. Se está interessado… Desatei a rir e ela estremeceu. — Desculpe. Mas, meu Deus, pensou arranjar-me emprego como… — Pensei. Não pareceu ofendida. Pelo contrário. — Obrigado, mas não. Acho realmente que não. — É capaz de me dizer como o fez? É segredo? — Como? Que quer dizer? Não viu?… Calei-me. — Quer saber como fui capaz de o fazer. — É muito perceptivo. Sabia como ninguém sorrir só com os olhos. «Espera, que daqui a bocadinho já não estarás interessada em seduzir-me», pensei. — É simples e não é segredo: não estou betrizado. — Oh! Por momentos pensei que se fosse levantar, mas controlou-se. Os seus olhos voltaram a tomar-se grandes e ávidos. Olhou-me como a uma fera que se encontra a um passo de distância, como se tivesse um perverso prazer no terror que lhe despertava. Para mim isso constituiu um insulto maior do que se se tivesse mostrado meramente assustada. — Pode…? — Matar? — concluí por ela, a sorrir cortesmente. — Posso, sim. — Ficámos silenciosos. A música continuava a tocar. Ela levantou diversas vezes os olhos para mim. Mas não falou. Nem eu. Aplausos. Música. Aplausos. Devemos ter ficado assim, calados, um quarto de hora. De súbito, ela levantou-se. — Vem comigo? — Aonde? — A minha casa. — Paia uma taça de brit? — Não. Voltou-se e partiu. Eu continuei sentado, imóvel. Detestava-a. Caminhava sem olhar para os lados, caminhava como eu nunca vira mulher nenhuma caminhar. Ou melhor, flutuava. Como uma rainha. Alcancei-a entre as sebes, onde estava quase escuro. Os últimos vestígios de luz dos pavilhões fundiam-se com a claridade azulada da cidade. Ela deve ter ouvido os meus passos, mas continuou a andar, sem olhar, como se estivesse sozinha, mesmo quando lhe agarrei o braço. Foi andando sempre. Foi como se me desse uma bofetada. Agarrei-lhe nos ombros e voltei-a para mim. Ela ergueu o rosto, branco na escuridão, e fitou-me nos olhos. Não tentou soltar-se. Nem o teria conseguido. Beijei-a brutalmente, cheio de ódio. Senti-a tremer. — Seu… — murmurou em voz baixa, quando nos separámos. — Cale-se. Tentou libertar-se. — Ainda não — disse-lhe, e recomecei a beijá-la. De súbito, a minha raiva transformou-se em náusea por mim próprio e larguei-a. Pensei que fosse fugir, mas ficou. Tentou olhar-me no rosto, mas eu desviei-o. — Oue se passa? — perguntou, serenamente. — Nada. Deu-me o braço e disse: — Venha. Passou por nós um casal que desapareceu nas sombras. Segui-a. Ali, na escuridão, parecera que tudo era possível, mas, quando a claridade aumentou, a minha explosão de um momento antes — que deveria ter sido uma represália por um insulto — tomou-se meramente divertida. Senti que me encaminhava para qualquer coisa falsa, tão falsa como o perigo, a magia. Tinha sido tudo falso. E continuei a andar. Sem cólera, sem ódio, sem nada. Não me importava. Encontrei-me entre luzes altas e senti a minha enorme e pesada presença, que tomava grotesco cada passo que dava a seu lado. Mas ela parecia alheia a isso. Caminhou ao longo de uma plataforma atrás da qual se encontravam filas de gleeders. Quis ficar para trás, mas a mão dela deslizou pelo meu braço e agarrou a minha. Se quisesse deixá-la teria de puxar a mão, tomando-me ainda mais cómico — iima imagem de virtude astronáutica nas garras da mulher de Putífar. Subi atrás dela e o veículo estremeceu e arrancou. Foi a minha primeira viagem de gleeder e compreendi finalmente por que motivo não tinham janelas: do interior eram completamente transparentes, como se fossem de vidro. Viajárnos durante muito tempo, em silêncio. Os edifícios do centro da cidade cederam o lugar a formas estranhas de arquitectura suburbana — sob pequenos sóis artificiais, imersas em vegetação, encontravam-se estruturas de linhas ondulantes, ou infladas a formar estranhas almofadas, ou com alas. de modo que a divisão entre o interior de uma casa e o que a rodeava se perdia. Eram produtos de fantasmagoria, de incansáveis tentativas para criar sem repetir formas antigas. O gleeder saiu do largo corredor de trânsito, meteu por um parque às escuras e parou junto de uma escada que se dobrava como uma cascata de vidro. Ao subi-la. vi um laranjal alastrar debaixo dos meus pés. O pesado portão abriu-se silenciosamente. Um vestíbulo imenso cercado por uma galeria alta. quebra-luzes rosa-pálido de candeeeiros que não estavam apoiados em nada nem suspensos de nada; nas paredes inclinadas, janelas que pareciam dar para um espaço diferente, nichos que não continham fotografias nem bonecos, mas sim a própria Aen. enorme… Mesmo em frente. Aen nos braços de um homem moreno que a beijava, por cima da escada ondulante: Aen na brancura tremeluzente de um vestido, e, ao lado. Aen inclinada para flores, para lilases do tamanho do seu rosto. Ao caminhar a seu lado. voltei a vê-la noutra janela, a sorrir gaiatamente, sozinha, com a luz a tremer-lhe no cabelo acobreado. Degraus verdes. Uma sucessão de salas brancas. Degraus prateados. Corredores de ponta a ponta e. neles, movimento lento e incessante, como se o espaço respirasse. As paredes recuavam silenciosamente, a abrir caminho para onde quer que a mulher que ia à minha frente dirigia os seus passos. Poder-se-ia pensar que um vento imperceptível soprava em redor das intersecções das galerias, a esculpi-las, e que tudo quanto eu vira até ali era apenas um limiar, uma apresentação, um vestíbulo. Através de uma sala, iluminada do exterior pela mais delicada nervação de gelo que se possa imaginar, tão branca que até as sombras pareciam leitosas, entrámos numa divisão mais pequena — depois da radiãncia pura da outra, a sua cor de bronze era como um grito. Não havia lá nada além de uma luz misteriosa, de uma fonte que parecia Invertida, pois brilhava em nós e na nossa cara vinda de baixo. Ela fez um movimento com a mão e a luz empalideceu. Aproximou-se da parede e com alguns gestos fez aparecer um volume que começou imediatamente a abrir-se e a formar uma espécie de larga cama de casal — eu sabia o suficiente de topologia para apreciar a investigação que tinha sido dedicada só à linha da cabeceira. — Temos um convidado — disse ela. parando. Do painel aberto saiu uma mesa posta, que correu para ela como um cão. As luzes grandes apagaram-se quando, sobre um nicho com poltronas — não sei descrever de que espécie eram — ela fez um gesto para que aparecesse um pequeno candeeiro. E a parede obedeceu. A minha anfitriã parecia ter muitas daquelas desabrochantes peças de mobiliário. Inclinou-se sobre a mesa e perguntou, sem olhar na minha direcção: — Blar? — Está bem — respondi. Não fiz perguntas. Não podia deixar de ser um selvagem, mas ao menos podia ser um selvagem silencioso. Estendeu-me um cone alto com um tubo. Cintilava como um rubi mas era macio, como se eu tivesse tocado na pele penugenta de um fruto. Pegou também num. Sentámo-nos. As cadeiras eram desconfortavelmente macias e tive a sensação de me sentar numa nuvem. O líquido sabia a frutos frescos desconhecidos e tinha pequenos glóbulos que inesperada e divertidamente explodiam na língua. — É bom? — perguntou-me. Talvez fosse uma bebida de ritual. Por exemplo, para os eleitos; ou, pelo contrário, para pacificar os especialmente perigosos. Mas eu decidira que não faria perguntas. — Fica melhor sentado. — Porquê? — É tremendamente grande. — Bem sei. — Esforça-se por ser grosseiro. — Nãó, é natural em mim. Começou a rir, baixinho. — Também sou espirituoso. Tenho toda a espécie de talentos. — É diferente. Ninguém fala assim. Porque é? O que sente? — Não compreendo. — Está a fingir. Ou talvez tenha mentido… Não, isso não é possível. Não teria sido capaz de… — Saltar? — Não estava a pensar nisso. — Em que pensava, então? Semicerrou os olhos. — Não sabe? — Ah, isso! Já não se faz? — Faz. mas não desse modo. — Faço-o assim tão bem? — Não, certamente que não. Mas foi como se quisesse… — não completou a frase. — Como se quisesse o quê? — Você sabe. Eu senti-o. — Estava zangado — confessei. — Zangado! — exclamou, desdenhosamente. — Eu pensei que… Não sei o que pensei. Ninguém se atreveria, sabe? Comecei a sorrir um pouco. — E você gostou. — Não compreende. Este é um mundo sem medo. Mas você… uma pessoa pode ter medo de você. — Quer mais? — perguntei. Os lábios dela entreabriram-se e olhou-me de novo como se eu fosse uma fera imaginária. — Quero. Aproximou-se de mim. Peguei-lhe na mão e encostei-a, aberta, à palma da minhaj Os seus dedos mal chegavam aos meus. — Tem a mão tão dura — comentou. — É das estrelas. Têm arestas aguçadas. E agora diga; Tem uns dentes tão grandes! Sorriu. — Os seus dentes são vulgares. Depois levantou-me a mão e fê-lo com tanto cuidado que me lembrei do encontro com o leão. Mas, em vez de me sentir ofendido, sorri, pois era tremendamente estúpido. Levantou-se, deitou uma bebida de uma pequena garrafa escura e bebeu-a. — Sabe o que era? — perguntou-me de rosto franzido, como se o líquido a tivesse queimado. Tinha enormes pestanas, sem dúvida postiças. As actrizes têm sempre pestanas postiças. — Não. — Não dirá a ninguém? — Não. — Perto. — Bem… — murmurei, sem me comprometer. Abriu os olhos e observou: — Já o tinha visto antes. Ia a caminhar com um velho horrível e depois voltou sozinho. — Como se o quê? — Era o filho de um jovem colega meu — respondi, e o singular é que era verdade. — Atrai as atenções, sabia? — Que posso eu fazer? — Não só por ser tão grande… Anda de modo diferente e… olha à sua volta como se… — Como se o quê? — Como se estivesse na defensiva. — Contra quê? Não me respondeu. A sua expressão modificou-se. A respirar mais pesadamente, observou a própria mão, Os dedos tremiam. — Agora… — murmurou suavemente e sorriu, embora o sorriso me não fosse dirigido. O seu sorriso tornou-se inspirado, as pupilas dilataram-se e absorveram a íris, recíinou-se devagar até assentar a cabeça na almofada cinzenta, com o cabelo solto e a olhar-me com uma espécie de jubilante letargia. — Beije-me. Beijei-a, mas foi horrível, porque queria e não queria. Parecia-me que deixara de ser ela própria, como se tivesse a faculdade de se transformar noutra qualquer, em qualquer momento. Enfiou os dedos no meu cabelo. A sua repiração, quando se afastou de mim, parecia um gemido. «Um de nós é falso, desprezível», pensei. «Mas quem, ela ou eu?» Beijei-a, o seu rosto era dolorosamente belo, terrivelmente estranho. Depois foi só prazer, um prazer insuportável, mas mesmo então permaneceu em mim o observador frio e silencioso. Não me abandonei. As costas da cadeira, obedientes, transformaram-se num apoio para as nossas cabeças. Era como a presença de uma terceira pessoa degradantemente atenta, e, como se conscientes disso, não trocámos uma só palavra durante o tempo todo. Depois dormitei, com os meus braços à roda do pescoço dela, mas continuei com a sensação de que estava ali alguém a observar, a observar… Quando acordei ela estava a dormir. Era uma sala diferente… Não, era a mesma. Mas mudara, de certo modo. Uma parte da parede desviara-se para revelar a alvorada. Por cima de nós, como se tivesse sido esquecido, estava aceso um candeeiro estreito. Em frente, por cima das copas das árvores ainda quase pretas, o dia rompia. Desviei-me cautelosamente para a beira da cama. Ela murmurou qualquer coisa parecida com «Alan» e continuou a dormir. Caminhei através de salas enormes e vazias, com janelas voltadas para oriente. Uma luminosidade vermelha entrava por elas e enchia o mobiliário transparente, que tremeluzia com o fogo do vinho tinto. Através da sucessão de salas vi a silhueta de alguém a andar — um robot cinzento-pérola sem rosto, com uma luz fraca a emanar do tronco e, no interior, uma chama rubi, com uma pequena vela diante de um ícone. — Desejo ir-me embora — disse-lhe. — Sim, senhor. Prata, verde, escadas azul-celeste. Disse adeus a todas as caras de Aen no átrio alto como uma catedral. Já era dia. O robot abriu o portão. Disse-lhe que me chamasse um gleeder. — Sim, senhor. Gostaria do da casa? — Pode ser o da casa. Quero ir para o Alcaron Hotel. — Muito bem, senhor. Entendido. Alguém me falara já daquele modo. Quem? Não me lembrava. Descemos ambos os degraus íngremes — para que, até ao fim, se não esquecesse de que aquilo era um palácio e não uma casa. Entrei no veículo à luz do Sol nascente. Quando começou a andar, olhei para trás. O robot continuava parado numa pose subserviente, lembrando um pouco um louva-a-deus com os seus braços finos e articulados. As ruas estavam quase desertas. Nos jardins, como estranhos navios abandonados, as moradias repousavam — sim, repousavam, como se tivessem apenas pousado por um momento entre as sebes e as árvores, com as asas coloridas e angulosas dobradas. Havia mais gente no centro da cidade. Pináculos com os cumes incendiados de sol, casas em jardins de palmeiras, casas leviatãs que pareciam apoiadas em andas muito dispersas… A rua cortava através delas e voava para o horizonte azul. Não olhei para mais nada. No hotel tomei banho e telefonei para a agência de viagens. Reservei um ulder para o meio-dia. Divertiu-me um pouco poder dizer o nome com tanta facilidade, embora não fizesse ideia nenhuma do que era um ulder. Dispunha de quatro horas. Telefonei ao infor do hotel e pedi informações acerca dos Bregg. Não tinha quaisquer descendentes, mas o irmão do meu pai deixara dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Mesmo que não estivessem vivos, os seus filhos… O infor enumerou onze Bregg. Pedi então a sua genealogia. Fiquei a saber que só um deles, um Atai Bregg, pertencia à minha família. Era o neto do meu tio e já nada jovem: tinha quase 60 anos. Descobrira, pois, o que queria saber. Levantei até o auscultador com a intenção de lhe telefonar, mas voltei a pô-lo no descanso. No fim de contas, que tinha a dizer-Ihe? Ou ele a mim? Como morrera o meu pai? Como morrera a minha mãe? Eu morrera antes para eles e agora não tinha direito nenhum de perguntar, como seu filho sobrevivente. Teria sido — pelo menos assim pensei, naquele momento — um acto de traição, como se os tivesse ludibriado fugindo cobardemente ao futuro, escondendo-me dentro do tempo, que fora menos mortal para mim do que para eles. Eles é que me tinham sepultado entre as estrelas, e não eu a eles, na Terra. No entanto, voltei a levantar o auscultador. O telefone tocou durante muito tempo. Por fim, o robot da casa atendeu e informou-me de que Atai Bregg estava fora da Terra. — Onde? — perguntei muito depressa. — Em Luna. Estará ausente durante quatro dias. Que lhe devo dizer? — Que faz ele? Qual é a sua profissão? — perguntei. — É que não tenho bem a certeza de ser a mesma pessoa que pretendo, talvez haja engano… Não sei porquê, era mais fácil mentir a um robot. — É psicopedista. — Obrigado. Voltarei a telefonar dentro de dias. Desliguei. Pelo menos não era astronauta. Óptimo. Liguei outra vez para o infor do hotel e perguntei o que recomendava como diversão para as próximas duas ou três horas. — Experimente o nosso realon. — Que vai lá? — A Fiancée. É o último real de Aen Aenis. Desci, pois o realon ficava no rés-do-chão. O espectáculo já começara, mas o robot da entrada disse-me que não perdera praticamente nada, apenas alguns minutos. Conduziu-me, às escuras, puxou uma cadeira em forma de ovo e, depois de me sentar, desapareceu. A minha primeira impressão foi de estar sentado perto do palco de um teatro… ou melhor, no próprio palco, tão perto estavam os actores. Parecia que se estendêssemos a mão lhes tocaríamos. Estava com sorte, pois tratava-se de uma história do meu tempo: por outras palavras, um drama histórico. Os anos em que a acção tinha lugar não eram exactamente especificados, mas a julgar por certos pormenores tratava-se de uma ou duas décadas depois da minha partida. Fiquei imediatamente encantado com o guarda-roupa. O cenário era naturalista, mas diverti-me por essa mesma razão, pois encontrei um grande número de erros e de anacronismos. O herói, um homem atraente e moreno, de cabelo castanho, saiu de casa em trajo de cerimónia (a cena passava-se de manhã cedo) e foi de carro encontrar-se com a sua amada. Levava até chapéu alto, mas cinzento, como se fosse um inglês a cavalgar no Derby. Mais tarde, apareceu uma estalagem romântica à beira da estrada, com um estalajadeiro como eu nunca vira — parecia um pirata. O herói sentou-se nas abas do casaco e bebeu cerveja por uma palhinha, etc. De súbito, deixei de sorrir. Aen entrara. Vestia de modo absurdo, mas isso tornou-se irrelevante. O espectador sabia que ela amava outro e andava a enganar o jovem. O papel típico e melodramático da mulher traiçoeira, sentimentalismo, cliché. Mas Aen fazia-o de modo diferente. Era uma rapariga cabeça-no-ar, afectuosa e, em virtude da ilimitada ingenuidade da sua crueldade, uma criatura inocente que levava infelicidade a toda a gente porque não queria tomar ninguém infeliz Quando caía nos braços de um homem esquecia-se do outro, e fazia-o de tal maneira que acreditámos na sua sinceridade, de momento. Mas todos aqueles disparates eram incoerentes, não se aguentavam, e só restava Aen, a grande actriz. O real era mais do que apenas um filme, pois sempre que me concentrava em qualquer parte da cena esta tomava-se maior, expandia-se. Por outras palavras, o próprio espectador, por escolha própria, decidia se veria um close-up ou a imagem toda. Entretanto, o que restava na periferia do seu campo de visão não sofria qualquer distorção. Tratava-se de um truque óptico diabolicamente inteligente que produzia uma ilusão de uma realidade exraordinariamente viva, quase ampliada. Depois fui para o meu quarto acondicionar as minhas coisas, pois partiria dentro de minutos. Afinal, tinha mais coisas do que imaginara. Ainda não estava pronto quando o telefone me anunciou que o meu ulder estava à espera. — Desço num minuto — respondi. O robot carregador levou as minhas malas e eu ia a sair quando o telefone tocou de novo. Hesitei. O sinal suave repetiu-se incansavelmente. «Para que não pareça que fujo», pensei enquanto levantava o auscultador, embora não tivesse bem a consciência do motivo por que o fazia. — É você? — Sou. Está levantada? — Há muito tempo. Que está a fazer? — Vi-a. No real. — Sim? — Foi tudo quanto ela disse, mas eu apercebi-me da satisfação da sua voz, que significava: é meu. — Não — disse. — Não o quê? — Pequena, é uma grande actriz. Mas eu não sou de modo nenhum a pessoa que imagina. — Também imaginei a noite passada? — interrompeu-me. Na sua voz havia uma tremura de riso e, de súbito, o ridículo voltou. Não pude evitá-lo: o quacre das estrelas que caíra uma vez, grave, desesperado e modesto. — Não — respondi, a controlar-me —, não a imaginou. Mas eu vou-me embora. — Para sempre? Ela estava a divertir-se com a conversa. — Pequena… — comecei, mas não soube que acrescentar; durante um momento ouvi-lhe apenas a respiração. — E que se segue? — Não sei. — Corrigi-me imediatamente: — Nada. Vou-me embora. Não tem senso nenhum… — Absolutamente nenhum — concordou. — Mas é por isso que pode ser esplêndido. Que viu? Os Sinceros? — Não. A Fiancée. Escute… — É uma autêntica bomba. Não posso nem vê-la. Foi a pior coisa que fiz. Veja Os Sinceros… ou melhor, venha cá esta noite. Eu mostro-lho. Não, hoje não posso. Amanhã. — Aen, não irei. Parto realmente dentro de um minuto… — Não me trate por Aen, trate-me por «pequena» — pediu. — Pequena, vá para o Inferno! Pousei o auscultador, senti-me envergonhadíssimo comigo próprio, voltei a levantá-lo e a pousá-lo. Saí do quarto a correr, como se fosse alguém atrás de mim. Em baixo disseram-me que o ulder estava no telhado. Tive, portanto, de subir. No telhado havia um jardim-restaurante e um aeroporto. Na realidade, tratava-se de um restaurante-aeroporto, uma mistura de níveis, plataformas voadoras e janelas invisíveis… Não teria encontrado o meu ulder nem num ano. Mas conduziram-me a ele, praticamente pela mão. Era mais pequeno do que supusera. Perguntei quanto tempo demoraria o voo, pois tencionava ler alguma coisa. — Cerca de doze minutos. Não valia a pena começar a ler nada. O interior do ulder lembrou-me o foguetão Thermo-Fax que eu pilotara em tempos, com a diferença de que era mais confortável. Mas quando a porta se fechou, enquanto o robot me desejava uma viagem agradável, as paredes tomaram-se imediatamente transparentes, e como eu me sentara no primeiro dos quatro lugares (os outros não estavam ocupados) tive a impressão de voar numa poltrona montada dentro de um grande copo. É engraçado, mas o ulder não tinha nada em comum com um foguetão ou um aeroplano; lembrava mais um tapete voador. O peculiar veículo moveu-se primeiro verticalmente, sem a mínima vibração e emitindo um longo assobio, e depois acelerou horizontalmente, como uma bala. Verificou-se de novo o que já observara uma vez antes: a aceleração não era acompanhada por ura aumento da inércia. Na primeira vez, na estação, julgara-me vítima de uma ilusão; agora, porém, tinha a certeza. É difícil exprimir por palavras o que senti. É que, se eles tinham de facto conseguido tornar a aceleração independente da inércia, então todas as hibernações, todos os testes, todas as selecções, dificuldades e frustrações da nossa viagem tinham sido completamente inúteis. Por isso, naquele momento, era como o conquistador de algum pico do Himalaia que, depois da indescritível dificuldade da subida, descobre que no cume há um hotel cheio de turistas, porque durante o seu labor solitário foi instalado do lado oposto um teleférico e arcadas de divertimentos. O facto de que, se tivesse permanecido na Terra, provavelmente não teria vivido para assistir àquela extraordinária descoberta constituía pequena consolação para mim: uma consolação seria saber que talvez aquele invento não se pudesse aplicar à navegação cósmica. Era, evidentemente, puro egoísmo da minha parte, admito, mas o choque foi tão grande que não me deixou mostrar o entusiasmo devido. Entretanto, o ulder voava, agora silenciosamente. Olhei para baixo. Estávamos a passar pelo Terminal. Ficou lentamente para trás, uma fortaleza de gelo. Nos níveis superiores, não visíveis da cidade, viam-se enormes plataformas pretas de fançamento de foguetões. Depois voámos relativamente perto da torre-pináculo, a que tinha faixas pretas e prateadas, e vi que se erguia acima do ulder. Da Terra não se podia avaliar a sua altura. Era uma ponte de tubo que unia a cidade e o céu e as «prateleiras» que irrompiam dela estavam cheias de ulders e de outros veículos maiores. As pessoas que se encontravam nessas faixas de aterragem pareciam sementes de papoula espalhadas numa salva de prata. Voámos sobre colónias de casas brancas e azuis e sobre jardins. As ruas foram-se tomando cada vez mais largas e com as superfícies também coloridas: predominavam o rosa-pálido e o ocre. Um mar de edifícios estendia-se até ao horizonte, ocasionalmente interrompido por faixas verdes, e eu receei que continuasse assim até Clavestra. Mas o veículo acelerou, as casas afastaram-se, dispersaram-se entre os jardins, e em vez delas começaram a aparcer enormes drculos e extensões rectas de estradas que corriam em numerosos níveis, se fundiam e entrecruzavam, mergulhavam debaixo do chão e convergiam em forma de estrelas, ou partiam em tiras ao longo de uma planura verde-cinzenta, debaixo do sol alto e coalhada de gleeders. Então, no meio de quadrângulos de árvores, emergiram grandes estruturas com telhados do formato de espelhos concávos, no centro dos quais ardia qualquer coisa vermelha. Mais adiante, as estradas separaram-se e o verde prevaleceu, aqui e ali interrompido por quadrados de vegetação diferente, vermelha e azul. Não podiam ser flores, pois as cores eram demasiado intensas. O Dr. Juffon sentir-se-ia orgulhoso de mim, pénsei. Ainda ia no terceiro dia e já… E que começo! Não fora uma qualquer, mas sim uma actriz brilhante e famosa. Não tivera medo, ou se o tivera também encontrara prazer no medo. Era preciso era continuação. Mas porque falara ele de intimidade? Era aquele o aspecto da intimidade deles? Com que heroicidade mergulhara na queda-d água! O nobre gorila. E depois uma beldade adorada pelo povo recompensou-o abundantemente. Que generoso da parte dela! Todo a. meu rosto ardia. «Está bem, cretino», disse a mim mesmo, brandamente, «que queres ao certo? Uma mulher? Tiveste uma mulher. Tiveste tudo quanto é possível ter aqui, incluindo um convite para apareceres no real. Agora terás uma casa, darás passeios no jardim, lerás livros, olharás para as estrelas, e pensarás, serenamente, na tua modéstia: Estive ali. Estive ali e voltei. E até as leis da física trabalharam a teu favor, felizardo, tens meia vida à tua frente… e lembras-te como o Roemer parecia cem anos mais velho do que tu?» O ulder iniciou a descida, o assobio começou e o solo, cruzado por estradas brancas e azuis cujas superfícies brilhavam como esmalte tomou-se maior. O sol reflectia-se em grandes lagoas e pequenas piscinas quadradas. As casas espalhadas pelas encostas de montes pouco íngremes tomaram-se progressivamente mais reais. No horizonte azul erguia-se uma cadeia de montanhas com picos brancos. Vi caminhos de saibro, relvados, canteiros de flores, o verde fresco da água em piscinas orladas de cimento, alamedas, arbustos, um telhado branco… Tudo isso girou lentamente, me rodeou e se tomou imóvel, como se tivesse tomado posse da minha pessoa. IV A porta abriu-se. Um robot branco e cor de laranja esperava no relvado. Saí. — Bem-vindo a Clavestra — disse-me. e a sua barriga branca começou inesperadamente a cantar: notas tilintantes. como se tivesse uma caixa de música dentro dele. Ainda a rir, ajudei-o a descarregar as minhas coisas. Depois a escotilha da retaguarda do ulder, que estava pousado na erva como um pequeno zepelim prateado, abriu-se e dois robots cor de laranja empurraram o meu carro para o exterior. O pesado corpo azul refulgiu ao sol. Esquecera-me por completo dele. Em seguida, todos os robots, carregando as minhas malas e caixas e os meus embrulhos, seguiram em fila indiana na direcção da casa. A casa era um grande cubo com paredes de vidro. Entrava-se por um solário panorâmico a que se seguiam um átrio, uma sala de jantar e uma escada de madeira, que subia. O robot da caixa de música não deixou de me apontar essa raridade. No andar de cima havia cinco quartos. Não escolhi um com melhor situação — virado para oriente — porque nesses, em especial o que tinha vista para as montanhas, havia demasiado ouro e prata, ao passo que o meu tinha apenas laivos de verde, como folhas esmagadas num fundo creme. Eficiente e rapidamente, os robots arrumaram todos os meus pertences em armários, enquanto eu estava à janela. Um porto, pensei, um porto de abrigo. Inclinando-me para a frente, conseguia ver a névoa azulada das montanhas. Em baixo havia um jardim com uma dúzia, mais ou menos, de velhas árvores de fruto ao fundo. As árvores tinham os ramos torcidos e cansados e provavelmente já não davam nada. Ao lado, na direcção da estrada (vira-a antes, do ulder, obscurecida por sebes), a torre de uma prancha de mergulhos erguia-se acima dos arbustos. A piscina. Quando me voltei, os robots já tinham saído. Transferi a secretária, leve como se fosse inflada, para a janela. Pus-lhe em cima as minhas rimas de jornais científicos, os sacos de livros de cristal e a máquina de leitura. Arrumei separadamente os livros de apontamentos ainda não utilizados e a caneta. Era a minha velha caneta — devido ao aumento da gravidade, começara a verter e borrara tudo, mas Olaf arranjara-a. Pus capas nos livros de apontamentos e rotulei-os: «História», «Matemática» e «Física», mas tudo à pressa porque estava ansioso para me meter dentro de água. Não sabia se podia sair de casa de calções de banho; esquecera-me de arranjar um roupão. Por isso, fui para a casa de banho, no corredor, e, manobrando uma garrafa de espuma, confeccioneiuma horrível monstruosidade que não se parecia com coisa nenhuma. Rasguei-a e recomecei. O segundo roupão saiu um bocadinho melhor, mas mesmo assim metia medo. Cortei com uma faca as irregularidades maiores das mangas e da bainha e ficou mais ou menos apresentável. Desci, ainda sem saber se estava alguém em casa. O átrio estava deserto. O jardim também. Via-se apenas um robot cor-de-laranja a aparar a relva junto das roseiras, que já não estavam em flor. Corri praticamente para a piscina. A água brilhava e cobria-a uma frescura invisível. Atirei o roupão para a areia dourada que me queimava os pés, subi os degraus metálicos e corri para o alto da prancha de mergulhos. Era baixa, mas servia para começar. Saltei, dei uma cambalhota simples — não me atrevia a mais ao fim de tanto tempo! — e entrei na água como uma faca. Nadei, feliz. Comecei por dar largas braçadas numa direcção, virar e nadar na outra direcção. A piscina tinha cerca de 50 metros de comprimento. Fiz oito voltas sem abrandar, saí da água a pingar como uma foca e deitei-me na areia, com o coração a bater com força. Era bom. A Terra tinha as suas atracções! Sequei em poucos minutos. Levantei-me e olhei em redor. Ninguém. Esplêndido. Corri para a prancha de mergulhos. Primeiro dei um salto de costas com cambalhota. Resultou, embora eu tivesse saltado com muita força: em vez de uma prancha havia uma secção de plástico, que funcionava como mola. Depois dei uma cambalhota dupla que não resultou tão bem e me fez bater na água com as coxas, A pele ficou um momento vermelha, como se me tivesse queimado. Repeti. Um bocadinho melhor, mas não completamente bem. Na segunda volta não me endireitei a tempo e fiz um parafuso com os pés. Mas eu era teimoso e tinha tempo, muito tempo! Um terceiro mergulho, um quarto, um quinto. Começara a sentir um zumbido nos ouvidos quando — após mais um olhar em redor, pelo sim, pelo não — tentei uma cambalhota com torção. Foi um fiasco completo. O impacte tirou-me o fôlego, engoli água e, a tossir, arrastei-me para a areia. Sentei-me debaixo da escada azul-celeste da prancha de mergulhos, mortificado e furioso, mas de súbito desatei a rir. Depois nadei mais 400 metros, descansei e nadei outros 400. Quando voltei para casa o mundo parecia-me diferente. Fora aquilo de que mais sentira a faha, pensei. Um robot branco csperava-me à porta. — Come no seu quarto ou na sala de jantar? — Comerei sozinho? — Sim, senhor. Os outros chegam amanhã. — Então na sala de jantar. Fui ao quarto mudar de roupa. Ainda não sabia por onde começar os meus estudos. Provavelmente pela História. Seria o mais razoável, embora eu desejasse fazer tudo ao mesmo tempo e, principalmente, lançar-me ao ataque do mistério da conquista da gravidade. Ouvi um som musical. Como não era o telefone e eu não sabia do que se tratava, servi-me do infor da casa. — O almoço está servido — explicou uma voz melodiosa. A sala de jantar estava banhada por uma luz que se filtrava através de verdura. Os painéis curvos do tecto brilhavam como cristal. Na mesa estava só um prato. Um robot trouxe a ementa. — Não, não — disse-lhe. — Qualquer coisa serve. O primeiro prato pareceu-me uma sopa fria de frutos. O segundo não me pareceu nada. Teria de dizer adeus a carne, batatas e vegetais, segundo parecia. Ainda bem que estava a comer sozinho, porque a minha sobremesa explodiu. Um ligeiro exagero, talvez. De qualquer modo, fiquei com creme nos joelhos e na camisola. Tratara-se de uma estrutura complicada, dura apenas à superfície, e eu cravara-lhe descuidadamente a colher. Quando apareceu um robot, perguntei-lhe se podia tomar o café no quarto. — Naturalmente — respondeu-me. — Agora? — Por favor. Mas muito café. Fiz tal pedido porque me sentia um pouco ensonado, sem dúvida em consequência de ter nadado, e de súbito lamentei o tempo que perdera. Como era tão diferente, ali, do que fora a bordo da astronave! O sol da tarde batia nas velhas árvores, as sombras eram curtas e reuniam-se nos troncos e o ar tremia ao longe. Mas o quarto estava fresco. Sentei-me à secretária e peguei nos livros. O robot levou-me o café. O termos transparente continha gelojnenos três litros. Não disse nada. Era evidente que ele tiweraJemJinha de contadas minhas dimensões. Tencionara começar pela história, mas comecei pela sociologia, pois queria aprender imediatamente o mais possível. Não tardei a compreender, porém, que a tarefa era superior às minhas forças. Estava carregada de uma matemática difícil, porque especializada, e, pior ainda, os autores referiam- — se a factos que me eram desconhecidos. Além disso, não compreendia muitas palavras e tinha de procurá-las na enciclopédia. Por isso, utilizei um segundo opton — tinha três—, mas acabei por desistir, pois demorava muito tempo. Engoli o orgulho e abri um vulgar manual escolar de História. Não sei que me dera, que não tinha a mínima paciência — eu,a quem Olaf chamara a «última encarnação do Buda». Em vez de levar as coisas por ordem, procurei logo o capítulo da betrização. A teoria tinha sido desenvolvida por três pessoas: Bennett, Trimaldi e Zakharov. Daí o seu nome. Surpreendeu-me verificar que eram da minha geração e tinham anunciado a sua descoberta um ano depois da nossa partida. A resistência fora, claro, tremenda. Ao prindpio, ninguém quisera tomar sequer o processo a sério. Depois chegou ao fórum das Nações Unidas. Durante algum tempo andou de subcomissão para subcomissão e deu a ideia de que o projecto acabaria por ficar sepultado sob intermináveis deliberações. Entretanto, a pesquisa ia fazendo progressos rápidos, foram introduzidos aperfeiçoamentos e fizeram-se experiências em grande escala em animais e depois em seres humanos (os primeiros a submeterem-se a elas foram os próprios inventores. Trimaldi ficou paralisado durante algum tempo, pois o perigo da aplicação da betrização aos adultos ainda não tinha sido descoberto, e isso imobilizou o projecto durante os oito anos seguintes). Mas no 17.° ano depois de zero (pelas minhas contas pessoais o zero era a partida do Prometheus) foi aprovada uma resolução para a aplicação universal da betrização, o que constituiu apenas o princípio da luta pela humanização da espécie humana (como dizia o manual). Em muitos países, pais recusaram-se a deixar tratar os filhos e os primeiros centros de betrização foram atacados, tendo ficado 50 ou 60 completamente destruídos. Um período de agitação, de repressão, de coerção e resistência durou uns 20 anos. O manual passou por cima disso com algumas generalidades, por razões perfeitamente óbvias. Resolvi consultar algumas fontes, para informação mais detalhada, mas entretanto continuei com a leitura. A nova ordem só ficou firmemente estabelecida quando a primeira geração betrizada teve filhos. O livro não dizia nada acerca do aspecto biológico do processo. Por outro lado, não faltavam elogios a Bennett, Zakharov e Trimaldi. Foi apresentada uma proposta para se contarem os anos da Nova Era a partir da introdução da betrização, mas não foi aceite. O cálculo das datas não mudou. Mas as pessoas mudaram. O capítulo terminava com um vibrante encómio à Nova Época de Humanismo. Consultei a monografia sobre betrização de Ulirich. Também estava inçada de matemática, mas eu estava determinado a não desistir. O processo não era transportado no plasma hereditário, como eu receara secretamente. Se fosse, claro, não seria necessário betrizar cada nova geração. Isso e-ra encorajador: pelo menos em teoria, persistia a possibilidade de regresso. íA betrização actuava sobre o desenvolvimento do prosencéfalo num período precoce da vida, por meio de um grupo de enzimas proteolíticas. Os efeitos eramselectivos: a redução de 80 % a 88 % dos impulsos agressivos, em comparação com os não-betrizados; a eliminação da formação de ligações associativas entre actos de agressão e a esfera dos sentimentos positivos; uma redução geral de 87 % da possibilidade de aceitar risco de vida pessoal. A maior realização citada consistia no facto de estas mudanças não influenciarem negativamente o desenvolvimento da inteligência ou a formação da personalidade e, o que era ainda mais importante, de as limitações não actuarem sobre o princípio do condicionamento pelo medo. Por outras palavras, um homem coibia-se de matar não por ter medo do acto em si. Tal resultado teria psiconeurosado e contagiado de medo toda a espécie humana. Em vez disso, um homem não matava porque «não lhe podia entrar na cabeça» fazer isso. Houve uma frase de Ullrich que me impressionou particularmente: «A betrização causa o desaparecimento da agressão através da completa ausência de comando e não por inibição.» Ao reflectir nisto, cheguei no entanto à conclusão de que não explicava a coisa mais importante: o processo de pensamento de um homem sujeito à betrização. No fim de contas, eram pessoas completamente normais, capazes de imaginar absolutamente tudo e, portanto, o assassínio também. Que tomava então a sua prática impossível? Procurei a resposta a essa pergunta até escurecer. Como acontece geralmente com os problemas científicos, o que parecia claro e simples numa exposição teórica ou sumarizada tomava-se tanto mais complicado quanto mais precisa era a explicação desejada. O sinal musical anunciou o jantar e eu pedi que mo servissem no quarto, mas nem lhe toquei. As explicações que finalmente encontrei não concordavam inteiramente umas com as outras. Uma repulsa semelhante ao nojo; uma aversão suprema, ampliada de uma maneira incompreensível, pelos não betrizados. O mais interessante eram os testemunhos de pessoas que, 80 anos antes, como sujeitos de uma experiência no Instituto Tribaldi, perto de Roma, tinham tentado ultrapassar a barreira invisível levantada na sua mente. Foi a coisa mais impressionante que li. Nenhum deles o conseguira, mas cada um fazia um relato diferente das sensações que tinham acompanhado a sua tentativa. Nalguns predominavam os sintomas psicológicos: um desejo de fugir, de evitar a situação em que tinham sido colocados. Neste grupo, os testes continuados causavam violentas dores de cabeça e, se persistiam, acabavam por conduzir a neuroses que, no entanto, se podiam curar rapidamente. Noutros, prevaleciam os sintomas físicos: falta de ar, uma sensação de sufocação. O seu estado assemelhava-se às manifestações de medo, mas estas pessoas não se queixavam de medo e sim, apenas, do seu desconforto físico. A obra de Pilgrin demonstrava que 18 % dos betrizados eram capazes \ de praticar um assassino simulado, por exemplo num boneco, mas a convicção de que estavam a lidar com um boneco animado tinha de assumir a forma da certeza absoluta. A proibição estendia-se a todos os animais superiores, mas os anfíbios e C!S répteis não contavam como tais, e os insectos tão-pouco. Claro que os betrizados não tinham qualquer conhecimento científico da taxinomia zoológica. A proibição aplicava-se simplesmente de acordo com o grau de similaridade com o homem como era geralmente aceite. Como toda a gente, instruída ou não, considera um cão mais próximo do homem do que uma serpente, o problema ficava assim resolvido. À medida que fui lendo muitos outros ensaios, tive de concordar com aqueles que diziam que um indivíduo betrizado só podia ser compreendido introspectivamente por alguém que também o fosse. Pus de parte este género de leitura com sentimentos diversos. O que mais me perturbava era a falta de qualquer obra crítica elaborada no espírito de oposição, até de sátira, a falta de qualquer análise expondo os aspectos negativos do processo. Não duvidava nem por um minuto de que existiam, nem porque pusesse em causa os cientistas, mas simplesmente por ser essa a natureza de todo o empreendimento humano: nunca há bem sem mal. O breve esboço sociográfico de Murwick proporcionou-me um número de factos interessantes acerca da resistência à betrização nos seus primeiros tempos. Essa resistência parece ter sido mais forte em países com uma longa tradição de conflito e derramamento de sangue, tais como a Espanha e certos estados latino-americanos. Mas formaram-se por todo o Mundo organizações ilegais para combater a betrização: na África Meridional, no México, em diversas ilhas do Pacífico… Recorreu-se a toda a espécie de métodos, desde atestados médicos forjados certificando que as operações tinham sido efectuadas, até ao assassínio dos médicos que as efectuavam. Ao período de violência em larga escala seguiu-se uma calma aparente. Aparente porque foi então que o conflito das gerações começou. Os betrizados jovens, a crescer, rejeitaram uma parte considerável das realizações da humanidade, assim como dos seus costumes, tradições e arte. Toda a herança cultural sofreu uma reavaliação radical. A mudança incluiu um grande número de áreas: sexualidade, costumes sociais, atitude perante a guerra… Claro que esta grande divisão das pessoas tinha sido prevista. A lei só foi cumprida cinco anos depois da sua aprovação, pois foi necessário reunir um número enorme de quadros — educadores, psicólogos, vários especialistas — para gizarem o devido curso de desenvolvimento da nova geração. Foi necessária uma reforma geral nos programas escolares, no conteúdo das peças de teatro, no material de leitura e nos filmes. Para dar em poucas palavras uma ideia da transformação necessária, basta dizer que nos primeiros 10 anos a betrização consumiu cerca de 40 % dos rendimentos nacionais do Mundo, em todas as suas ramificações e exigências. Foi uma época de grandes tragédias. Os jovens, betrizados, tomaram-se estranhos para com os próprios pais, cujos interesses não compartilhavam. Detestavam os gostos sanguinários dOs progenitores. Durante um quarto de século foi necessário ter dois tipos de jornais, livros e peças: um para a antiga geração e outro para a nova. Mas tudo isto tivera lugar 80 anos atráfi! As crianças agora nascidas pertenciam à terceira geração betrizada e sobrevivia apenas um punhado de não betrizados, pessoas com 130 anos. A substância da sua juventude parecia à nova geração tão remota como o Paleolítico. No manual de História encontrei finalmente informação acerca do segundo grande acontecimento do último século: a subjugação da gravitação. o século chamava-se, até, «século da parastática». A minha geração sonhara com a conquista da gravidade na esperança de que isso proporcionasse uma revolução nas viagens espaciais. Afinal, as coisas passaram-se de modo diferente. Houve revolução, de facto, mas os seus efeitos principais incidiram sobre a Terra. O problema da «morte em tempo de paz» causado pelos acidentes de viação tomara-se a ameaça do meu tempo. Lembro-me de que alguns dos melhores cérebros lutaram para aliviar o congestionamento eterno das estradas e auto-estradas, a fim de reduzirem, por pouco que fosse, as estatísticas sempre crescentes. Todos os anos os desastres reclamavam centenas de milhares de vidas e o problema parecia tão insolúvel como a quadratura do círculo. Não havia nenhum meio de regressar, dizia-se, à segurança de viajar a pé. O melhor aeroplano, o mais potente automóvel ou comboio, podiam escapar ao controlo humano. Os autómatos eram de maior confiança do que as pessoas, mas também se avariavam. Toda a tecnologia, até a mais avançada, tinha uma certa margem, uma percentagem de erro. A parastática, a engenharia da gravitação, forneceu uma solução tão necessária quanto inesperada: necessária, porque um mundo betrizado tinha de ser um mundo de completa segurança; caso contrário, as virtudes desse processo clínico seriam inúteis. Roemer tivera razão. A essência da descoberta só se podia exprimir através da matemática — e, devo acrescentar, de uma matemática infernal. A solução geral, própria «para todos os universos possíveis», foi encontrada por Emil Mitke, filho de um empregado dos Correios, um génio aleijado que fez com a teoria da relatividade o que Einstein fizera com Newton. Era uma história comprida e invulgar, como todas as histórias verdadeiras, uma história improvável, uma mistura de assuntos banais e importantes, do que há de ridículo e de colossal no homem, e que culminara finalmente, decorridos 40 anos, nas «caixinhas pretas». Cada veículo, cada nave da água ou do ar, tinha de ter a sua caixinha preta. Era uma garantia de «salvação agora», como Mitke dissera jocosamente já para o fim da sua vida. No momento de perigo — a queda de um avião ou uma colisão de automóveis ou comboios —, a caixinha preta libertava uma carga «anticampo gravitacional» que se combinava com a inércia produzida pelo impacto (de modo mais geral, pela travagem súbita, pela perda de velocidade) e dava uma resultante de zero. Este zero matemático era uma realidade concreta, absorvia todo o choque e toda a energia do acidente e desse modo salvava não só os passageiros do veículo, mas também aqueles a quem a massa do veículo teria de outro modo esmagado. As caixas pretas encontravam-se em toda a parte: em elevadores, em guindastes, nos cintos dos pára-quedistas, em navios oceânicos e em veículos motorizados. A simplicidade da sua construção era tão espantosa como a complexidade da teoria que as criara. O nascer do dia avermelhava as paredes do meu quarto quando caí, exausto, na cama. Acordou-me um robot que entrou no quarto com o pequeno-almoço. Era quase uma hora. Ao sentar-me na cama, certifiquei-me de que estava perto o livro que pusera de parte na noite anterior: Sobre o Voo Interstelar, de Starck. — Tem de comer, Sr. Bregg — disse o robot, reprovadoramente. — Caso contrário, enfraquece. E ler até de madrugada também não é aconselhável. Os médicos são muito contrários a isso. — Devem ser, com certeza, mas como é que sabe? — perguntei. — É meu dever, Sr. Bregg. Estendeu-me um tabuleiro e eu prometi: — Tentarei corrigir-me. — Espero que não interprete mal a minha solicitude e me julgue importuno. — Ah, de modo nenhum! — tranquilizei-o. Enquanto mexia o café e sentia os torrões de açúcar desfazer-se sob a colher, senti-me estupefacto, de uma maneira simultaneamente serena e profunda, não só pelo facto de estar realmente na Terra, de ter regressado, não só pela leitura que fizera toda a noite e que ainda me agitava e fermentava na minha cabeça, mas também, simplesmente, por estar sentado numa cama, com o coração a bater — por estar vivo. Desejei fazer qualquer coisa em honra dessa descoberta, mas, como de costume, não me acudiu ao espírito nada particularmente adequado. — Escute — disse ao robot —, tenho um favor a pedir-lhe. — Estou às suas ordens. — Dispõe de um momento? Então toque-me aquela melodia, a de ontem, sim? — Com prazer. Bebi o meu café em três golos, ao som alegre da caixa de música. Assim que o robot saiu, mudei de roupa e corri para a piscina. Não sei explicar por que estava naquela pressa constante. Qualquer coisa me impelia, como se pressentisse que de um momento para o outro aquela paz chegaria ao fim, por imerecida e incrível. De qualquer modo, o meu afã fez-me atravessar o jardim a correr, sem olhar à minha volta, e em poucos saltos encontrei-me no cima da prancha de mergulhos. Já iniciara o salto quando reparei em duas pessoas que vinham de trás da casa. Por razões óbvias, não pude estudá-las bem. Dei uma cambalhota e mergulhei para o fundo. Abri os olhos. A água era como cristal reluzente, verde, com as sombras das ondas a dançar no fundo iluminado pelo Sol. Nadei baixo, na direcção dos degraus, e quando emergi não estava ninguém no jardim. Mas os meus olhos apurados tinham-me fixado uma imagem no cérebro, uma imagem de que me apercebera de cabeça para baixo e numa fracção de segundo: um homem e uma mulher. Aparentemente, já tinha vizinhos. Debati-me comigo mesmo, para saber se deveria nadar mais um comprimento, mas Starck ganhou. A introdução ao livro — onde ele falava de voos às estrelas cemo de um erro dos primeiros tempos da astronáutica — irritara-me tanto que a minha vontade era fechá-lo e não voltar a abri-lo. Mas forcei-me a isso. Fui p: ira o quarto e mudei de roupa. Ao descer, vi na mesa do átrio uma taça cheia de frutos rosa-pálido, um pouco parecidos com pêras. Enchi as algibeiras do meu fato-macaco. procurei um lugar isolado, cercado em três lados por sebes, subi a uma velha macieira, escolhi uma forquilha dos ramos capaz de suportar o meu peso e instalei-me para estudar o obituário do trabalho da minha vida. Passada uma hora, não me sentia muito seguro de mim. Starck empregava argumentos difíceis de refutar. Baseava-se nos poucos dados trazidos pelas duas expedições que tinham precedido a nossa e a que chamáramos «picadas de alfinete», pois não passavam de sondas numa distância de apenas vários anos-luz. Starck traçou quadros estatísticos da probabilidade de distribuição ou «densidade de habitação» de toda a galáxia. Concluiu que a probabilidade de encontrar seres inteligentes era de uma em vinte. Por outras palavras, por cada 20 expedições — num raio de mil anos-luz —, urria tinha uma probabilidade de descobrir um planeta habitado. No entanto. por estranho que possa parecer, esta conclusão era considerada por Starck muito encorajadora; destruiu a ideia de estabelecer contactos cósmicos numa parte final da sua exposição. Irritei-me ao ler o que um autor, para mim desconhecido, escrevera acerca de expedições como a nossa — isto é, iniciada antes da descoberta do efeito de Mitke e do fenómeno da parastática —, porque ele as considerava absurdas. Mas aprendi com ele, o preto no branco, que, pelo menos em princípio, era possível construir uma nave capaz de atingir a aceleração da ordem dos 1000 ou talvez mesmo dos 2000 g" s. A tripulação de uma tal nave não sentiria nenhuma aceleração ou travagem; a bordo, a gravitação seria constante, igual a uma fracção da da Terra. Assim. Starck admitia que voos aos confins da galáxia e até a outras galáxias — a transgalastodromia com que Olaf sonhara— eram possíveis, e possíveis na duração de uma só vida. A uma velocidade ligeiramente inferior á velocidade da luz, uma tripulação envelheceria vários meses, ou umas duas dúzias de meses, no lempo que levava para chegar às profundezas da metagaláxia e voltar á Terra. Mas nesse tempo teriam decorrido na Terra não centenas, mas sim milhões de anos. A civilização encontrada pelos que regressassem não poderia assimilá-los. Seria niais fácil a um homem de Neanderthal adaptar-se à vida do nosso tempo. E isso não era tudo. O destino de um grupo de pessoas não era o problema. Eles eram os enviados da humanidade. A humanidade levantava por intermédio deles uma pergunta a que deveriam trazer uma resposta. Se a resposta se relacionava com problemas ligados ao nível de desenvolvimento da civilização, então a humanidade obtê-la-ia com certeza antes do seu regresso. Isso porque do levantar da questão à chegada da resposta teriam passado milhões de anos. Além disso, a resposta estaria desactualizada, caduca, pois eles trariam notícias do estado da outra civilização referentes ao momento em que tinham chegado a essa margem distante do mar estelar. Mas durante a sua viagem de regresso esse outro mundo não teria permanecido imóvel, deveria ter avançado um, dois ou três milhões de anos. As perguntas e respostas desencontrar-se-iam, perder-se-iam umas das outras, sofreriam centenas de séculos de atraso que as anulariam e tomariam impossível qualquer troca de experiências, valores e ideias. Inútil. Os astronautas seriam assim os portadores de informação morta e o seu trabalho seria um acto de absoluta e irreversível separação da história humana. As expedições espaciais eram uma deserção sem precedentes e dispendiosa — o mais dispendiosa possível — do reino da mudança histórica. E por tal fantasia, por essa loucura nunca proveitosa e sempre inútil, deveria a Terra trabalhar com o máximo esforço e ceder as suas melhores pessoas? O livro terminava com um capítulo sobre as possibilidades de exploração com o auxílio de robots. Os robots também transmitiriam informação caduca, mas pelo menos evitar-se-iam sacrifícios humanos. Seguia-se um apêndice de três páginas, uma tentativa de responder à questão da possível existência de viagem mais rápida do que a luz e até da chamada «conjunção cósmica instantânea», ou seja, a travessia de espaço com pouca ou nenhuma passagem de tempo, graças a uma propriedade ainda por descobrir de matéria e de espaço, por meio de uma espécie de «hiper-salto». Esta teoria, ou melhor, esta especulação não baseada em quaisquer factos dignos de nota, tinha um nome: teletaxe. Starck estava convencido de que possuía um argumento para destruir esta última esperança. Se tal coisa existisse, afirmava, teria indubitavelmente sido descoberta por uma das civilizações mais altamente desenvolvidas da nossa ou de outra galáxia. Nesse caso, os representantes dessa civilização teriam podido, num espaço de tempo incrivelmente breve, visitar sucessivamente cada sistema planetário e cada sol, incluindo os nossos. Mas a Terra não tivera tal visita, por enquanto, o que provava poder esse método, rápido como a luz, de penetrar o cosmo, ser imaginado, mas nunca tornado realidade. Voltei para casa atordoado, com o sentimento quase infantil de que tinha sido pessoalmente ofendido. Starck, um homem que nunca conhecera, desferira-me um golpe sem comparação com nenhum outro que recebera. O meu tosco resumo não dá uma ideia da lógica implacável do raciocínio dele. Não sei como cheguei ao meu quarto nem como mudei de roupa — a certa altura, apeteceu-me um cigarro e descobri que já estava a fumar, sentado de ombros curvados na cama, como se esperasse qualquer coisa. E era verdade, esperava: o almoço. Almoço para três. O facto é que tinha medo das pessoas. Não o admitira nem para comigo, mas tinha sido por isso que concordara tão depressa em compartilhar a vila com desconhecidos. Talvez a previsão da sua chegada fosse até a razão da minha invulgar pressa, como se tivesse estado á trabalhar para estar pronto para a sua presença, para me iniciar, através dos livros, nos mistérios da nova vida. Não teria considerado tal possibilidade na manhã desse dia, mas depois do livro de Starck o nervosismo abandonou-me subitamente. Retirei da máquina de leitura o cristal azulado e coloquei-o respeitosamente em cima da mesa. Fora aquilo que me pusera fora de mim. Pela primeira vez desde que regressara, pensei em Thurber e Gimma. Tinha de os ver. O livro talvez tivesse razão, mas nós representávamos uma verdade diferente. Ninguém possuía a verdade total. Não era possível. O sinal musical despertou-me do meu transe. Endireitei a camisola e desci, senhor de mim e já mais calmo. O sol entrava pelas trepadeiras da varanda; o vestíbulo, como sempre acontecia à tarde, estava cheio de uma difusa claridade esverdeada. A mesa da sala de jantar estava posta para três. Quando entrei, a porta do lado oposto abriu-se e eles apareceram. Eram altos, pelos padrões actuais. Encontrámo-nos no meio da sala, como diplomatas. Disse o meu nome, trocámos um aperto de mão e sentámo-nos à mesa. Invadia-me uma espécie de entorpecimento, como um pugilista que se levantara do chão depois de um KO técnico. Da minha depressão, como de um camarote de teatro, olhava para o jovem casal. A rapariga provavelmente ainda não teria 20 anos. Mais tarde, chegaria à conclusão de que ela não se prestava a descrições; com certeza não se pareceria com uma fotografia dela própria — e no segundo dia eu ainda não fazia ideia de que tipo era o seu nariz: recto ou arrebitado? A maneira como ela estendia a mão para um prato deliciava-me incrivelmente, uma surpresa que não acontecia todos os dias. Sorria raramente e com compostura, como se desconfiasse ligeiramente de si própria, se considerasse que era insuficientemente segura de si, demasiado alegre por natureza ou talvez demasiado voluntariosa, e tentasse judiciosamente remediá-lo. Mas o seu rigor para consigo própria estava constantemente a ser minado, ela sabia-o e até se divertia com isso. Atraía o meu olhar, facto contra o qual eu tinha de lutar. Dava comigo a todo o momento a fitá-la, a olhar para o seu cabelo que desafiava o vento. Inclinava a cabeça para o meu prato e olhava furtivamente, ao estender a mão para outro, de tal modo que por duas vezes quase derrubei uma jarra de flores. Por outras palavras, fiz uma perfeita figura de parvo. Mas dir-se-ia que eles nem sequer me viam. Os seus olhos eram só um para o outro e uniam-nos fios invisíveis de compreensão. Tenho a certeza de que durante todo o tempo não trocámos mais de 20 palavras: acerca do bom tempo que fazia e de como o lugar era bom, perfeito para umas férias. Marger era apenas uma cabeça mais baixo do que eu, mas esbelto como um rapaz, embora devesse ter 30 anos. Vestia de escuro, era louro e tinha rosto comprido e testa alta. Ao princípio pareceu-me excepcionalmente bem parecido, mas isso só acontecia quando mantinha o rosto imóvel. Ouase não dizia uma palavra à mulher, e quando dizia, geralmente com um sorriso, a conversa consistia em alusões e insinuações absolutamente misteriosas para um estranho, e então tomava-se quase feio. Não, não era exactamente feio. Era como se as suas proporções faciais se deteriorassem: a boca torcia-se-Ihe um pouco para a esquerda e perdia a sua expressão, e até o seu sorriso se tomava neutro, embora ele tivesse bonitos dentes brancos. E quando estava animado os olhos tomavam-se demasiado azuis e o queixo demasiado pronunciado, e transformava-se por completo num modelo impessoal de encanto masculino tirado de uma revista de modas. Por outras palavras, senti aversão por ele desde o princípio. A rapariga — não conseguia pensar nela como sua mulher, por mais que tentasse — não tinha olhos nem lábios bonitos nem cabelo fora do vulgar. Não tinha nada fora do vulgar. Era, no seu conjunto, invulgar. Com urea rapariga como ela, de tenda às costas, seria capaz de atravessar duas vezes as Montanhas Rochosas, pensei. Porquê montanhas, exactamente? Não sabia. Ela trazia à memória noites passadas em pinhais, o trabalho de escalar um penhasco, a beira-mar onde só há areia e ondas. Seria por não usar bâton? Sentia-a sorrir, sentia-o através da mesa, mesmo quando ela não sorria. De siibito, num ímpeto de ousadia, decidi olhar-lhe para o pescoço, como se cometesse um roubo. Foi quase no fim da refeição. Marger virou-se inesperadamente para mim e eu creio que corei. Ele estivera a falar durante algum tempo antes de eu apreender o sentido do que dizia: que a casa só tinha um gleeder e que ele infelizmente precisava de o utilizar, porque ia à cidade. Por isso, se eu também precisasse de ir e não quisesse esperar pelo entardecer, talvez me não importasse de o acompanhar;.. Podia, claro, mandar-me outro gleeder da cidade ou… Interrompi-o. Comecei a dizer que não tinha intenção de ir a lado nenhum, mas contive-me, como se me lembrasse de qualquer coisa, e depois ouvi a minha própria voz dizer que, na realidade, tencionava ir à cidade, e se não se importasse… — Óptimo, então — disse ele e levantámo-nos da mesa. — A que horas seria mais conveniente para si? Fizemos cerimónia, durante um bocado, mas finalmente levei-o a admitir que tinha certa pressa e disse-lhe que podia ir em qualquer altura. Ficou combinado que partiríamos dali a meia-hora. Voltei para o quarto, confuso com aquela volta dos acontecimentos. Ele não significava nada para mim. E não havia absolutamente nada que me chamasse à cidade. Qual era então a razão daquela escapada? Além diso, parecia-me que a sua polidez para comigo era um bocado exagerada. De resto, se eu tivesse realmente pressa de ir à cidade os robots certamente se teriam encarregado do necessário. Não teria precisado de ir a pé. Quereria ele alguma coisa de mim? Mas o quê? Não me conhecia de lado nenhum… Estava a meditar no assunto, sem motivo que o justificasse, quando chegou a hora combinada e desci. A mulher dele não se via e nem sequer apareceu à janela para se despedir uma vez mais dele. Ao princípio mantivemo-nos silenciosos no interior do espaçoso veículo, a ver surgir as curvas à medida que a estrada serpenteava entre os montes. Pouco a pouco, começámos a conversar e eu fiquei a saber que Marger era engenheiro. — Hoje tenho de inspeccionar a estação-selex da cidade — informou-me. — Segundo me consta, você também é um cibemeticista? — Da Idade da Pedra — respondi. — Desculpe… Mas como soube isso? — Diseram-me na agência de viagens. Naturalmente, senti curiosidade acerca de quem seria o nosso vizinho. — Ah! Não dissemos nada durante momentos. A densidade crescente das excrecências de plástico colorido indicava que nos aproximávamos dos subúrbios. — Se não se importa… gostaria de lhe perguntar se vocês, a tripulação, tiveram alguns problemas com os seus autómatos — disse, de súbito. Compreendi, mais pelo tom da sua voz do que pela própria pergunta, que a minha resposta éra importante para ele. Seria isso que pretendia? Mas que queria ao certo? — Refere-se a mau funcionamento? Tivemos centenas de problemas. Natural, aliás, visto que os nossos modelos, em comparação com os vossos, eram tão primitivos… — Não, não me referia a mau funcionamento — apressou-se a corrigir. — Trata-se antes de flutuação de desempenho em condições tão variáveis… Hoje, infelizmente, não temos oportunidade de testar autómatos de modo tão minucioso. Tratava-se afinal de uma questão puramente técnica. Ele estava meramente interessado em certos parâmetros funcionais de cérebros electrónicos, como se comportavam no contexto de fortes campos magnéticos, em nebulosas, em funis de perturbação gravitacional, e pensava que essa informação fizesse parte dos registos da expedição, temporariamente afastados da publicação. Disse-lhe o que sabia e, para dados mais especializados, aconselhei-o a contactar com Thurber, que tinha sido assistente do director científico da viagem. — E poderia indicar o seu nome? — Claro que sim. Agradeceu-me calorosamente. Senti-me um bocadinho decepcionado. Tratava-se afinal só daquilo? Mas a conversa criara entre nós um laço profissional e eu interroguei-o, por minha vez, acerca do seu trabalho. Que era a tal estação-selex que tinha de inspeccionar? — Ah, nada de muito interessante! Um monte de sucata… Do que eu gostaria realmente era de me dedicar ao trabalho teórico. Este trata-se de experiência prática e, mesmo assim, não muito útil. — Experiência prática? Trabalho num monte de sucata? Como é possível? No fim de contas, é um cibemeticista… — É sucata cibernética — explicou, com um sorriso ácido, e acrescentou, com certo desdém: — Somos muito poupados, compreende? Existe a ideia de que não se deve desperdiçar nada. No meu instituto poderia mostrar-lhe uma ou duas coisas interessantes, mas aqui… Encolheu os ombros. O gleeder saiu da estrada principal, passou através de um alto portão de metal e entrou no grande pátio de uma fábrica. Vi séries de correias de transporte, guindastes rolantes e qualquer coisa como um forno modernizado. — Agora pode dispor deste veículo — disse Marger. De uma abertura na parede perto da qual parámos, um robot inclinou-se e disse-lhe qualquer coisa. Marger apeou-se e vi-o gesticular. Depois virou-se para mim, aborrecido. — Maravilhoso! — exclamou. — Gloor está doente, Gloor é o meu colega… não estou autorizado a trabalhar sozinho. Que hei-de fazer? — Qual é o problema? — perguntei, e apeei-me também. — A inspecção tem de ser feita por duas pessoas… pelo menos por duas — explicou e, de súbito, o seu rosto iluminou-se. — Sr. Bregg! O senhor também é cibemiticista! Se concordasse… — Ah, um cibemeticista! — exclamei, a sorrir. — Acrescente: antigo. Não sei nada. — Mas trata-se apenas de uma formalidade! — interrompeu-me. — Eu encarregar-me-ei do lado técnico, claro. Só precisamos de uma assinatura, mais nada! — Sério? — perguntei, devagar. Compreendia a sua pressa em voltar para junto da mulher, mas não gostava de fingir ser o que não era. Não sirvo para cabeça-de-turco. Disse-Iho, embora, talvez, em termos mais brandos. Ele levantou os braços, como se quisesse defender-se. — Por favor, não me interprete mal! Mas deve estar com pressa, não deve? Tinha um assunto a tratar na cidade. Nesse caso, eu… enfim, hei-de encontrar uma maneira qualquer… Desculpe-me… — O meu assunto pode esperar — respondi-lhe. — Prossiga, por favor. Se puder, ajudo-o. Entrámos num edifício branco que se encontrava a um lado. Marger conduziu-me por um corredor estranhamente vazio. Em alcovas viam-se alguns robots imóveis. Num pequeno escritório, mobilado com simplicidade, tirou um maço de papéis de um armário da parede, espalhou-os em cima da mesa e começou a explicar a natureza do seu — ou melhor, do nosso — trabalho. Não era grande coisa a dar explicações e pouco tardou para que me restassem poucas dúvidas quanto às suas probabilidades de uma carreira científica: presumia constantemente que eu tinha conhecimento de coisas que me eram completamente desconhecidas. Tive de o interromper repetidamente para lhe fazer perguntas embaraçosamente elementares, mas ele, compreensivo e não querendo ofender-me, aceitou todas essas provas da minha ignorância como se fossem virtudes. No fim, fiquei a saber que nos últimos 50 anos existira uma separação total entre trabalho e vida. Toda — a produção era automatizada e se efectuava sob a supervisão de robots, que eram supervisados por outros robots, naquele âmbito já não havia lugar para pessoas. A sociedade levava a sua vida e os robots e os autómatos a deles. Com a excepção de que, para evitar aberrações imprevistas na ordem estabelecida deste exército mecânico de trabalho, eram necessárias inspecções periódicas, as quais eram efectuadas por especialistas. Marger era um deles. — Não pode haver dúvida nenhuma — explicou-me — de que encontraremos tudo normal. Depois daremos uma vista de olhos a elos particulares do processo, assinaremos e pronto. — Mas eu nem sequer sei o que se produz aqui! — apontei os edifícios através da janela. — Absolutamente nada! — exclamou — Aí é que bate o ponto. Nada. Isto é simplesmente um depósito de sucata, como lhe disse. Não me agradava aquele papel que me era inesperadamente imposto, mas não podia levantar objecções constantes. — Está bem. Que devo, ao certo, fazer? — O que eu fizer. Damos uma volta pelos complexos… Deixámos os papéis no escritório e saímos para efectuar a inspecção. Primeiro passámos por uma imensa sala de selecção, onde uma espécie de pás automáticas agarravam montes de metal em chapa e outro torcido e partido, o esmagavam e o atiravam para prensas. Os blocos por estas ejectados viajavam por correias de transmissão para o transportador principal. À entrada, Marger pôs uma pequena máscara com um filtro e estendeu-me outra. Não podíamos falar um com o outro por causa do barulho. O ar estava cheio de uma poeira cor de ferrugem que saía das prensas em nuvens vermelhas. Prosseguimos pela sala seguinte, também muito ruidosa, e metemos por um passadiço para um andar onde filas de prensas consumiam a sucata que, partida em fragmentos mais pequenos e irreconhecível, saía de uma espécie de grandes funis. Numa galeria superior, que levava a um edifício do lado oposto, Marger conferiu as leituras dos contadores de controlo. Depois dirigimo-nos para o pátio da fábrica, onde o nosso caminho foi bloqueado por um robot que disse que o engenheiro Gloor chamava Marger ao telefone. — Desculpe, volto já — disse-me Marger e correu por uma escada de caracol para um anexo de vidro que não ficava muito longe. Fiquei parado sozinho no chão quente, ao sol. Olhei em redor. Os edifícios do fundo já tinham sido vistos por nós. Era onde estavam as prensas. Mas devido à distância e ao facto de serem à prova de som não vinha de lá nem um murmúrio. Isolado atrás do anexo onde Marger se dirigira havia um edifício baixo e invulgarmente comprido, uma espécie de caserna de lata. Dirigi-me para lá, em busca de um pouco de sombra, mas o calor das paredes metálicas era insuportável. Preparava-me para me afastar quando ouvi um som peculiar vindo do interior, um som difícil de identificar e que não se parecia nada com o barulho de máquinas a trabalhar. Trinta passos mais adiante encontrei uma porta de aço, à frente da qual se encontrava um robot. Ao ver-me, abriu a porta e afastou-se para o lado. O som curioso tornou-se mais forte. Olhei para o interior. Não era tão escuro como ao princípio pensara. Devido ao calor tórrido emanado pelas chapas metálicas, quase não podia respirar e teria recuado imediatamente se não fossem as vozes. Eram vozes humanas — deformadas, fundindo-se num coro rouco, abafadas, tagarelas, como se na penumbra estivessem a falar diversos telefones defeituosos. Dei dois passos incertos, rangeu qualquer coisa debaixo dos meus pés e falou claramente, do chão: — FachaVor… xenhor… dê… Fiquei pregado ao chão. O ar asfixiante sabia a ferro. O murmúrio vinha de baixo. — FachaVor… dê uma vista… de olhos… Facha… Juntou-se-lhe uma segunda voz monótona, a recitar firmemente: — Ó anomalia excêntrica… Ó assimptota esférica… Ó pólo de infinida de… Ó protossistema linear… Ó sistema hoionómico… Ó espaço semimétrico… Ó espaço esférico… Ó espaço dieléctrico… — Facha Vor… xenhor… seu criado… FachaVor… Na escuridão fervilhavam murmúrios roucos, no meio dos quais se erguia, forte: — O bioplasma planetário, a sua lama em decomposição, é a alvorada da existência, a fase inicial, e olhai, do sanguinário, cabeça de massa, saiu cobre… — Brec… bric… brabzel…be… bre… veriscópio… — Ó classe imaginária… Ó classe poderosa… Ó classe vazia… Ó classe das classes… — FachaVor… dê uma vista… de olhos… xenhor… — Calu-uda… — Tu… — Caiu… — Ouça-me… — Eu ouço… — Pode tocar…? — Brec… bric…brabzel… — Sem braços… — Que… p-pena… devia… devia ver como sou reluzente e frio… — E-eles que de… volvam a minha armadura, a minha espada dourada… a minha herança… espoliada… — Olhai os últimos esforços do emproado e grasnador mestre de aquartelamento e encarceração, pois é verdade, ele ergueu-se, três vezes se ergueu o reino vindouro dos não viventes… — Estou novo… completamente novo… Nunca tive um defeito no esqueleto… Aqui estou apto… por favor… — Fachavor… Não sabia para que lado olhar, asfixiado pelo calor implacável e por aquelas vozes. Vinham de todos os lados. Do chão até às fendas das janelas, debaixo do tecto, erguiam-se montes de corpos torcidos e emaranhados; a pouca luz que entrava reflectia-se fracamente no metal amachucado desses corpos. — Tive um defeito temp… um defeito temporário, mas agora estou… agora estou bem, vejo… — Vês o quê… está escuro… — Escute, por favor. Sou muito valioso, sou caro. Indico todas as fugas de energia, localizo toda a corrente desencaminhada, toda a sobrecarga, por favor, experimente-me… Esta… esta tremura é temporária… Não tem nada em comum com… por favor… — Fachavor… xenhor… — E os cabeças de massa tomaram a sua fermentação ácida por alma, o apunhalamento de carne por história, os meios de adiar a sua decadência por civilização… — Por favor, eu… só eu… é um engano… — Fachavor… xenhor… dê… — Salvá-los-ei… — Quem ç? — O quê? — Oue salva? — Repitam comigo: o fogo não me consumirá completamente e a água não me conveilerá todo em ferrugem, ambos os elementos serão uma porta para mim e eu entrarei… — Caluda, caluda! — A contemplação do cátodo… — Catodoplação… — Estou aqui por engano… Penso… penso, no fim de contas… — Eu sou espelho da traição… — FachaVor… xenhor… seu criado… dê uma vista… de olhos… — Ó voo do transfinito. ó voo das nebulosas… Ó voo das estrelas… — Ele está aqui!!! — gritou qualquer coisa e seguiu-se um silêncio súbito, um silêncio quase tão penetrante, na sua terrível tensão, como o coro de muitas vozes que o precedera. — Senhor!!! — disse qualquer coisa; não sei porque estava tão certo, mas senti que aquelas palavras me eram dirigidas e não respondi. — Senhor, por favor… um momento do seu tempo. Senhor… eu sou diferente. Estou aqui por engano. Houve um certo movimento. — Silêncio! Estou vivo! — Esta voz abafou as outras. — Sim, fui atirado para aqui, eles vestiram-me propositadamente de metal para que ninguém soubesse, mas, por favor, encoste o seu ouvido a mim e ouvirá uma pulsação! — Também eu! — ergueu-se sobre a primeira uma segunda voz. — Também eu, senhor! Estive doente, durante a minha doença imaginei que era uma máquina, foi essa a minha loucura, mas agora estou bem! Hallister, o Sr. Hallister pode confirmá-lo. Por favor, pergunte-lhe, por favor, leve-me daqui! — Fachavor… facha" vor, xenhor… — Brec… bric… — Seu criado… No barracão ecoavam vozes ásperas e a certa altura encheu-o todo um grito ofegante. Comecei a recuar e saí cambaleante para a luz do sol, ofuscado e a semicerrar as pálpebras. Parei um bocado, a proteger os olhos com a mão. Atrás de mim ouviu-se um som prolongado e áspero: o robot fechara e trancara a porta. — Senhorrrr… — chegou-me ainda aos ouvidos através da onda de vozes abafadas atrás da parede. — FachaVor… serviço… um engano… Passei pelo anexo de vidro. Não sabia para onde ia, só queria afastar-me daquelas vozes, não as ouvir. Dei um salto quando senti tocarem-me no ombro. Era Marger, louro, simpático, sorridente. — Peço desculpa, Sr. Bregg. Nunca mais me despachava… — Que lhes acontecerá? — interrompi-o quase grosseiramente, a apontar para o barracão. — Perdão? — perguntou, a pestanejar. — A quem? De súbito, compreendeu e ficou surpreendido: — Ah, foi ali?! Não havia necessidade… — Porquê? — É sucata. — Que quer dizer? — Sucata para revestimento, após selecção. Vamos? Temos de assinar o registo oficial. — Só um momento. Quem conduz essa selecção? — Quem? Os robots, — O quê? São eles próprios que fazem isso? Ficou silencioso, perante o meu olhar. — Por que não são reparados? — Não compensaria — respondeu devagar, surpreendido. — E que lhes acontece? — À sucata? Vai para ali — apontou para a chaminé estreita e solitária do forno. No escritório os impressos estavam preparados, em cima da secretária — o registo oficial da inspecção e alguns outros papéis. Marger preencheu os espaços em branco, assinou e estendeu-me a caneta, que fiquei a virar nos dedos. — E não há possibilidade de erro? — Perdão? — Ali. naquela… sucata, como lhe chama… eles podem ir lá parar… mesmo que ainda estejam eficientes, capazes de funcionar… que lhe parece? Olhou para mim como se não compreendesse o que eu estava a dizer. — Foi essa a impressão que tive — concluí, devagar. — Mas isso não é da nossa conta. — Da conta de quem é, então? — Dos robots. — Mas somos nós que fazemos a inspecção. — Ah, não! — Sorriu, aliviado, ao compreender finalmente a origem do meu erro. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Nós inspeccionamos a sincronização de processos, o seu ritmo e eficiência, mas não nos prendemos com pormenores como selecção. Isso não é do nosso pelouro. Tirando o facto de ser desnecessário, seria também impossível, pois hoje há cerca de dezoito autómatos para cada pessoa. Desses dezoito, cinco terminam diariamente o seu ciclo e tomam-se sucata. Isso equivale a qualquer coisa da ordem dos dois biliões de toneladas por dia. Como vê, seríamos incapazes de nos avir com isso… e, de qualquer modo, a estrutura do nosso sistema baseia-se precisamente na relação oposta: os autómatos servem-nos e não nós a eles… Não tive argumentos para rebater o que ele dizia. Sem uma palavra mais, assinei os papéis. Preparávamo-nos para partir quando eu próprio me supreendi ao ouvir a minha voz perguntar-lhe se também produziam robots humanóides. — Não — respondeu, e acrescentou, relutante: — No seu tempo causaram complicações… — Porquê? — Bem, sabe como são os engenheiros! Atingiram um tal nível dc perfeição nas suas simulações que certos modelos não se distinguiam de seres humanos vivos. Algumas pessoas não o podiam tolerar. De súbito, lembrei-me da hospedeira da nave que me trouxera de Luna. — Não o podiam tolerar? — repeti as palavras dele. — Era, então, uma coisa assim como uma fobia? — Não sou psicólogo, mas creio que lhe pode chamar isso. De qualquer modo, trata-se de história antiga. — E ainda há robots desses? — Oh, sim! Andam em foguetões de curta distância. Encontrou algum? Dei uma resposta evasiva. — Terá tempo agora de tratar do seu assunto? — perguntou-me, preocupado. — Do meu assunto?… Depois lembrei-me de que dissera que tinha qualquer coisa a tratar na cidade. Separámo-nos à entrada da estação, aonde ele me conduzira enquanto me agradecia por o ter libertado de uma situação difícil. Vagueei pelas ruas, fui a um realon, mas saí antes do meio do ridículo espectáculo, e regressei a Clavestra muito deprimido. Mandei embora o gleeder a um quilómetro da vila e percorri o resto do caminho a pé. Estava tudo em ordem. Eram mecanismos de metal, fio e vidro, que se podiam montar e desmontar, disse a mim mesmo. Mas não consegui afastar a recordação daquela sala, da escuridão e das vozes deformadas, daquela cacofonia de desespero que continha excessivo significado, excessivo medo, do medo mais comum. Disse a mim mesmo que era um especialista nessa matéria, que a saboreara o suficiente: o horror perante a perspectiva da aniquilação súbita deixara de ser uma ficção para mim, embora o fosse para eles, para aqueles sensatos planeadores que tinham organizado tudo tão bem: os robots encarregavam-se da sua espécie, faziam-no até ao próprio fim, e o homem não interferia. Era um ciclo fechado de instrumentos de precisão que se criavam, reproduziam e desiruiam a si mesmo, e eu ouvira escusadamente a agonia da morte mecânica. Parei no alto de um monte. O panorama, sob os raios oblíquos do sol. era indescritivelmente belo. De vez em quando, um gleeder a brilhar como uma bala preta passava velozmente pela faixa da auto-estrada, apontado ao horizonte onde se erguiam montanhas em contornos azulados, suavizados pela distância. De súbito, achei que não podia olhar, como se não tivesse o direito de olhar, como se houvesse uma horrível decepção em tudo aquilo, uma decepção que me apertava a garganta. Sentei-me entre as árvores e ocultei o rosto nas mãos. Lamentei ter regressado. Quando entrei em casa um robot branco dirigiu-se-me: — Tem um telefonema à sua espera — informou-me, em tom confidencial. — Longa distância. Eurásia. Segui-o rapidamente. O telefone estava no vestíbulo, de modo que enquanto falava podia ver o jardim através da porta de vidro. — Hal? — perguntou uma voz distante, mas clara. — É Olaf. — Olaf… Olaf! — repeti, em tom triunfante. — Onde estás, amigo? — Em Narvik. — Que estás a fazer? Como vai isso? Recebeste a minha carta? — Claro. Foi por ela que soube que te podia encontrar. Um momento de silêncio. — Que estás a fazer? — repeti, menos certo. — Que poderei fazer? Não estou a fazer nada. E tu? — Foste para a Adaptação? — Fui, mas só um dia. Parei. Não podia, como sabes… — Pois sei. Escuta, Olaf… Aluguei aqui uma moradia. Pode não ser… Ouve, vem até cá! Não respondeu logo. Quando o fez, havia hesitação na sua voz. — Gostaria de ir. E, talvez vá, Hal… mas tu sabes o que eles nos disseram… — Sei. Mas que nos podem fazer? De qualquer modo, que vão para o inferno. Vem. — Para quê? Pensa, Hal. Podia ser… — O quê? — Pior. — Como sabes que não me estou a divertir aqui à grande? Ouvi a sua gargalhada breve, que mais parecia um suspiro. Ria tão baixinho! — Então para que me queres aí? Tive, de súbito, uma ideia: — Escuta, Olaf. Isto aqui é uma espécie de estância de Verão. Uma moradia, uma piscina, jardins. O único problema… mas tu deves saber como as coisas são, a maneira como eles vivem, não é verdade? — Tenho uma vaga ideia, sim. O tom disse mais do que as palavras. — Aí tens. Agora presta atenção. Vem para cá, mas primeiro arranja umas… luvas de boxe! Dois pares. Daremos uns toques. Verás, será formidável! — Jesus, Hal! Onde irei eu arranjar luvas de boxe? Provavelmente não as fazem há anos. — Manda-as fazer! Não me digas que é impossível fazer quatro estúpidas luvas. Montaremos um pequeno ringue… e esmurrar-nos-emos um ao outro. Nós dois podemos, Olaf! Presumo que ouviste falar de betrização? — Hum… Hei-de dizer-te o que penso disso, mas não pelo telefone. Poderia haver alguém com ouvidos delicados. — Vem, homem! Fazes o que eu disse? Ficou silencioso durante um bocado. — Não sei se é sensato, Hal. — Está bem. Então diz-me, já agora, que planos tens. Se tiveres alguns, não ousarei, naturalmente, incomodar-te qom os meus caprichos. — Não tenho nenhuns. E tu? — Vim para aqui para descansar, para me instruir e ler, mas isto não são planos, são apenas… Enfim, não consegui imaginar mais nada para mim. Silêncio. — Olaf? — Parece que estamos nas mesmas circunstâncias, à partida — resmungou. — .No fim de contas, poderei vir-me embora em qualquer ocasião, se verificar que… — Pára com isso! — interrompi-o, impaciente. — Não há nada que discutir. Faz uma mala e vem. Quando podes chegar? — Amanhã de manhã. Queres realmente jogar boxe? — E tu não queres? Riu-se. — Sim, com os diabos! E pela mesma razão que tu. — Então está combinado — disse, muito depressa. — Fico à tua espera. Cuida de ti. Fui para o quarto. Procurei entre algumas coisas que metera numa mala e encontrei a corda. Um grande rolo. Cordas para um ringue. Quatro postes, um bocado de borracha ou molas e estaríamos feitos. Não haveria árbitro. Não precisaríamos. Depois sentei-me para ler. Mas parecia que tinha a cabeça cheia de cimento. Já tivera a mesma sensação no passado, mas nunca com tanta intensidade. Em duas horas peguei em 20 livros e não consegui concentrar a atenção em nada durante mais de cinco minutos. Pus de parte até os contos de fadas. Decidi, no entanto, não estar com contemplações. Peguei no que me pareceu a coisa mais difícil, uma monografia sobre a análise de metagenes, e atirei-me às primeiras equações como se me atirasse, de cabeça baixa, a uma parede de pedra. No entanto, a matemática tinha certas propriedades benéficas, particularmente para mim, pois ao fim de uma hora compreendi subitamente, fiquei boquiaberto e cheio de respeito. Como conseguira aquele Ferret fazer aquilo? Mesmo agora, retrocedendo pelo caminho que ele abriu, havia momentos em que me perdia. Passo a passo ainda me aguentava, mas aquele homem devia ter feito tudo num salto. Teria dado todas as estrelas para ter na minha cabeça, durante um mês, qualquer coisa parecida com o conteúdo da sua. Tocou o sinal para o jantar e ao mesmo tempo senti uma volta nas tripas, a lembrar-me de que não estava sozinho. Durante um segundo considerei a ideia de comer no quarto. Mas a vergonha venceu-me. Atirei para debaixo da cama a horrível camisa apertada que me dava o aspecto de um macaco inflado, vesti a minha impagável camisola velha, solta, e fui para a sala de jantar. Tirando a troca de algumas delicadezas banais, houve silêncio. A conversa esteve ausente. Eles não precisavam de palavras. Comunicavam por olhares. Ela falava com ele com a cabeça, as pestanas e o leve sorriso. Lentamente, começou a crescer dentro de mim um peso frio e senti os braços famintos, desejosos de agarrar qualquer coisa, apertar, esmagar. Porque era tão selvagem? — perguntei-me com desespero. Porque seria que em vez de pensar no livro de Perret, nas questões levantadas por Starck e em vez de tratar dos meus próprios assuntos tinha de lutar comigo mesmo para não sorrir àquela rapariga como um lobo? Mas só me senti assustado quando me fechei no quarto, no andar de cima. Na Adaptação tinham-me dito, depois dos testes, que era completamente normal. O Dr. Juffon confirmara-o. Mas uma pessoa normal poderia sentir o que eu sentia naquele momento? De onde vinha aquilo? Eu não era um participante: era uma testemunha. Estava a realizar-se qualquer coisa, qualquer coisa irreversível como o movimento de um planeta, uma emergência gradual e quase imperceptível, ainda sem forma. Fui à janela, olhei para o jardim às escuras e apercebi-me de que, o que quer que era, devia estar em mim desde o almoço, desde o primeiro momento. Nem sequer precisara de um certo período de tempo. Por isso eu fora à cidade, por isso esquecera as vozes no escuro. Era capaz de fazer fosse o que fosse por aquela rapariga. Não compreendia, porém, o como nem o porquê do que me acontecia. Não sabia se era amor ou loucura. Isso não importava. Só sabia que tudo o mais perdera a importância para mim. E lutei contra isso, de pé junto da janela aberta, como nunca lutara contra coisa alguma. Comprimi a testa contra o vidro frio e tive medo de mim mesmo. «Tenho de fazer qualquer coisa», pensei. «Tenho de fazer qualquer coisa. Isto acontece porque algo está errado em mim. Passará. Ela não pode significar nada para mim. Não a conheço. Nem sequer é especialmente bonita. Mas pelo menos não farei nada. Não farei…», supliquei a mim próprio. «Pelo menos não cometerei nenhuma… Não, por Deus!» Acendi a luz. Olaf. Olaf salvar-me-ia. Contar-lhe-ia tudo. Ele tomaria conta de mim. Iríamos para qualquer lado. Eu faria o que ele me dissesse, tudo o que ele me dissesse. Só ele compreenderia. Olaf chegaria no dia seguinte. Óptimo. Andei de um lado para o outro. Sentia cada um dos meus mtisculos, era como se estivesse cheio de animais que se retesavam e lutavam uns com os outros. De súbito, ajoelhei-me junto da cama, mordi o cobertor e soltei um som estranho, um som seco e horrível, que não se parecia com um soluço. Eu não queria, eu não queria fazer mal a ninguém, mas sabia que era inútil mentir a mim mesmo, que Olaf me não poderia ajudar, nem ele nem ninguém. Levantei-me. Durante 10 anos aprendera a tomar decisões repentinas, decisões de que dependiam vidas, a minha e as de outros, e fizera-o sempre do mesmo modo: friamente, com o cérebro transformado numa máquina feita para calcular os prós e os contras, para separar e solucionar, irrevogavelmente. Até Gimma, que não gostava de mim, reconhecia a minha imparcialidade. E agora, mesmo que quisesse, não poderia agir de modo diferente, mas só como então agira, numa situação extrema, porque esta também o era. Vi o meu rosto ao espelho. As íris pálidas, quase brancas, as pupilas apertadas. Olhei com ódio e afastei-me. Não podia pensar em ir para a cama. Tal qual como estava, passei as pernas por cima do parapeito da janela. Eram quatro metros até ao chão. Saltei e aterrei quase silenciosamente. Corri no mesmo silêncio na direcção da piscina, ultrapassei-a e cheguei à estrada. A superfície fosforescente levava para os montes, ziguezagueava entre eles como uma serpente reluzente, uma víbora, até desaparecer, cicatriz de luz nas sombras. Corri cada vez mais depressa, para cansar o coração que batia tão firmemente, tão fortemente. Corri durante cerca de uma hora até ver as luzes de algumas casas em frente. Regressara ao ponto de partida. Estava cansado, mas por essa razão mantive o mesmo passo, dizendo-me silenciosamente: «Anda! Anda! Anda!» Continuarei a correr e finalmente cheguei a uma fila dupla de sebes. Estava de novo defronte do jardim da vila. A respirar com dificuldade, parei junto da piscina e sentei-mé na borda de cimento. Baixei a cabeça e vi as estrelas reflectidas na água. Mas não queria as estrelas. Não as queria para nada. Estivera louco, dementado, quando lutara para conseguir um lugar na expedição, quando permitira que me transformassem num saco sangrento nos gravi-rotores. Que razão tivera para fazer isso e por que motivo não compreendera que um homem deve ser vulgar, completamente vulgar, pois de contrário é impossível, e inútil, viver? Ouvi uma restolhada. Eles passaram por mim. Ele enlaçava-a e caminhavam com o mesmo passo. Ele inclinou-se. As sombras das suas cabeças fundiram-se. Levantei-me. Ele beijava-a. Ela abraçava-lhe a cabeça. Vi os contornos pálidos dos braços dela. Depois traspassou-me como uma faca um sentimento de vergonha, de vergonha como nunca sentira, horrível e nauseante. Eu, viajante interstelar, companheiro de Arder, regressara, encontrava-me num jardim e só pensava na maneira de tirar uma rapariga a um homem qualquer, sem saber nada dele nem dela. Era um pulha, um pulha das estrelas sem atenuantes, pior, pior do que isso… Não pude olhar. Mas olhei. Por fim, eles retrocederam devagar, agarrados um ao outro, e eu contornei a piscina e parti de novo. Depois vi uma grande sombra preta e ao mesmo tempo embati em qualquer coisa com as mãos. Era um carro. Às apalpadelas, encontrei a porta. Quando a abri, acendeu-se uma luz. Tudo quanto fiz a partir desse momento foi com uma pressa deliberada, concentrada, como se devesse ir a algum lado, como se tivesse de ir… O motor reagiu. Girei o volante e, de faróis acesos, saí para a estrada. As mãos tremiam-me um pouco e, por isso, apertei o volante com mais força. De súbito, lembrei-me da pequenina caixa preta. Travei bruscamente, saí da estrada a derrapar, apeei-me de um salto, levantei a capota e comecei a procurá-la febrilmente. Não conseguia encontrá-la, o motor era completamente diferente. Talvez mesmo à frente… Fios. Um bloco de ferro fundido. Uma cassette. Qualquer coisa estranha, quadrada… sim, era isso. Ferramentas. Trabalhei furiosamente, mas com cuidado. Quase não ensanguentei as mãos. Por fim, levantei o cubo preto, pesado como se fosse de metal sóhdo, e atirei-o para o mato ao longo do lado da estrada. Estava livre. Bati com a porta e arranquei. O ar começou a assobiar. Mais velocidade. O motor rugia, os pneus emitiam um silvo penetrante. Uma curva. Lancei-me nela sem afrouxar, guinei para a esquerda, saí da curva. Outra, mais apertada. Senti uma enorme força a empurrar-me, juntamente com o veículo, para o lado de fora da curva. Mas ainda não era o suficiente. Na próxima curva. Em Apprenous tinham carros especiais para pilotos. Fazíamos proezas neles, para melhorar os reflexos. Excelente treino. Também desenvolvia um sentido de equilíbrio. Por exemplo, numa curva lançava-se o carro nas duas rodas exteriores e conduzia-se um bocado assim. Fora capaz de fazer isso, em tempos. E voltei a fazê-lo naquele momento, na auto-estrada deserta, lançado através da escuridão rasgada pelos meus faróis. Não que quisesse matar-me. O que acontecia, simplesmente, era que nada me importava. Se não demonstrava nenhuma misericórdia pelos outros também a não podia ter por mim próprio. Lancei o carro na curva e levantei-o, de modo que, por um momento, foi de lado, com os pneus a gritar; seguidamente, atirei-o de novo na direcção oposta e embati com a retaguarda em qualquer coisa escura — uma árvore? Depois só havia o rugido do motor a adquirir velocidade, e os reflexos pálidos dos mostradores do painel, e o vento a assobiar ferozmente. Em seguida vi, à minha frente, um gleeder. Tentou evitar-me chegando-sè para a beirinha da estrada. Um pequeno movimento do volante permitiu-me passar por ele. Mas o meu pesado veículo girou como um pião, houve um choque surdo, o barulho de metal lacerado e escuridão. Os faróis estavam espatifados, o motor parado. Respirei fundo. Não me acontecera nada, nem uma beliscadura. Experimentei os faróis. Naaa, Tentei com os farolins da frente. O esquerdo funcionou. À sua fraca luz liguei o motor. O carro, a gemer, manquejou para a auto-estrada. Uma excelente máquina, apesar de tudo. Ainda me obedecia, depois daquilo a que a expusera. Voltei para trás, mais devagar. Mas o meu pé premiu o pedal, voltou a entrar em mim qualquer coisa quando vi aproximar-se uma curva. E de novo exigi o máximo ao motor, até que, com os pneus a chiar, impelido para a frente pelo ímpeto, me encontrei defronte da sebe. Conduzi o carro para os arbustos. Afastando para o lado os ramos, acabou por parar encostado a um toco de árvore. Como não queria que ninguém soubesse o que lhe fizera, arranquei alguns ramos e coloquei-os sobre a capota e os faróis partidos. Havia apenas uma pequena amolgadela na retaguarda, da primeira colisão com o que quer que fosse, na escuridão. Escutei. A casa estava às escuras. Reinava o silêncio. O grande silêncio da noite que chegava às estrelas. Não queria voltar para dentro. Afastei-me do carro amachucado e quando a erva — a erva alta e húmida — me chegou aos joelhos, deixei-me cair e fiquei assim até os olhos se me fecharem e adormecer. Acordou-me uma gargalhada, que reconheci. Soube quem era antes de 112 abrir os olhos, instantaneamente acordado. Estavà encharcado, não havia nada que não escorresse orvalho. O Sol ainda estava baixo. O céu, tufos de nuvens brancas e. defronte de mim, sentado numa pequena mala, Olaf a rir. Levantámo-nos ao mesmo tempo. A sua mão era como a minha, tão grande e tão dura como ela. — Quando chegaste? — Há um momento. — De ulder? — Sim. Também dormi assim, nas duas primeiras noites. — Sim? Deixou de sorrir e eu também. Como se qualquer coisa se erguesse entre nós. Estudámo-nos mutuamente. Ele era da minha altura, talvez até um pouco mais alto, mas mais delgado. À luz forte, o seu cabelo, embora escuro, denunciava a sua origem escandinava e a barba de um dia era completamente loura. Nariz curvo, cheio de carácter, e um lábio superior curto, que lhe mostrava os dentes. Os seus olhos, que sorriam facilmente, eram de um azul-pálido que escurecia quando sorria; lábios finos, com um ligeiro e eterno arquear, como se aceitasse tudo com cepticismo — talvez fosse essa sua expressão que nos fazia manter uma certa distância um do outro. Olaf era dois anos mais velho do que eu: o seu melhor amigo tinha sido Arder. Só depois de Arder morrer nos tomáramos íntimos. Para sempre, agora. — Deves estar com fome, Olaf. Vamos arranjar qualquer coisa para comer. — Espera. Que é aquilo? Segui a direcção do seu olhar. — Ah. aquilo!… Nada… Um carro. Comprei-o… para me recordar. — Tiveste um acidente? — Tive. Estava a conduzir à noite, compreendes… — Tu, um acidente? — repetiu. — Tive, pronto. Mas nada de importante. De qualquer modo, não aconteceu nada. Vamos, não vais ficar aí parado, com essa mala… Pegou na mala sem dizer nada. Não òlhou para mim. Os músculos do seu queixo retesaram-se. «Desconfia de qualquer coisa», pensei. «Não sabe o que causou o acidente, mas desconfia…» No andar de cima, disse-lhe que escolhesse um dos quatro quartos vazios. Escolheu aquele de onde se viam as montanhas. — Porque não o quiseste? — perguntou-me e depois sorriu. — Já sei! Por causa dos dourados, não foi? — Foi. Tocou na parede com a mão. — Vulgar, espero? Nem imagens, nem televisão? — Fica tranquilo. — Foi a minha vez de sorrir. — É umá parede normal. Telefonei a pedir o pequeno-almoço. Queria que comêssemos sozinhos. O robot branco trouxe café. E um tabuleiro cheio, com um pequeno-almoço farto. Vi-o comer com prazer. Mastigava de tal maneira que um tufo de cabelo, por cima de uma orelha, se mexia. Quando acabou, perguntou-me: — Ainda fumas? — Ainda. Trouxe dois pacotes. O que acontecerá depois disso, não sei. Por enquanto, fumo. Queres um? — Um. Fumámos. — Como vai ser? Cartas na mesa? — perguntou, após uma longa pausa. — Sim. Eu dir-te-ei tudo. E tu a mim? — Sempre. Mas, Hal, não sei se vale a pena. — Diz-me uma coisa: sabes o que é o pior de tudo? — Mulheres. — Exactamente. Ficámos de novo silenciosos. — É por causa disso? — perguntou-me. — É. Verás ao jantar. Lá em baixo. Eles alugaram metade da moradia. — Eles? — Um jovem casal. Os músculos do seu queixo moveram-se de novo sob a pele sardenta. — Isso é pior. — Pois é. Estou aqui há dois dias. Não sei como foi possível, mas… logo na primeira conversa. Sem qualquer razão, sem qualquer… nada, nada. Absolutamente nada. — Curioso. — O quê? — Fiz o mesmo. — Então porque vieste? — Fizeste uma boa acção, Hal. Compreendes? — Por ti? — Não. Por outra pessoa. Teria acabado mal. — Porquê? — Ou sabes, ou então não compreenderás. — Sei. Que é isto, Olaf? Somos realmente selvagens? — Não sei. Estivemos dez anos sem mulheres. Não esqueças isso. — Isso não explica tudo. Há uma espécie de implacabilidade em mim, não tomo ninguém em consideração, compreendes? — Ainda tomas, meu amigo. Ainda tomas. — Bem, é verdade. Mas tu sabes o que quero dizer. — Pois sei. Novo silêncio. — Queres falar mais ou jogar boxe? — perguntou-me por fim. Ri-me. — Onde arranjaste as luvas? — Hal, nunca adivinharias. — Mandaste-as fazer? — Roubei-as. — Não! — Palavra! De um museu. Tive de voar para Estocolmo especialmente para as arranjar. — Nesse caso, vamos. Olaf tirou da mala os seus modestos pertences e mudou de roupa. Vestimos ambos roupões e descemos. Ainda era cedo. Normalmente, o pequeno-almoço só seria servido dali a meia hora. — Acho melhor irmos para as traseiras da casa — sugeri. — Lá ninguém nos verá. Parámos num círculo de arbustos altos. Primeiro espezinhámos a erva, que já de si era baixa. — É escorregadio — disse Olaf, a fazer deslizar um pé no ringue improvisado. — Não tem importância. Será mais difícil. Calçámos as luvas. Tivemos um pequeno problema, pois não havia ninguém para as atar e eu não queria chamar um robot. Olaf parou à minha frente. O seu corpo era completamente branco. — Ainda hão bronzeaste — observei. — Mais tarde contar-te-ei o que me tem acontecido. Não tive tempo para ir à praia. Gongo. — Gongo. Começámos sem pressa. Uma finta. Outra e outra. Aqueci. Dava mais sapatadas do que socos. Não queria, realmente, aleijá-lo. Eu era uns bons 15 kg mais pesado e o seu alcance ligeiramente mais comprido não anulava a minha vantagem, tanto mais que eu era também o melhor pugilista. Por essa razão dei-lhe diversas vezes uma aberta, embora não fosse obrigado a isso. De súbito, ele baixou as luvas. Tinha o rosto duro. Estava zangado. — Desta maneira, não — declarou. — Que se passa? — Nada de brincadeiras, Hal. Ou jogamos boxe ou não jogamos. — Está bem! — exclamei, e cerrei os dentes. — Jogamos boxe. Comecei a penetrar. Luva bateu em luva com uma pancada forte. Ele apercebeu-se de que eu estava a sério e levantou a guarda. O ritmo acelerou-se. Fintei para a esquerda e para a direita, sucessivamente, e a última pancada quase lhe acertou no peito — Olaf não foi suficientemente rápido. Inesperadamente, tomou a ofensiva e encaixou uma bela direita que me atrirou dois passos para trás. Refiz-me imediatamente. Andámos ã roda, ele atacou e eu ocultei-me atrás da luva, recuei e atirei uma direita directa de meia distância, com o meu peso atrás. Olaf pareceu amolecer e afrouxou por momentos a guarda, mas depois avançou cuidadosamente, encolhido. No minuto seguinte bombardeou-me com socos. As luvas batiam-me nos antebraços com um barulho assustador, mas inofensivamente. Uma vez, esquivei-me mesmo a tempo e a sua luva ainda me roçou na orelha. Se tem acertado em cheio ter-me-ia atirado ao chão. Andámos de novo ã roda. Ele levou um soco no peito, com força, baixou a guarda e eu poderia tê-lo fustigado, mas não fiz nada, fiquei como que paralisado… Ela estava a uma das janelas, tão branca como o tecido que lhe cobria os ombros. Passou uma fracção de segundo. No instante seguinte, um soco violento deixou-me atordoado. Caí de joelhos. — Desculpa! — ouvi Olaf gritar. — Não tens nada de que pedir desculpa… Foi um bom golpe — tartamudeei, a levantar-me. A janela fechara-se. Combatemos talvez meio minuto mais e, de súbito, Olaf recuou. — Que se passa contigo? — Nada. — Não é verdade. — Está bem, já me chega. Não estás zangado? — Claro que não. Não fazia sentido nenhum, de qualquer modo, recomeçar… Vamos. Fomos para a piscina. Olaf era melhor mergulhador do que eu. Era capaz de fazer coisas fantásticas. Temei um gainer com torsão, como ele fazia, mas só consegui bater na água com as coxas. Sentado na beira da piscina, salpiquei a pele a arder com água. Olaf riu-se. — Perdeste a prática. — Que queres dizer? Nunca fui capaz de dar esse salto bem. Tu é que és formidável! — Nunca se perde o jeito. Hoje foi a primeira vez. — Sério? — Sério. Isto é óptimo. O Sol já estava alto. Deitámo-nos na areia e fechámos os olhos. — Onde estão… eles? — perguntou-me, após longo silêncio. — Não sei. Provavehnente no seu quarto. As janelas dão para as traseiras da casa. Eu não sabia. Senti-o mexer-se. A areia estava muito quente. — Sim, foi por causa disso — murmurei. — Eles viram-nos? — Ela viu-nos. — Deve ter-se assustado, não achas? — perguntou, baixinho. Não respondi. Nova pausa. — Hal! — Que é? — Sabias que eles agora quase não voam? — Sabia. — Sabes porquê? — Alegam que não vale a pena… Comecei a expor-lhe o que lera no livro de Starck. Ele permaneceu imóvel e calado, mas eu sabia que escutava atentamente. Quando acabei, não falou logo. — Leste Shapley? Salto em que o mergulhador sai da prancha voltado para a frente, dá uma cambalhota para trás e entra na água com os pés. (N. da T.) — Não. Que Shapley? — Não? Pensei que tinhas lido tudo… Um astrónomo do século XX. Um dos seus livros veio parar-me às mãos, uma vez, precisamente sobre esse assunto. Muito parecido com o teu Starok. — O quê? Isso é impossível. Shapley não podia saber… Mas lê tu mesmo o Starck. — Não tenciono fazê-lo. Sabes o que tudo isso é? Uma cortina de fumo. — Uma cortina de fumo? — Sim. Julgo saber o que aconteceu. — Que foi? — Betrização. Sentei-me. — Achas que sim? Olaf abriu os olhos. — É óbvio. Eles não voam nem nunca voarão. Irá de mal a pior. Papas. Um grande chiqueiro de papas. Não suportam ver sangue. Não podem pensar no que poderia acontecer quando… — Aguenta aí — interrompi-o. — Isso é impossível. No fim de contas, há médicos. Deve haver cirurgiões… — Então não sabes? — Não sei o quê? — Os médicos só planeiam as operações. São os robots que as fazem. — Não pode ser! — Estou a dizer-te! Eu próprio vi, em Estocolmo. — E se um médico tem de intervir, de repente? — Não tenho a certeza. Deve haver uma droga que anule parcialmente os efeitos da betrização, durante muito pouco tempo, mas eles ocultam isso, como podes imaginar. A pessoa que me disse não quis adiantar nada específico. Teve medo. — De quê? — Não sei, Hal. Penso que eles fizeram uma coisa terrível. Mataram o homem que havia no homem. — Exageras — murmurei, debilmente. — De qualquer modo… — Na realidade é muito simples. Aquele que mata está preparado para ser ele prório morto, não é? Fiquei calado. — E consequentemente pode-se dizer que é essencial uma pessoa ser capaz de arriscar… tudo. Nós somos capazes. Eles não são. É por isso que têm tanto medo de nós. — As mulheres? — Não só as mulheres. Eles todos, Hal! Sentou-se bruscamente. — O que é? — Tens um hipnagogue? — Um hipna… aquela máquina para aprender enquanto dormimos? — Tenho. — Utilizaste-a? — quase gritou. — Não. Qual é o problema?… — Tens sorte. Atira-a à piscina. — Mas porquê? De que se trata? Utilizaste alguma? — Não. Tive um pressentimento e ouvi-a acordado, embora as instruções proibissem isso. Nem fazes ideia! Voltei-me para ele. — Que contém a máquina? — Rebuçados. Uma autêntica confeitaria, acredita. Que deves ser calmo, que deves ser cortês. Que deves resignar-te a todas as coisas desagradáveis e que se alguém não te compreende ou não quer ser bom para ti — uma mulher, por outras palavras—, a culpa é tua e não dessa pessoa. Que o maior bem é o equilíbrio social, a estabilidade, etc., etc., num círculo que nunca mais acaba. Conclusão: vive calmamente, escreve as tuas memórias — mas não para publicação; só para ti —, dedica-te ao desporto e educa-te. Respeita os mais velhos. — Um substituto para a betrização — murmurei. — Claro. E muito mais coisas do mesmo género; que nunca devemos usar a força ou sequer um tom agressivo para quem quer que seja e que é uma grande má acção bater em alguém, é mesmo um crime, pois causa um choque terrível. Que não se deve lutar em circunstâncias nenhumas, pois só os animais lutam, que… — Espera… E se algum animal selvagem foge de uma reserva… não… já não há animais selvagens… — Não há animais selvagens, mas há robots. — Que quer isso dizer? Insinuas que se lhes podia dar uma ordem para matar? — Isso mesmo. — Como sabes? — Não tenho a certeza. Mas eles têm de estar preparados para emergências. Até um cão betrizado pode ficar raivoso, não pode? — Mas então… espera um momento! Então eles podem matar, no fim de contas? Por meio de ordens? Não é a mesma coisa se eu efectuo a morte ou dou a ordem? — Para eles, não. Mas isso só aconteceria in extrçmis, compreendes? Em caso de uma calamidade ou uma ameaça, como a do cão raivoso. De modo geral não acontece. Mas se nós… — Nós? — Sim, por exemplo, tu e eu… se nós… sabes o que quero dizer… então, claro, os robots e não eles encarregar-se-iam de nós. Eles não podem. São bons. Ficou um momento calado. O seu peito largo, avermelhado pelo sol e pela areia, arfava. — Hal, se eu tivesse sabido… se eu tivesse sabido isto! Se… eu tivesse… sabido… isto… — Pára! — Já te aconteceu alguma coisa? — Já. — Sabes de que estou a falar? — Sei. Houve duas. Uma convidou-me logo que saí da estação, embora não tenha sido exactamente assim… eu perdi-me na maldita estação e ela levou-me a casa. — Sabia quem tu eras? — Eu disse-lhe. Ao princípio ficou assustada, mas depois… Atirou-se de certo modo — não sei se por compaixão, se não —, mas acabou por se assustar a valer. Fui para um hotel. No dia seguinte… Sabes quem encontrei? Roemer! — Não me digas! Ele deve ter… cento e setenta anos, não? — Não, era a filho. Mesmo assim, o homem tem quase cento e cinquenta anos. Uma múmia. Horrível. Falei com ele. E sabes o que descobri? Inveja-nos… — Não tem nada que invejar. — Ele não compreende isso. Embora, no entanto, haja alguma coisa. Depois foi uma actriz. Chamam-lhes realistas. Ficou encantada comigo, um verdadeiro pitecantropo! Fui a casa dela e no dia seguinte safei-me. Era um palaácio. Magnificente. Mobília que desabrochava como flores, paredes móveis, camas que liam os nossos pensamentos e desejos… — Hum… Ela não teve medo, hem? — Teve, mas bebeu qualquer coisa… Não sei o que foi, talvez um narcótico qualquer. Perto, ou coisa parecida. — Perto? — Sim. Sabes o que é? Já bebeste? — Não — respondeu, devagar. — Não bebi. Mas é o nome do que anula… — A betrização? Não! — Foi o que a tal pessoa me disse. — Quem? — Não te posso dizer. Dei a minha palavra. — Está bem. Então foi por isso… foi por isso que ela… Calei-me. — Senta-te. Sentei-me. — E tu? — perguntei. — Tenho estado para aqui a falar de mim… — Eu? Nada. Quero dizer, nada resultou, para mim. Nada… Fiquei de novo calado. — Como se chama este lugar? — perguntou-me. — Clavestra. Mas a cidade fica a alguns quilómetros de distância. Olha, vamos até lá. Preciso de reparar o carro. Viremos a corta-mato… uma pequena corrida. Que dizes? — Hal, estabanado… — murmurou, devagar. — Porquê? Os seus olhos sorriam. — Pensas que podes expulsar o demónio com atletismo? És um asno. — Decide-te: ou sou um estabanado ou um asno. Que mal há em pensar assim? — Não dará resultado. Já tocaste num deles? — Se já… ofendi algum? Não. Porquê? — Não, pergunto se tocaste num deles? Compreendi finalmente. — Não houve nenhuma razão para isso. Por que perguntas? — Não o faças. — Porquê? — Porque é o mesmo que bater numa velha. Compreendes? — Mais ou menos. Entraste nalguma briga? Tentei não manifestar a minha surpresa. Olaf tinha sido um dos homens com mais autodomínio de bordo. — Entrei. Fiz uma perfeita figura de idiota. Foi no primeiro dia. À noite, para ser exacto. Não consegui sair do posto dos Correios. Não havia porta, somente uma coisa que girava. Já viste alguma? — Uma porta giratória? — Não. Penso que tinha alguma coisa a ver com o controlo da gravitação. Em resumo, rodopiei como um pião e um gajo que estava com uma rapariga apontou para mim e riu-se. A pele da minha cara pareceu ficar mais esticada. — Velha ou não — comentei —, ele provavelmente não voltará a rir. — Pois não. Ficou com uma clavícula partida. — Não te fizeram nada? — Não. Não porque eu acabara de sair da geringonça e ele provocou-me… eu não o agredi logo, Hal. Perguntei-lhe onde estava a piada, uma vez que eu estivera ausente tanto tempo, e ele riu-se de novo e disse, a apontar para cima: «Ah, veio do circo dos macacos?!» — Circo dos macacos? — Sim. Depois… — Espera lá. Circo dos macacos porquê? — Não sei. Talvez tenha ouvido dizer que os astronaustas são postos a girar em centrifugadoras. Não sei, porque nessa altura já não estava a falar com ele… Foi assim. Deixaram-me em paz, mas doravante a Adaptação de Luna terá de fazer melhor trabalho com os recém-chegados. — Há outros a regressar? — Há. O grupo de Simonadi, daqui a dezoito anos. — Nesse caso temos tempo. — Muito. — Tens de admitir que são cordatos — observei. — Partes a clavícula ao tipo e deixam-te em paz dessa maneira… — Tenho a impressão de que foi por causa daquele «circo». Até eles são… em relação a nós… sabes o que quero dizer. E não são estúpidos. Teria causado um escândado. Hal, homem, não sabes nada. — Nada de quê? — Sabes por que razão não deram publicidade ao nosso regresso? — Disseram qualquer coisa no real. Eu não vi, mas alguém me disse. — Pois disseram. Terias morrido a rir. se tivesses visto. «Ontem de manhã regressoy à Terra um grupo de exploradores do espaço exterior. Os seus membros estão bem. Os resultados científicos da expedição estão a ser estudados.» Ponto final. — Falas a sério? — Palavra de honra. E sabes porque fizeram isso? Porque nos temem. Foi também por isso que nos espalharam pela Terra. — Não… não compreendo. Eles não são estiipidos. como tu mesmo disseste há momentos, certamente não pensam que somos predadores, que nos vamos lançar ao pescoço das pessoas! — Se pensassem isso, não nos teriam deixado vir. Não, Hal. Isto não tem a ver connosco. O que está em causa é mais importante. Não compreendes? — Aparentemente, tomei-me estúpido. Diz-me. — O público não está ao corrente… — De quê? — Do facto de que o espírito de exploração morreu. Sabem que não há expedições. Mas não pensam nisso. Pensam que não há expedições porque são desnecessárias e mais nada. Mas há alguns que vêem e sabem perfeitamente o que se passa e quais serão as consequências. Quais foram já. — E então? — Papas. Papas e mais papas por toda a eternidade. Agora ninguém voará para as estrelas. Ninguém correrá o risco de uma experiência perigosa. Ninguém experimentará em si mesmo um novo remédio. Julgas que não o sabem? Sabem! E se se espalhasse quem nós somos, o que fizemos, porque voámos, do que se tratou, enfim, então seria impossível… impossível, compreendes? ocultar a tragédia! — Papas e mais papas? — perguntei, usando a sua expressão; se alguém estivesse a ouvir a nossa conversa tê-la-ia achado divertida, mas eu não estava com disposição nenhuma para rir. — Claro. E não achas que seja uma tragédia? — Náo sei. Escuta. Olaf. Para nós deve ser e será sempre uma grande coisa. O modo como desperdiçámos esses anos. e tudo o mais… enfim, nós cremos que foi da máxima importância. Mas talvez não tenha sido. Temos de ser objectivos. Porque… Diz-mo tu mesmo: que conseguimos, que realizámos? — Que queres dizer? — Bem, desfaz as malas. Despeja tudo quanto trouxeste de Fomalhaut. — Endoideceste? — De modo nenhum. Qual foi o valor desta expedição? — Nós éramos pilotos. Ha!. Pergunta ao Gimma, ao Thurber. — Não me venhas com isso, Olaf. Estivemos lá juntos e tu sabes perfeitamente o que eles fizeram, o que fez o Venturi antes de morrer, o que fez o Thurber… Porque estás a olhar-me dessa maneira? Que trouxemos nós? Quatro carregamentos de várias análises espectrais, elementares, etc.; amostras de minérios, e aquele caldo, ou metaplasma, ou como diabo se chamava aquela porcaria de Beta Arcturi. Normers conferiu a sua teoria de rotações gravimagnéticas e verificou-se além disso que em planetas do tipo C Meoli podem existir não tri, mas sim tetraplóides de silício, e que naquela lua onde o Arder quase foi desta para melhor não há nada além de reles lava e bolhas do tamanho de arranha-céus. Foi a fim de aprendermos que essa lava endurece nessas malditas bolhas que vomitámos dez anos da nossa vida e voltámos para sermos uma espécie de abortos de feira? Então para que raio lá fomos? Para quê? Talvez me saibas dizer. Para quê? — Não fales tão alto. Eu estava furioso. E ele também. Tinha semicerrado os olhos. Pensei que ainda acabaríamos por brigar e os meus lábios começaram a tremer e a esboçar um sorriso. E, de repente, ele sorriu também. — Sempre o mesmo estabanado — comentou. — Sabes que és capaz de enfurecer um homem? — Vamos ao ponto que interessa, Olaf. Ao ponto que interessa. — Ao ponto que interessa? Ainda lá não chegaste. Que teria acontecido se tivéssemos trazido um elefante com oito pernas e conhecimentos de álgebra? Isso ter-te-ia tomado feliz? Que esperámos encontrar em Arcturus? Q Paraíso? Um arco do triunfo? Que queres? Em dez anos não te ouvi dizer tantos disparates como disseste agora num minuto. Respirei fundo. — Olaf, estás a tentar ridicularizar-me. Sabes o que quis dizer. Quis dizer que as pessoas podem viver sem isso… — Também acho que podem! Podem, sim, senhor! — Espera. Podem viver sem isso e mesmo que seja como tu dizes, mesmo que tenham deixado de voar por causa da betrização, mesmo assim, valeu a pena, esteve certo pagar um tal preço? É essa a questão que se nos apresenta, meu amigo. — É? E supõe que casas. Por que fizeste uma careta? Não te podes casar? Podes. Estou a dizer-te que podes. E terás filhos. E levá-los-ás para serem betrizados com uma canção nos lábios. Então? — Com uma canção, não. Mas que poderia eu fazer? Não posso entrar em guerra contra o mundo todo… — Nesse caso, que as bênçãos do firmamento caiam sobre ti. E agora, se quiseres, podemos ir à cidade. — Óptimo. O almoço será daqui a duas horas e meia. Temos tempo. — E se não tivermos tempo eles não nos darão nada de comer? — Darão, mas… Corei. Fingindo não reparar, ele sacudiu a areia dos pés descalços. Subimos para os quartos, mudámos de roupa e levámos o carro a Clavestra. Havia muito trânsito na estrada. Vi pela primeira vez gleeders coloridos, cor-de-rosa e limão pastel. Encontrámos uma estação de serviço. Pareceu-me ver surpresa nos olhos de vidro do robot que examinou os estragos. Deixámos ficar o automóvel e regressámos a pé. Descobrimos que havia duas Clavestras, uma velha e uma nova. Na cidade velha ficava o centro industrial local, onde eu tinha estado no dia anterior com Marger. A parte nova era uma estância de Verão moderna e havia gente por todo o lado, quase exclusivamente jovens, adolescentes. Com as suas vestimentas berrantes e reluzentes, os rapazes pareciam vestidos como soldados romanos, pois o metal captava o sol como as meias armaduras desse tempo. Havia muitas raparigas, na sua maioria atraentes e frequentemente de fatos de banho mais ousados do que tudo quanto já vira. Enquanto caminhava com Olaf sentia os olhos da rua toda postos em mim. Grupos coloridos paravam debaixo das palmeiras ao ver-nos. Não havia ninguém tão alto como nós e as pessoas paravam e trocavam olhares. Era muitíssimo embaraçoso. Quando chegámos finalmente à auto-estrada e virámos para sul através dos campos, na direcção de casa, Olaf enxugou a testa com um lenço. Eu também suava um pouco. — Diabos te levem — praguejou ele. — Deixa isso para melhor ocasião… Esboçou um sorriso amargo. — Hal… — Que é? — Sabes o que me pareceu? Um cenário de um estúdio cinematográfico. Romanos, cortesãs e gladiadores. — Nós éramos os gladiadores? — Exactamente. — Corremos? — Vamos a isso. Fomos através dos campos. Eram cerca de oito quilómetros. Mas fomos parar muito para a direita e tivemos de andar um pouco para trás. Mesmo assim, tivemos tempo de tomar banho antes do almoço. V Bati à porta de Olaf. — Se te conheço, entra — ouvi-o responder. Estava nu no meio do quarto e empunhava um spray com um fluido amarelo pálido que, depois de esguichado, formava imediatamente uma massa fofa. — Roupa interior líquida? — perguntei. — Suportas isso? — Não trouxe uma camisa para mudar — murmurou. — Não gostas? — Não, E tu? — A minha camisa rasgou-se. Ao ver a minha expressão de surpresa acrescentou, com uma careta: — O tipo que se riu. Não disse mais nada. Ele vestiu as suas velhas calças — lembrava-me delas do Prometheus — e descemos. Só estavam postos três pratos e não se encontrava ninguém na sala. — Somos quatro — disse eu ao robot branco. — Não, senhor. O Sr. Marger partiu. A senhora, o senhor e o Sr. Staave são três. Posso servir ou esperam pela senhora? — Esperamos — respondeu Olaf, despreocupadamente. Era um indivíduo fantástico. Nesse momento entrou a rapariga. Vestia a mesma saia do dia anterior e tinha o cabelo um pouco húmido, como se tivesse vindo da água. Apresentei-lhe Olaf, que se mostrou calmo e digno. Eu nunca conseguira mostrar-me assim. Conversámos um pouco. Ela disse que o marido tinha de se ausentar três dias todas as semanas, por causa do seu trabalho, e que a água da piscina não estava tão quente quanto deveria, apesar do sol. Mas a conversa esmoreceu depressa e, por mais que pensasse, não me ocorreu nada para dizer. Comi em silêncio, com os perfis fortemente contrastantes dos dois à minha frente. Reparei que Olaf a estudava, mas só quando eu lhe falava e ela olhava na minha direcção. O rosto do meu amigo estava completamente inexpressivo. Como se pensasse noutra coisa. Cerca do fim da refeição o robot branco aproximou-se e disse que a água da piscina seria aquecida para o entardecer, de acordo com os desejos da Sra. Marger. Esta agradeceu-lhe e foi para o seu quarto. Ficámos os dois sós. Olaf olhou para mim e eu voltei a corár tremendamente. — Como se explica — disse, levando aos lábios o cigarro que eu lhe dera — que um tipo que entrou naquele imundo buraco em Kereneia, um velho cão do espaço — ou melhor, um velho rinoceronte, de 150 anos —, como se explica que comece agora…? — Por favor — murmurei —, se queres realmente saber, eu entraria lá outra vez… Não acabei. — Está bem, eu paro. Palavra de honra. Mas, Hal, tenho de dizer o seguinte: compreendo-te. E aposto que nem sabes porquê… Inclinei a cabeça na direcção que ela tomara. — Porquê ela? — Sim, porquê? Sabes? — Não. E tu também não. — Sei, sim. Queres que te diga? — Quero. Mas sem as tuas brincadeiras. — Endoideceste, realmente! — exclamou Olaf. — É muito simples. Mas sempre tiveste o defeito de não ver o que estava debaixo do teu nariz e sim apenas o que estava muito longe, como aqueles Cantor, Corbasileuses… — Não sejas vaidoso. — O estilo é bombástico, bem sei, mas o nosso desenvolvimento foi interrompido quando nos puseram aqueles 680 parafusos… — Continua. — Ela é exactamente como uma rapariga do nosso tempo. Não tem 124 aquela idiotice vermelha no nariz, nem aqueles pratos nas orelhas, nem algodão brilhante na cabeça. Não escorre dourados, é uma rapariga que podias ter conhecido em Ceberio ou Apprenous. Lembro-me de algumas exactamente como ela. É só isso. — Macacos me mordam! — exclamei, em voz baixa. — Sim… Sim, mas há uma diferença. — Qual? — Já te disse, logo no princípio. Nunca me comportei assim. E, para ser absolutamente franco, nunca me imaginei… Pensei que pertencia ao tipo tranquilo. — Foi realmente uma pena não te ter fotografado quando saíste daquele buraco em Kereneia. Assim-poderias ver o tipo tranquilo que és… Homem, eu pensei que tu… Mas não interessa! — Para o inferno com Kereneia, as suas cavernas e tudo o mais. Sabes, Olaf, antes de vir para aqui fui a um médico. Chama-se Juffon e é um indivíduo muito simpático. Tem mais de oitenta anos, mas… — É esse o nosso destino, agora — observou Olaf, calmamente, a exalar o fumo e a vê-lo alastrar por cima de um ramo de flores de tom púrpuraclaro, que pareciam jacintos. — Sentimo-nos mais à vontade entre os velhos, muito velhos. Com gra-a-andes barbas. Quando penso nisso tenho vontade de gritar. Uma sugestão: compremos uma capoeira de galinhas, para lhes podermos torcer o pescoço. — Basta de palhaçada. Q médico disse-me uma quantidade de coisas sensatas. Que não temos família nem amigos da nossa geração, o que deixa apenas as mulheres, mas que hoje em dia é mais difícil arranjar uma mulher do que muitas. E tinha razão. Vejo-o agora. — Hal. sei que és muito mais esperto do que eu. Sempre gostaste do novo, do sem precedentes. Tinha de ser sempre tudo muito difícil, qualquer coisa que não conseguias resolver à primeira, qualquer coisa que não obtinhas sem rebentar três vezes uma tripa. Se não fosse assim não impressionava a tua fantasia. Não olhes para mim dessa maneira. Sabes que não tenho medo de ti. — Graças ao Senhor. Isso seria o cúmulo. — E portanto… que ia eu dizer? Ah! Ao princípio pensei que querias estar sozinho e que devoravas os livros por desejares ser algo mais do que um piloto e o tipo que fazia a máquina trabalhar. Esperei que começasses a dar-te ares. E devo dizer que quando deixaste o Normers e o Venturi de boca aberta com aquelas tuas observações e, todo inocência, participaste naquelas discussões oh-tão-elevadas, enfim, pensei que tinhas começado. Mas depois houve aquela explosão, lembras-te. — Aquela à noite. — Essa mesmo. E Kereneia, e Arcturus, e aquela lua… Meu amigo, às vezes ainda vejo aquela lua em sonhos e uma vez até caí da cama abaixo por causa dela. Oh, aquela lua! Sim, mas o que… Como vês, a minha memória falha, estou sempre a esquecer-me de coisas… Mas depois aconteceu aquilo e percebi que a tua intenção não era seres superior. Era simplesmente daquilo que gostavas e não podias ser diferente. Lembras-te como pediste ao Venturi o seu exemplar pessoal daquele livro, do vermelho? Que era? — A Topologia do Hiperspaço. — Isso. E ele disse: «É muito difícil para ti, Bregg. Faltam-te bases…» Ri-me, porque ele imitou o Venturi perfeitamente. — Ele tinha razão, Olaf. Era demasiado difícil. — Sim, nessa altura, mas com o tempo conseguiste percebê-lo, não conseguiste? — Consegui. Mas… sem qualquer real satisfação. Sabes porquê. O Venturi coitado… — Nem mais uma palavra. Resta saber quem deveria lamentar quem, à luz de acontecimentos subsequentes. — Ele agora não pode lamentar ninguém. Tu estavas na coberta superior, na altura? — Eu? Na coberta superior? Estava mesmo ao teu lado! — É verdade. Se ele não tem apostado tudo no sistema de arrefecimento ter-se-ia safado com algumas queimaduras. Como o Ame. Mas tinha de perder a cabeça… — Deveras! Palavra, és incrível! De qualquer modo, o Ame morreu. — Sim, mas cinco anos depois. Cinco anos são cinco anos. — Anos como aqueles? — Agora estás a falar dessa maneira, mas antes, junto da água, quando eu comecei, atiraste-te a mim. — Foi insuportável, sem dúvida, mas também foi magnífico. Tens de o admitir. Diz-me… Mas não precisas de falar. Quando saíste daquele buraco em Ke… — Basta, quanto a esse maldito buraco! — Foi só então que compreendi o que te fazia mexer. Ainda nos não conhecíamos muito bem. Quando o Gimma me disse, um mês depois, que o Arder voaria contigo, pensei… bem, não sei! Fui ter com ele, mas não disse nada. Ele percebeu logo, claro. «Olaf», disse-me, «não estejas zangado. És o meu melhor amigo, mas eu vou voar com ele desta vez, e não contigo, porque…» Sabes o que ele disse? — Não — respondi, com um nó na garganta. — «Porque foi o único que desceu. Só ele. Ninguém acreditava que fosse possível aterrar lá. Nem ele acreditava.» Acreditavas que voltariam? Fiquei calado. — Estás a ver, meu pulha? «Ou ele regressa comigo», disse o Arder, «ou nenhum de nós regressa…» — E eu regressei sem ele — comentei. — E tu regressaste sem ele. Não te reconheci, fiquei horrorizado. Estava cá em baixo, nas bombas. — Eras então tu? — Era. Vi… um desconhecido. Um desconhecido completo. Pensei que estava com alucinações. Até o teu fato, todo encamado… — Isso era ferrugem. Tinha-me rebentado um tubo. — És tu que mo dizes? Fui eu que consertei esse tubo, mais tarde. O teu aspecto… Mas a discussão, depois… — Aquela história com o Gimma? — Sim. Não está nos registos oficiais e eles também a tiraram da fita gravada, na semana seguinte. Creio que foi o próprio Gimma. Na altura, julguei que o matasses. Jesus! — Não fales disso — pedi, consciente de que desataria a tremer de um momento para o outro. — Não fales, Olaf, por favor. — Nada de histerismos. O Arder era mais chegado a mim do que a ti. — Mais chegado, menos chegado, que diferença faz? És um cabeçudo. Se o Gimma lhe tivesse dado uma reserva, o Arder estaria agora aqui sentado connosco! O Gimma guardava tudo. Tinha medo de que se lhe acabassem os transistores, mas acabarem-se-lhe os homens não o preocupava! Eu… Fiz uma pausa. — Olaf, isto é uma loucura! Esqueçamos. — Aparentemente, Hal, não podemos esquecer. Pelo menos enquanto estivermos juntos. Depois disso, o Gimma nunca mais… — O Gimma que vá para o inferno! Fim, Olaf! Ponto final. Não quero ouvir nem mais uma palavra! — Também estou proibido de falar a meu respeito? Encolhi os ombros. O robot branco veio para limpar a mesa, mas limitou-se a olhar do vestíbulo e a ir-se embora. As nossas vozes altas devem tê-lo assustado. — Diz-me uma coisa Hal: que te atormenta, ao certo? — Não finjas. — Não estou a fingir, palavra. — Como podes perguntar? No fim de contas, foi por minha causa… — Por tua causa o quê? — O caso do Arder. — O quê?! — Claro. Se, eu tivesse insistido desde o prindpio, antes de partirmos, o Gimma teria dado… — Deixa-te agora disso! Como poderias adivinhar que seria o rádio dele que falharia? Poderia ter sido outra coisa qualquer. — Poderia, poderia… Mas foi o rádio. — Espera! Queres dizer que andaste seis anos com isso dentro de ti sem dizeres uma palavra? — Que havia eu de dizer? Pareceu-me que era óbvio, não achas? — Óbvio! Deus! Que estás a dizer, homem? Recupera a razão! Se tivesses dito isso, qualquer de nós te teria julgado doido. E quando o feixe do Ennesson se desfocalizou, também foi por culpa tua? Foi? — Não. Ele… Isso pode acontecer. — Bem sei. Não te preocupes, sei tanto como tu. Hal, não terei descanso enquanto me não disseres… — Que queres agora? — Estás a a imaginar coisas. É um disparate completo. O próprio Arder to diria, se estivesse aqui. — Obrigado. — Hal, estou com vontade de… — Lembra-te que sou mais pesado. — Mas eu estou mais zangado, compreendes? Idiota! — Não grites, Olaf. Não estamos aqui sozinhos. — Está bem, está bem. Foi disparate ou não foi? — Não. Olaf inspirou até ficar com as narinas brancas. — Não foi, porquê? — perguntou, quase bem disposto. — Porque, já antes disso, eu notara a sovinice do Gimma. Era meu dever prever o que podia acontecer e confrontar imediatamente o Gimma… e não quando regressei com o obituário do Arder. Não se trata, por isso, de disparate nenhum. — Compreendo. Sim. Foste mole de mais… Não! Eu… Hal! Não posso. Vou-me embora. Levantou-se bruscamente da mesa e eu fiz o mesmo. — Endoideceste? — perguntei. — Vai-se embora! Só porque… — Sim, sim! Sou obrigado a escutar as tuas fantasias? Não, obrigado. O Arder não respondeu? — Deixa lá isso. — Ele não respondeu, pois não? — Não, não respondeu. — Poderia ter tido um acidente coronário? Não respondi. — Poderia ter tido qualquer de mil outras espécies de acidentes? Ou poderia ter entrado numa faixa de eco? Teria desligado o seu sinal quando perdeu contacto na turbulência? Ou ter-se-iam os seus emissores desmagnetizado acima de uma mancha solar e…? — Basta. — Não admites que tenho razão? Devias envergonhar-te de ti mesmo. — Eu não disse nada. — É verdade. Podia ter acontecido alguma das coisas que eu disse? — Podia. — Então porque insistes que foi o rádio, o rádio e nada mais do que o rádio? — Talvez tenhas razão. — Sentia-me terrivelmente cansado e já tanto me fazia, de uma maneira ou de outra. — Talvez tenhas razão — repeti. — O rádio… era simplesmente a coisa mais provável… Não, não digas mais nada. Já falámos nada do assunto dez vezes mais do que era necessário. Olaf aproximou-se de mim. — Bregg, pobre velho soldado! Tens demasiado bem em ti, sabias? — Oue bem? — Uma noção de responsabilidade. Deve haver moderação em tudo, Que tencionas fazer? — A que respeito? — Tu sabes. — Não faço ideia. — É mau. não é? — Não podia ser pior. — E se partisses comigo? Ou fosses para qualquer outro lado… sozinho? Se quiseres, posso ajudar-te a arranjar isso. Posso levar as tuas coisas, ou podes deixá-las. ou… — Achas que devo fugir. — Não acho nada. Mas ao ver-te perder o domínio de ti próprio — só um bocadinho — como há momentos, então… — ntão o quê? — Então comecei a pensar… — Não me quero ir embora. Sabes que mais? Não sairei daqui. E se… — Ouê? — Não tem importância. Que disse aquele robot da estação de serviço? Quando estará o carro pronto? Amanhã ou hoje? Esqueci-me. — Amanhã de manhã. — Óptimo. Olha. está a escurecer. Passámos a tarde toda a tagarelar. — Deus nos livre de semelhantes tagarelices! — Estava a brincar. Vamos dar um mergulho? — Não. Apetece-me ler. Podes emprestar-me alguma coisa? — Leva o que quiseres. Sabes manejar aqueles grãos dê vidro? — Sei, Espero que não tenhas aquela… aquela engenhoca que lê com a voz açucarada? — Não, Tenho apenas um opton. — Óptimo, sirvo-me disso. Tu vais para a piscina? — Vou. Mas primeiro subo contigo, pois tenho de mudar de roupa. Dei-lhe alguns livros, principalmente de História, e uma coisa sobre a estabilização da dinâmica populacional, pois isso interessava-lhe. E outra sobre biologia, com um longo artigo sobre a betrização. Quanto a mim. comecei a mudar de roupa, mas não consegui encontrar os calções de banho. Tinha-os perdido em qualquer lado. Náo havia sinal deles. Vesti os calções pretos do Olaf. enfiei o roupão e saí. O Sol já se pusera. De ocidente avançava um castelo de nuvens que extinguia a parte mais luminosa do céu. Atirei o roupão para a areia, que já arrefecera def)ois do calor do dia. Sentei-me. com os dedos dos pés metidos dentro de água. A conversa perturbara-me mais do que desejaria admitir. A morte de Arder estava gravada em mim como um espinho. Olaf podia ter razão. Talvez fosse apenas a exigência de uma recordação que nunca se reconciliaria… Levantei-me e mergulhei, sem prancha, de cabeça para baixo. A água estava tépida. Preparava-me para a encontrar fria e fora apanhado de surpresa. Vim ã superfície. Quente de mais, era como nadar em sopa. LBFC66-9 129 Acabara de sair do lado oposto, deixando marcas húmidas e escuras no corrimão, quando qualquer coisa me trespassou o coração. A história de Arder levara-me para um mundo diferente, mas agora, possivelmente porque a água estava tépida — porque devia estar tépida — lembrei-me da rapariga e foi como se me tivesse recordado de algo horrível, de um infortúnio que não podia vencer, mas que tinha de vencer. E talvez se tratasse apenas da minha imaginação. Estudei a ideia, hesitante, encolhido no crepúsculo crescente. Quase não via o meu próprio corpo, o bronzeado escondia-me no escuro. Entretanto, as nuvens tinham enchido o céu e inesperadamente, demasiado cedo, era noite. Vinda de casa, aproximava-se uma coisa branca. A touca de banho dela. O pânico apoderou-se de mim. Levantei-me, devagar. A minha intenção era apenas fugir, ir-me embora, mas ela viu-me recortado no céu. — Sr. Bregg? — perguntou, em voz baixa. — Sou eu. Ouer nadar? Eu estou a atrapalhar. Vou-me embora… — Porquê? Não me incomoda nada. A água está morna? — Está. Morna de mais para o meu gosto. Ela dirigiu-se para a beira da piscina e mergulhou com leveza. Via-lhe apenas a silhueta. O seu fato de banho era escuro. Um splash. Veio à superfície perto dos meus pés. — Terrível! — exclamou, a cuspir água. — Que fez ele? É preciso deitar alguma água fria. Sabe como se faz? — Não. Mas vou já descobrir isso. Mergulhei por cima da cabeça dela. Nadei para baixo, até tocar no fundo, e comecei a nadar à volta e a tocar de vez em quando no cimento. Debaixo de água, como geralmente acontece, estava um pouco mais claro do que cá fora e, por isso, consegui localizar os canos de entrada de água. Ficavam na parede oposta à casa. Nadei para a superfície um pouco falto de fôlego, pois estivera um bocado submerso. — Bregg! — ouvi-a chamar. — Estou aqui. Aconteceu alguma coisa? — Assustei-me… — respondeu, mais serena. — Com quê? — Desapareceu durante tanto tempo… — Já sei onde é. Resolve-se o assunto num instante! Corri para casa. Podia ter evitado o heróico mergulho: as torneiras estavam bem à vista, numa coluna perto da varanda. Abri a da água fria e voltei para a piscina. — Já está. Terá de esperar um bocadinho. — Pois sim. Ela estava debaixo da prancha e eu do lado menos fundo da piscina, como se receasse aproximar-me. Depois encaminhei-me na direcção dela, devagar, como que sem intenção. Os meus olhos tinham-se habituado à escuridão. Conseguia distinguir-lhe as feições. Ela olhava para a água. Estava muito bonita na sua touca branca e, sem roupa, parecia mais alta. Parei como um poste ao lado dela. A situação tomou-se constrangedora. Talvez tenha sido por isso que me sentei, de repente. «Estúpido!», chamei a mim mesmo; mas não conseguia lembrar-me de nada para dizer. As nuvens adensavam-se, escurecia mais, mas não parecia que fosse chover. Estava fresco. — Tem frio? — Não. Sr. Bregg… — Diga. — A água não [Darece estar a subir… — Eu abri a descarga. Mas já deve bastar. Vou fechá-la. Quando regressava da casa, lembrei-me de que podia chamar Olaf. Quase ri alto. Era tão estúpido! Estava com medo dela. Mergulhei e voltei à superfície. — Pronto… a não ser que eu tenha exagerado… Se assim for diga-me e eu deixo entrar alguma água quente. A água estava visivelmente mais baixa, porque a descarga ainda estava aberta. A rapariga — via-lhe a sombra esbelta contra as nuvens — parecia hesitar. Talvez já não quisesse tomar banho, talvez se fosse embora. A ideia acudiu-me de repente e senti uma espécie de alívio. Nesse momento ela saltou, de pés para a frente, e soltou um pequeno grito, pois a água estava baixa, agora, e eu não tivera tempo de a avisar. Devia ter batido no fundo com força. Cambaleou, mas não caiu. Atirei-me na direcção dela. — Magoou-se? — Não. — A culpa é minha. Sou um idiota. Estávamos parados, com água até à cintura. Ela começou a nadar. Eu saí da piscina, fui a correr fechar a descarga e regressei. Não a vi em lado nenhum. Entrei na água e nadei a todo o comprimento da piscina. Depois virei-me de costas e vi a superfície vítrea-escura delicadamente ondulada da água. Deixei-me subir devagar, comecei a nadar e vi-a. Estava de pé do mesmo lado da piscina. Nadei para ela. A prancha ficava do outro lado; ali a água era baixa e fiquei imediatamente com pé. A água que eu afastava enquanto caminhava, abria-se ruidosamente. Vi a cara dela, a olhar para mim. Não sei se foi o balanço dos meus últimos passoa — pois se é difícil andar na água também não é fácil parar subitamente — ou qualquer outra coisa, mas encontrei-me de repente ao lado dela. Talvez não tivesse acontecido nada se ela se tivesse afastado, mas ficou onde estava, com a mão no primeiro degrau da escada, e eu estava demasiado perto para falar, para procurar refúgio numa conversa… Apertei-a com força. Estava fria, escorregadia, como um peixe ou uma estranha criatura de outro mundo, e de súbito nesse contacto tão frio e sem vida — pois ela não se mexeu — encontrei um lugar quente, a sua boca, e beijei-a, beijei-a, beijei-a… Foi uma perfeita loucura. Ela não se defendeu, não resistiu, foi como se estivesse morta. Segurei-lhe os braços, levantei-lhe a cara, quis vê-la, olhá-la nos olhos, mas já estava muito escuro e tive de imaginá-los. Ela não tremia. Havia apenas uma palpitação — do meu coração ou do dela, não sei. Ficámos assim até que, vagarosamente, começou a libertar-se dos meus braços. Larguei-a imediatamente. Ela subiu a escada. Segui-a e de novo a abracei, de lado. Tremeu. Agora tremia. Quis dizer qualquer coisa, mas a voz fugira-me. Limitei-me a apertá-la, a comprimi-la contra mim, e ela libertou-se outra vez — sem me empurrar, quase como se eu ali não estivesse. Deixei pender os braços. Ela afastou-se. Pela luz que vinha do meu quarto via-a pegar no roupão e, sem o vestir, começar a subir a escada. Havia luzes acesas à porta e no vestíbulo. Brilhavam-lhe gotas de água nos ombros e nas coxas. A porta fechou-se. Ela desapareceu. Tive, durante um segundo, vontade de me atirar à água e não voltar à superfície. Sério. Era a primeira vez que me passava semelhante coisa pela cabeça. Pelo que me fazia as vezes de cabeça. Fora tudo tão insensato, tão impossível, e o pior é que eu não sabia o que significava nem o que deveria fazer a seguir. E porque tinha ela sido asim… tão…? Ter-se-ia sentido dominada pelo medo? Teria então de ser sempre medo, nada mais do que medo? Fora qualquer outra coisa. Mas o quê? Como poderia descobri-lo? Olaf. Mas seria eu um garoto de 15 anos, que beijava uma rapariga e tinha de ir a correr pedir conselhos? Sim, pensei, iria. Encaminhei-me para casa, peguei no roupão e sacudi-Ihe a areia. O vestíbulo estava brilhantemente iluminado. Aproximei-me da porta dela. Talvez me deixasse entrar… Se me deixasse entrar, eu deixaria de me importar com ela. Talvez. E talvez isso fosse o fim de tudo. Ou talvez me desse uma bofetada na cara. Não. Eles eram bons, eram betrizados, não podiam fazer isso. Ela dar-me-ia um copo de leite que me faria muito bem. Devo ter estado ali parado cinco minutos — e recordei as cavernas de Kereneia, o famoso buraco de que Olaf falara. Esse maravilhoso buraco! Provavelmente um antigo vulcão. Arder ficara entalado entre uns pedregulhos e não pudera sair e a lava estava a subir. Não era realmente lava. Venturi dissera que era uma espécie de géiser — mas isso tinha sido mais tarde. Arder… Ouvimos a sua voz. Pelo rádio. Eu desci e soltei-o. Meu Deus! Teria preferido isso dez vezes àquela porta. Não se ouvia o mínimo som. Nada. Se ao menos a porta tivesse um puxador! Mas em vez disso tinha uma placa. Não havia nada semelhante na minha, no andar de cima. Não sabia se funcionava como uma fechadura, ou se deveria premi-la. Continuava a ser o selvagem de Kereneia. Levantei a mão e hesitei. E se a porta não se abrisse? Imaginei a minha retirada: teria assunto para pensar durante muito tempo. Achei que quanto mais tempo ali permanecese, menos força teria, como se tudo estivesse a esvair-se de mim. Toquei na placa. Não cedeu. Toquei com mais força. — É o Sr. Bregg? — ouvi a voz dela perguntar; devia estar parada do outro lado da porta. — Sou. Silêncio. Meio minuto. Um minuto. A porta abriu-se. Ela parou no limiar. Vestia um roupão fofo. O cabelo 132 caía-lhe para a gola. Por incrível que pareça, só naquele momento reparei que era castanho. A porta só entreaberta. Agarrada por ela. Quando avancei, recuou. Por si só. sem um som, a porta fechou-se atrás de mim. E. de súbito, via a cena. Ela observava-me imóvel, pálida, a segurar as abas do roupão, e eu estava defronte dela, a pingar, apenas com os calções pretos de Olaf vestidos e com o roupão de banho sujo de areia na mão, de boca aberta… Semelhante pensamento fez-me sorrir. Sacudi o roupão, vesti-o, atei-o, sentei-me. Vi duas marcas húmidas onde antes estivera parado. Mas não tinha absolutamente nada que dizer. Que poderia dizer? Subitamente, como uma inspiração, soube o que havia de dizer. — Sabe quem eu sou? — Sei. — Ah, sabe? Isso é bom. Soube pela agência de viagens? — Não. — Não tem importância. Sou… selvagem, sabe? — Sim? — Sim. Terrivelmente selvagem. Como se chama? — Não sabe? — O seu primeiro nome. — Eri. — Vou levá-la comigo. — O quê? — Isso mesmo, vou levá-la comigo. Não quer? — Não. — Não importa. Levo-a. Sabe porquê? — Calculo. — Não pode calcular. Nem eu calculo. Ficou calada. — Não posso fazer nada — continuei. — Aconteceu assim que a vi. Anteontem. À mesa. Sabia? — Sabia. — Mas talvez pense que estou a brincar? — Não. — Como pôde…? Mas não interessa. Tentará fugir? Ficou calada. — Não tente — pedi. — Seria inútil, bem sabe. Não a deixaria em paz. Mas gostaria de deixar, acredita? Ficou calada. — Compreende, não é apenas por eu não ser betrizado. Nada me importa, sabe? Nada. Excepto você. Tenho de a ver. Tenho de a olhar. Tenho de ouvir a sua voz. Tenho de fazer isso e nada mais me interessa. Não sei o que será de nós. Acabará mal, suponho. Mas não me importo. Porque há agora qualquer coisa que vale a pena. Porque falo e você escuta. Compreende? Não. Como poderia compreender? Puseram todos ponto final no drama, a fim de viverem calmamente. Eu não posso. Não preciso disso. Continuou calada e eu respirei fundo. — Escute, Eri… mas sente-se. Não se mexeu. — Por favor, sente-se. Nada. — Não lhe fará mal nenhum sentar-se. De súbito, compreendi. Cerrei os dentes. — Se não quer, porque me deixou entrar? Nada. Levantei-me e agarrei-lhe nos ombros. Não resistiu. Sentei-a numa poltrona e cheguei a minha para mais perto, de modo que os nossos joelhos quase se tocaram. — Pode fazer o que quiser, mas escute-me. Não tenhg a culpa disto. E você com certeza também não. Ninguém tem. Eu não queria que acontecesse. Mas as coisas são assim. Trata-se, compreende, de um começo. Sei que me estou a comportar como um louco. Sei isso. Mas dir-Ihe-ei porquê. Não fala comigo? — Depende. — Por esse pouco, obrigado. Sim, eu sei. Não tenho direito nenhum, etc. Bem, mas o que eu queria dizer… Há milhões de anos houve aqueles grandes lagartos, brontossauros, atlantossauros… Talvez tenha ouvido falar deles? — Ouvi. — Eram gigantes, do tamanho de uma casa. Tinham uma cauda excepcionalmente grande, com três vezes o tamanho do corpo. Consequentemente, era-lhes impossível moverem-se do modo que devem ter desejado: leve e graciosamente. Eu também tenho uma cauda dessas. Durante dez anos, por razões desconhecidas, andei a meter o nariz entre as estrelas. Talvez não tivesse sido necessário. Mas deixemos isso. Não posso desfazer o que está feito. Essa é a minha cauda. Compreende? Não posso proceder como se nunca tivesse acontecido. Não imagino que esteja entusiasmada com isso, com o que lhe disse, com o que lhe estou a dizer e com o que ainda me falta dizer. Mas não o posso evitar. Preciso de a ter, de a ter durante o máximo tempo possível, a verdade é essa. Diz alguma coisa? Olhou para mim. Pareceu-me que se tomou ainda mais pálida, mas talvez fosse da luz. Estava encolhida no roupão fofo, como se tivesse frio. Quis perguntar-lhe se tinha frio, mas estava outra vez de língua atada. Eu… eu não tinha frio. — Que… faria… no meu lugar? — Muito bem! — exclamei, encorajadoramente. — Imagino que lutaria. — Eu não posso. — Bem sei. Julga que isso toma as coisas mais fáceis para mim? Juro-lhe que não torna. Quer que me vá já embora ou posso dizer mais alguma cc>isa? Porque está a olhar para mim dessa maneira? Já deve saber, com certeza, que faria tudo por si. Por favor, não olhe para mim dessa maneira. As coisas que eu digo não significam o mesmo do que quando são ditas por outras pessoas. E sabe que mais? Estava com uma falta de ar terrível, como se estivesse a correr havia muito tempo. Segurava-lhe ambas as mãos — segurava-lhas não sei havia quanto tempo, talvez desde o princípio. Não sabia. Eram muito pequenas. — Eri, nunca senti o que sinto agora. Neste momento. Pense. Aquele vazio terrível, no espaço. Indescritível. Eu não acreditava que regressaria. Ninguém acreditava. Costumávamos falar no regresso, mas só por falar, sem esperança. O Tom Arder, o Ame e o Venturi ainda lá estão e agora são como pedras, como pedras geladas na escuridão. Eu também lá devia ter ficado, mas se estou aqui e lhe seguro as mãos, se posso falar-lhe e você me escuta, então talvez não tenha sido assim tão mau. Tão ignóbil. Talvez não seja, Eri. Só lhe peço que não olhe para mim dessa maneira. Suplico-lhe. Dê-me uma oportunidade. Não pense que isto é… meramente amor. Não pense isso. É mais. Mais. Não me acredita… Nao me acredita porquê? Estou a dizer-lhe a verdade. Mas não acredita, pois não? Ficou calada. Tinha as mãos como gelo. — Não pode, não é? É impossível. Sim, eu sei que é impossível. Soube desde o princípio, desde o primeiro momento. Não tenho nada que estar aqui. Devia haver um espaço vazio, aqui. O meu lugar é lá. Não tenho culpa de ter voltado. Sim. Não sei porque lhe estou a dizer tudo isto. Isto não exite. Não existe, pois não? Se lhe não diz respeito, então não interessa. Nada do que disse. Pensou que eu podia fazer consigo o que me apetecesse? Não é isso que eu quero, não compreende? Você não é uma estrela… Silêncio. Toda a casa estava silenciosa. Baixei a cabeça para as suas mãos, que jaziam inertes nas minhas, e comecei a falar-lhes. — Eri. Eri. Agora sabe que não precisa de ter medo, não sabe? Que nada a ameaça. Mas isto é… tão grande. Eri. Eu não sabia… juro-lhe. Porque voa o homem para as estrelas? Não consigo compreender. Porque isto é aqui. Mas talvez seja desnecessário ir lá primeiro, para compreender. Sim, é possível. Agora vou. Vou-me embora. Esqueça tudo. Esquece? Acenou com a cabeça. — Não dirá a ninguém? Abanou a cabeça. — De verdade? — De verdade. Foi um sussurro. — Obrigado. Saí. Escadas. Uma parede cor de creme; outra, verde. A porta do meu quarto. Escancarei a janela e aspirei com força. Como o ar era bom. Desde o momento em que a deixara estava completamente calmo. Até sorri — mas não com a boca, não com o rosto. O meu sorriso era interior, compassivo, era um sorriso da minha própria estupidez, de não ter sabido uma coisa tão simples. Procurei no conteúdo da mala os objectos de desporto. Entre as cordas? Não. Entre os diversos embrulhos, seria? Não, um momento… Encontrara. Endireitei-me e, de súbito, senti-me embaraçado. As luzes. Assim não podia. Virei-me para as apagar e encontrei Olaf parado à porta. Estava vestido. Não se tinha deitado? — Que estás a fazer? — Nada. — Nada? Que tens aí? Não escondas! — Não é nada. — Mostra-me. — Não. Vai-te embora. — Mostra-me! — Não! — Eu sabia. Meu sacana! Eu não esperava o murro. A minha mão abriu-se, deixou-o cair no chão e depois lutámos. Imobilizei Olaf debaixo de mim, ele desalojou-me, a secretária voltou-se e o candeeeiro bateu na parede com um estrondo que abalou a casa toda. Tinha-o dominado. Não podia safar-se por muito que se debatesse… Ouvi um grito, um grito dela, larguei-o e saltei para trás. Ela estava parada à porta. Olaf ergueu-se de joelhos. — Ele queria matar-se. Por sua causa! — gritou, rouco, a agarrar a garganta. Virei o rosto e encostei-me à parede, com as pernas a tremer. Estava tão envergonhado, tão horrivelmente envergonhado… Ela olhou-nos, primeiro a um e depois ao outro. Olaf continuava a segurar a garganta. — Vão, os dois — disse eu, serenamente. — Terás de acabar primeiro comigo. — Por piedade. — Não. — Vá, por favor — disse ela a Olaf. Eu fiquei mudo, de boca aberta. Olaf olhou-a, aparvalhado. — Rapariga, ele… Ela abanou a cabeça. Sem afastar os olhos de nós, Olaf saiu do quarto. Ela olhou para mim. — É verdade? — perguntou. — Eri… — Tem de ser? Acenei afirmativamente. E ela abanou a cabeça. — Quer dizer…? — perguntei, e repeti, tartamudeante: — Quer dizer…? Ficou calada. Aproximei-me dela e vi que estava encolhida, que as suas mãos tremiam agarradas à aba solta do fofo roupão. — Porquê? Por que tem tanto medo? Abanou a cabeça. — Não? — Não. — Mas está a tremer. 136 — Não é nada. — E… partirá comigo? Acenou duas vezes com a cabeça, como uma criança. Abracei-a o mais delicadamente que pude. Como se ela fosse de vidro. — Não tenha medo — murmurei. — Olhe… As minhas próprias màos tremiam. Por que nào tinham tremido então, quando me tomara lentamente grisalho à espera de Arder? Que reservas, que íntimos recessos, atingira finalmente, a fim de tomar consciência do que valia? — Sente-se — disse. — Ainda está a tremer? Não, espere. Deitei-a na minha cama e tapei-a até ao pescoço. — Melhor? Acenou afirmativamente. Seria muda apenas comigo ou era assim mesmo? — Diga-me qualquer coisa — pedi. num murmúrio. — O quê? — Fale-me a seu respeito. Quem é. O que faz. O que deseja. Não… o que desejava antes de eu lhe cair em cima como uma avalanche. Encolheu ligeiramente os ombros, como se dissesse: «Não há nada a dizer.» — Não quer falar? Porquê? — Não é importante — respondeu, e foi de tal maneira como se me batesse com aquelas palavras que recuei. — Quer dizer… Eri… quer dizer… — gaguejei. Mas agora compreendia. Compreendia perfeitamente. Levantei-me de um pulo e comecei a andar de um lado para o outro. — Dessa maneira, não. Dessa maneira não posso. Não eu… Fiquei de boca aberta. Mais uma vez. Porque ela sorria. O sorriso era tão ténue que mal se notava. — Eri. que…? — Ele tem razão. — Quem? — Aquele homem, o seu amigo. — Tem razão a respeito de qué? Era-lhe difícil dizê-lo. Desviou o olhar. — Que não é sensato. — Como sabe que ele disse isso? — Quvi-o. — A nossa conversa? Depois do jantar? Acenou com a cabeça e corou. Até as suas orelhas ficaram rosadas. — Não pude deixar de ouvir. Vocês falavam muitíssimo alto. Teria saído. mas… Compreendi. A porta do seu quarto ficava no corredor. Que grande idiota eu fora! Fiquei atordoado. — Ouviu tudo? Acenou afirmativamente. — E sabia que era a seu respeito? — Mmm… — Mas como? Eu nunca mencionei… — Já sabia, antes disso. — Como? — Não sei. Sabia. Quero dizer, ao prinrípio julguei que estava a imaginar. — E quando, mais tarde? — Não sei… Durante o dia. Senti-o. — Teve medo? — perguntei, cabisbaixo. — Não. — Não? Porquê? Voltou a sorrir tenuemente. — É exactamente, exactamente como… — Como o quê? — Como num conto de encantar. Eu não sabia que se podia ser dessa maneira… e se não tivesse sido o faco de… você sabe… teria pensado que era um sonho. — Não é, garanto-lhe. — Oh, eu sei! Só disse que era dessa maneira. Sabe o que quero dizer? — Não sei, exactamente. Parece que sou um obtuso, Eri. Sim, o Olaf tem razão. Sou um asno. Um asno chapado. Por isso, fale claramente sim? — Está bem. Pensa que é assustador, mas não é nada. Só… Calou-se, como se não conseguisse encontrar as palavras. Eu estivera a escutá-la boquiaberto. — Eri, minha criança, eu… eu não pensava que fosse assustador. Não pensava. Que disparate. Foi só quando cheguei e ouvi, e aprendi várias coisas… Mas basta. Já disse o suficiente. Já falei de mais. Nunca na minha vida fui tão falador. Fale, Eri, fale. — Sentei-me na cama. — Não tenho nada que dizer, realmente. A não ser… não sei… — Não sabe o quê? — Oue vai acontecer? Debrucei-me para ela. Fitou-me nos olhos. As suas pálpebras não estremeceram. Os nossos hálitos misturaram-se. — Por que me deixou beijá-la? — Não sei. Toquei-lhe na face com os lábios. No pescoço. Deitei a cabeça no seu ombro. Nunca me sentira assim. Nem soubera que me poderia sentir. Apetecia-me chorar. — Eri — murmurei, quase inaudivelmente. — Eri. Salve-me. Ficou imóvel. Ouvi, como que muito distante, o bater rápido do seu coração. Endireitei-me. — Podíamos… — comecei, mas não tive coragem de acabar. Levantei-me, apanhei o candeeiro, endireitei a secretária e tropecei em qualquer coisa: o canivete. Estava caído no chão. Apanhei-o e atirei-o para a mala. Virei-me para ela. — Vou apagar a luz — disse. — Está bem? Não respondeu. Toquei no interruptor. A escuridão tomou-se completa, até na janela aberta, Não eram visíveis luzes nenhumas, nem mesmo distantes. Nada. Tudo negro. Tão negro como lá. Fechei os olhos. O silêncio parecia zumbir. — Eri — murmurei. Ela não respondeu e eu senti o seu medo. Tacteei na direcção da cama. Escutei, para ouvir a sua respiração, mas o silêncio vibrante abafava tudo, como se se tivesse materializado na escuridão e agora fosse a escuridão. Devia ir-me embora, pensei. Sim, partiria imediatamente. Mas inclinei-me e, com uma espécie de clarividência, encontrei-lhe o rosto. Ela conteve a respiração. — Não — murmurei —, realmente… Toquei-lhe no cabelo. Afaguei-o com as pontas dos dedos. Ainda era estranho para mim, inesperado. Desejava tanto compreender tudo aquilo? Mas talvez não houvesse nada para compreender. Um tal silêncio… Olaf estaria a dormir? Com certeza que não. Estava a pé, a escutar. A espera. Devia ir ter com ele, então? Mas não podia. Aquilo era muito inprovável, incerto. Não podia. Não podia. Deitei a cabeça no ombro dela. Um movimento e estava a seu lado. Senti todo o seu corpo retesar-se, afastar-se. Murmurei: — Não tenha medo. — Não. — Está a tremer. — É só… Enlacei-a. O peso da sua cabeça deslizou para a curva do meu braço. Ficámos assim, lado a lado, na escuridão e no silêncio. — É tarde — murmurei. — Muito tarde. Pode dormir. Por favor, durma. Embalei-a, apenas com o lento flectir do meu braço. Ficou quieta, mas eu senti o calor do seu corpo e da sua respiração. Da sua respiração acelerada. E o seu coração batia depressa, alarmado. Pouco a pouco, devagarinho, começou a acalmar. Devia estar muito cansada. Escutei ao princípio com os olhos abertos, mas depois fechei-os. Parecia-me que ouvia melhor assim. Já estaria a dormir? Quem era ela? Porque significava tanto para mim? Fiquei deitado, naquele escuro. Entrava uma brisa pela janela e agitava as cortinas, que faziam um roçagar suave. Eu estava imóvel e cheio de espanto. Ennesson. Thomas. Venturi. Arder. Para que fora tudo? Para aquilo? Uma pitada de pó. Lá onde o vento nunca sopra. Onde não há nuvens, nem sol, nem chuva, onde não há nada, exactamente como se o nada fosse possível ou sequer imaginável. E eu estivera lá? Estivera realmente? Porquê? Já não sabia nada, dissolvia-se tudo na escuridão informe. Imobilizei-me ainda mais. Ela estremeceu. Lentamente, virou-se de lado. Mas a sua cabeça continuou no meu braço. Murmurou qualquer coisa, muito suavemente. E continuou a dormir. Esforcei-me por imaginar a cromosfera de Arcturus. Uma fervilhante vastidão acima da qual voei e tomei a voar, como se girasse num monstruoso e invisível carrocei de fogo, de olhos dilatados e inchados, a repetir numa voz morta: Sonda, zero, sete — sonda, zero, sete — sonda, zero, sete — a repeti-lo mil vezes, de tal modo que depois a simples recordação dessas palavras fazia estremecer qualquer coisa em mim, como se tivesse sido marcado com elas, como se fossem uma ferida. E a resposta era um crepitar nos auriculares e a espécie de gargalhadinha esganiçada em que o meu receptor traduzia as chamas da proeminência — e isso era Arder, o seu corpo e o seu rosto, e o foguetão, transformados em gás, incandescente… E Thomas? Thomas perdera-se e ninguém sabia que ele… E Ennesson? Nunca nos entendemos, eu não o suportava. Mas na câmara de pressão lutei com Olaf, que não queria deixar-me ir porque era demasiado tarde. Que excelentemente nobre da minha parte! Mas não se tratava de nobreza, tratava-se simplesmente de uma questão de preço. Sim, porque nenhum de nós tinha preço, a vida humana atingia o valor mais elevado onde podia não ter nenhum, onde uma película fina, praticamente inexistente, a separava da aniquilação. Aquele fio ou contacto no rádio do Arder. Aquela soldadura no reactor de Venturi que escapara à detecção de Voss — mas era possível que se tivesse aberto subitamente, isso acontecia, no fim de contas, fadiga do metal… E Venturi deixara de existir em cinco segundos, talvez. E o regresso de Thurber? E o miraculoso salvamento de Olaf, que se perdera quando a sua antena direccional se furara — quando? Como? Ninguém sabia. Olaf voltou por milagre. Sim, uma probabilidade num milhão. E eu tive sorte. Uma sorte extraordinária, impossível. O braço doía-me, com uma dor maravilhosa. «Eri», disse mentalmente, «Eri.» Como o canto de um pássaro. Que nome! O canto de um pássaro… Costumávamos pedir ao Ennesson que imitasse cantos de aves. Ele tinha jeito para isso, muito jeito, mesmo. E quando pereceu foram com ele todos esses pássaros… Mas as coisas começaram a tomar-se confusas. Mergulhei na escuridão, nadei através dela. Momentos antes de adormecer tive a impressão de que estava lá, no meu lugar, deitado no meu beliche nas profundezas do ferro, e que perto de mim estava deitado o pequeno Ame… Acordei um momento. Não. Arne não estava vivo e eu encontrava-me na Terra. A rapariga respirava serenamente. — Deus te abençoe, Eri — disse, a inalar a fragrância do seu cabelo, e adormeci. Abri os olhos sem saber onde estava nem sequer quem era. O cabelo escuro a espraiar-se através do meu braço — o braço dormente, como se fosse uma coisa estranha — surpreendeu-me. Durante uma fracção de segundo. Depois compreendi tudo. O Sol ainda não nascera; o alvorecer — branco-leite, sem vestígios de rosa, limpo e fresco — pairava nas janelas. Àquela luz precoce estudei o rosto de Eri, como se o visse pela primeira vez. Profundamente adormecida, respirava com os lábios fechados com força. Não devia sentir-se muito confortável no meu braço, pois metera uma das mãos debaixo da cabeça e de vez em quando, devagarinho, as suas pálpebras mexiam-se, como que numa surpresa contínua. O movimento era leve, mas eu observava-o atentamente, como se naquele rosto estivesse escrito o meu destino. Pensei em Olaf. Com o máximo cuidado, comecei a libertar o braço. Afinal, o cuidado não era necessário. Ela dormia profundamente, a sonhar com qualquer coisa. Parei e tentei adivinhar, não o sonho, mas apenas se era ou não mau. O seu rosto era quase infantil. O sonho não era mau. Soltei-me e levantei-me. Estava com o roupão com que me deitara. Descalço, fui ao corredor e fechei a porta de mansinho, muito devagar, e com igual cuidado espreitei no quarto dele. A cama estava intacta. Olaf estava sentado à mesa, com a cabeça nos braços, a dormir. Não se despira, como eu pensara. Não sei o que o acordou — o meu olhar? Estremeceu, lançou-me um olhar vivo, endireitou-se e começou a espreguiçar-se. — Olaf — disse eu —, nem em cem anos… — Cala a boca — interrompeu-me bondosamente. — Sempre tiveste tendências pouco salutares, Hal. — Já começas? Eu só queria dizer… — Eu sei o querias dizer. Sei sempre o que vais dizer com uma semana de antecedência. Se tivesse havido necessidade de um capelão a bordo do Prometheus, terias servido para o lugar. Foi uma grandíssima pena não ter percebido isso antes. Ter-te-ia tirado a mania, fosse como fosse. Nada de sermões. Hal! Nada de solenidades, de pragas, de juras e coisas que tais. Como vai? Bom, hem? — Não sei. Suponho… Não sei. Se te referes… bem, não aconteceu nada. — Claro que não, primeiro tens de ajoelhar — redarguiu-me. — Tens de falar na posição de ajoelhado. Burro, perguntei-te alguma coisa a esse respeito? Estou a falar das tuas perspectivas, etc. — Não sei. E não creio que ela saiba, também. Caí-lhe em cima como uma avalancha. — Sim, é um problema — observou Olaf. Despiu-se e começou a procurar os calções. — Quanto pesas? Cento e dez quilogramas? — Mais ou menos. Se estás à procura dos calções, tenho-os vestidos. — Apesar de toda a tua santidade, sempre gostaste de fanar coisas — resmungou e, quando comecei a despi-los, acrescentou: — Deixa-os ficar, idiota. Tenho outro par na mala… — Sabes por acaso como se fazem os divórcios? — perguntei. Olaf olhou-me por cima da mala aberta e piscou o olho. — Não, não sei. Como havia de saber? Mas ouvir dizer que é tão fácil como espirrar. E nem sequer é preciso dizer «santinho». Há por aqui uma casa de banho decente, com água? — Não sei. Provavelmente não há. Só há do género… tu sabes. — Pois sei. O vento revigorante com um cheiro a loção para os dentes. Uma abominação. Vamos para a piscina. Sem água não me sinto lavado. Ela está a dormir? — Está. — Então piremo-nos. A água fria, soberba. Fiz um meio gainer com torção: saiu bem. Foi o meu primeiro. Vim à superfície meio sufocado, com água no nariz. — Tem cuidado! — gritou Olaf do lado da piscina. — Agora precisas de ter cuidado. Lembras-te do Markel? — Lembro. Porquê? — Ele tinha ido às quatro luas amonificadas de Júpiter. Quando voltou e aterrou no campo de treinos, e saiu do foguetão carregado de troféus como uma árvore de natal, tropeçou e partiu uma perna. Por isso, tem cuidado. Estou a avisar-te. — Tentarei. Esta água está muito fria. Vou sair. — Pois claro, não apanhes alguma constipação. Não tive nenhuma durante dez anos, mas assim que aterrei em Luna comecei a tossir. — Isso aconteceu porque lá era muito seco — observei, com ar sério. Olaf riu-se, atirou-me água à cara e saltou a um metro de distância. — Seco, exactamente — disse, ao vir à superfície. — Uma boa maneira de o descrever. Seco, mas não muito acolhedor. — Ole, vou-me embora. — Pois sim. Vemo-nos ao pequeno-almoço? Ou preferes que não? — Claro que nos vemos. Corri para o primeiro andar, a secar-me no caminho. A porta contive a respiração e espreitei cautelosamente. Ela ainda dormia. Aproveitei-me disso para mudar rapidamente de roupa. Também tive tempo para me barbear na casa de banho. Enfiei a cabeça no quarto, pois pareceu-me que ela tinha dito qualquer coisa. Quando me aproximei da cama em bicos de pés, abriu os olhos. — Dormi aqui? — Dormiu. Sim, Eri. — Tive a impressão de que alguém… — Sim, Eri, eu estive aí. Fitou-me como se, gradualmente, se lembrasse de tudo. Primeiro os seus olhos dilataram-se um pouco — de surpresa? — , depois fechou-os, voltou a abri-los e, furtiva e rapidamente, embora sem que o gesto me escapasse, olhou para debaixo do cobertor… e corou. Pigarreei. — Provavelmente quer ir para o seu próprio qiiarto? Talvez eu deva sair, ou… — Não — interrompeu-me —, estou com o meu roupão. Aconchegou-o bem à sua volta e sentou-se na cama. — Afinal… é realidade? — disse baixinho, como se se despedisse de qualquer coisa. Fiquei calado. Levantou-se, atravessou o quarto e voltou para trás. Ergueu para o meu rosto uns olhos em que havia uma interrogação, incerteza e mais qualquer coisa que eu não soube definir. — Sr. Bregg… — O meu nome é Hal. O meu primeiro nome. 142 — Sr… Hal, eu… — Diga. — Francamente não sei… Gostaria… Seon… — O quê? — Bem… ele… Não podia ou não desejava dizer «o meu marido». Qual das coisas seria? — Ele volta depois de amanhã. — E? — Oue vai acontecer? Engoli ern seco. — Deverei ter uma conversa com ele? — perguntei. — Oue quer dizer? Foi a minha vez de a olhar com surpresa, sem compreender. — Ontem disse… Esperei, — Oue me… levaria. — Sim. — E ele? — Então devo falar com ele? — perguntei, a sentir-me estúpido. — Falar? Ouer tratar pessoalmente disso? — Ouem haveria de tratar? — Tem de ser… o fim? Havia qualquer coisa que me sufocava. Pigarreei. — Francamente, não há outra maneira. — Pensei que seria… uma mesk. — Uma quê? — Não sabe? — Não compreendo nada. Não, não sei. Oue é isso? — perguntei, a sentir um calafrio ominoso; deparara-se-me de novo um daqueles vazios súbitos, um pântano de incompreensão. — Trata-se do seguinte… Um homem… uma mulher… se um deles conhece uma pessoa… se quer, durante um certo período de tempo… Não sabe realmente nada a este respeito? — Espere, Eri. Não sei, mas creio que começo a perceber. É qualquer coisa provisória, uma espécie de suspensão temporária, um episódio? — Não — respondeu, e os seus olhos arredondaram-se. — Você não sabe o que é… e eu não sei exactamente como funciona — admitiu. — Ouvi falar, apenas. Pensei que era por isso que você… — Eri, estou completamente às escuras. Diabos me levem se percebo alguma coisa! Tem de…? De qualquer modo, está de certa maneira relacionado com casamento, não está? — Bem, está. Uma pessoa vai a um escritório e aí, não tenho bem a certeza, mas de qualquer maneira depois disso fica… fica… — Fica o quê? — Independente. Ninguém pode dizer nada. Incluindo ele… — No fim de contas é… é uma espécie de legalização… irra, é uma legalização de infidelidade! — Não… sim… Quero dizer, assim não é infidelidade, ninguém fala do caso como sendo isso. Eu sei o que signfica; li a esse respeito. Não há infidelidade nenhuma porque… bem, no fim de contas, o Seon e eu só estamos juntos por um ano. — O quê?! — perguntei, pensando que não ouvira bem. — Que significa isso, um ano? Casamento por um ano? Por um ano?! Porquê? — É uma experiência. — Uma experiência, valha-me Deus! E que é uma mesk? uma notificação para o ano seguinte? — Não compreendo o que quer dizer. É… significa que se o casal se separa ao fim de um ano, então a outra coisa se toma um laço. Como um casamento. — A mesk? — Sim. — Se não acontece assim, nada. Não tem significado. — Ah, agora julgo compreender! Não. Nada de mesk. Até que a morte nos separe. Sabe o que isso significa? — Sei. Sr. Bregg… — Que é? — Completo a minha graduação em Arqueologia este ano… — Compreendo. Está a informar-me de que, tomando-a por idiota, estou só a proceder como um idiota. Sorriu. — Expõe as coisas de uma maneira tão forte… — Pois exponho, desculpe. Bem, Eri, posso falar com ele? — A respeito de quê? Fiquei de boca aberta. «Lá vamos nós outra vez», pensei. — Com os diabos, o que é que… — Mordi a língua e respondi: — A nosso respeito. — Mas isso não se faz. — Não? Então está bem. E que se faz? — Adopta-se o procedimento da separação. Mas, Sr. Bregg, francamente, não posso… não posso fazer as coisas assim. — E como pode fazê-las? Encolheu desamparadamente os ombros. — Isso significa que voltámos ao ponto onde começámos ontem à noite? — perguntei. — Não se zangue comigo por eu falar assim, Eri, mas encontro-me em desvantagem dupla. Não estou familiarizado nem com as formalidades nem com os costumes, com o que se deve ou não deve fazer, nem mesmo numa base diária; por isso, quando se trata de coisas como… — Bem sei, bem sei. Mas ele e eu… eu… Seon… — Compreendo. Olhe, sentemo-nos. — Penso melhor de pé. — Por favor. Escute, Eri, eu sei o que devia fazer. Devia levá-la, como 144 disse, e ir para qualquer lado. Não sei como tenho esta certeza. Talvez se deva apenas à minha ilimitada estupidez. Mas parece-me que eventualmente poderia ser feliz comigo. Sim. Ao mesmo tempo, eu — note — pertenço ao tipo que… enfim, numa palavra, não quero fazer isso. Forçá-la. Assim, toda a responsabilidade da minha decisão, chamemos-lhe assim, recai em você. Por outras palavras, obrigar-me a ser um suíno não do lado direito, mas somente do esquerdo. Sim. vejo isso claramente. Muito claramente. Agora diga-me só uma coisa; que prefere? — O direito. — Ouê? — O lado direito do suíno. Comecei a rir. Talvez um pouco histericamente. — Meu Deus. óptimo! Então posso falar com ele? Depois. Isto é, eu voltaria aqui sozinho… — Não. — Não se faz assim? Talvez não. mas eu acho que devo, Eri. — Não. Eu… por favor, por favor. Francamente, não! De siibito. saltaram-lhe as lágrimas dos olhos e eu abracei-a. — Eri! Não. pronto, é não. Farei o que quiser, mas não chore. Suplico-Ihe. Porque… Não chore. Pare. está bem? Mas… chore, se… Eu não… — Eu não sabia que seria tão… tão… — soluçou. Transportei-a ã volta do quarto. — Não chore. Eri… Sabe que mais? Partimos por… um mês. Que diz a isso? Depois, se quiser, poderá regressar. — Por favor — pediu —. por favor. Pousei-a no chao. — Assim não? Não percebo nada. Pensei… — Oh. como você é! Deve ser. não deve ser… Não quero isto! Não quero! — O lado direito toma-se cada vez maior — observei, com inesperada frieza. — IVluito bem, então. Eri. Não a consultarei mais. Vista-se. Tomaremos o pequeno-almoço e partiremos. Voltou para mim o rosto molhado de lágrimas. Com uma expressão estranhamente atenta. Franziu a testa. Tive a impressão de que queria dizer qualquer coisa, qualquer coisa que não seria lisongeira para mim. Mas limitou-se a suspirar e a sair sem dizer palavra. Sentei-me à mesa. Aquela minha súbita decisão — como um episódio de um romance de piratas — tinha sido uma coisa de momento. Na realidade, estava tão resoluto como um cata-vento. E sentia-me um velhaco. Como podia fazer uma coisa daquelas? — perguntava-me. Oh. que complicação! No limiar da porta semiaberta estava Olaf. — Meu velho, lamento muito — disse. — Foi uma grande indiscrição, mas ouvi. Não pude evitá-lo. Devias fechar a porta… e. além disso, tens uma voz tão saudável! Hal, ultrapassas-te. Que queres da rapariga? Que se lance nos teus braços porque, uma vez, desceste naquele buraco de…? — Olaf! — rosnei. LBFC66-10 145 — Só a calma nos pode salvar. Com que então, a arqueologista encontrou uma boa localização. Cento e sessenta anos já é antiguidade, não é? — O teu sentido do humor… — Não te agrada. Bem sei. Nem a mim. Mas onde estaria eu, meu velho, se não lesse em ti como num livro aberto? No teu funeral, se queres saber. Hal, Hal… — Sei o meu nome. — Que é que tu queres? Vamos, capelão, decide-te. Comamos e partamos. — Nem sequer sei para onde ir. — Por acaso, eu sei. Ao longo da costa ainda há algumas pequenas cabanas para alugar. Levas o carro… — Levo o carro? Que queres dizer? — Como havia de ser? Preferes a Santíssima Trindade? Capelão… — Olaf, se não páras com isso… — Está bem, eu sei. Gostarias de tornar toda a gente feliz. Eu, ela, o tal Seol ou Seon… Não, assim não poderá ser. Hal, partiremos juntos. Poderás deixar-me em Houl, onde tomarei um ulder. — Estou a proporcionar-te umas boas férias! — Se eu não me queixo, não te queixes tu por mim. Talvez dê algum resultado. Mas por agora basta. Anda. O pequeno-almoço decorreu numa estranha atmosfera. Olaf falou mais do que de costume, mas à toa. Eri e eu quase não dissemos palavra. Depois o robot branco foi buscar o gleeder e Olaf levou-o a Clavestra, para trazer o carro. Teve essa ideia no último momento. Uma hora depois, o automóvel estava no jardim. Carreguei as minhas coisas e Eri também trouxe as suas — não todas, porém, segundo me pareceu, mas não perguntei; na realidade, não conversámos. E assim, num dia soalheiro que viria a tomar-se muito quente, seguimos primeiro para Houl — um pouco fora do nosso caminho —, onde Olaf se apeou. Só me dissera no carro que alugara um chalé para nós. Não houve despedida propriamente dita. — Escuta, Olaf, se eu te informar… virás! — Com certeza. Mandar-te-ei o meu endereço. — Escreve para o posto dos correios de Houl — recomendei. Estendeu-me a sua mão firme. Quantas mãos como aquela restavam na Terra? Apertei-lha com tanta força que os meus dedos estalaram. Depois, sem olhar para trás, sentei-me ao volante. Viajámos menos de uma hora. Olaf dissera-me como encontraria a pequena casa. Não era realmente grande — quatro divisões e sem piscina —, mas ficava na praia, mesmo à beira-mar. Ao passarmos por enfiadas de chalés vivamente coloridos espalhados pelos montes, vimos o oceano da estrada. Mas mesmo antes de o vermos ouvimos o seu rugir distante e abafado. De vez em quando, olhava para Eri. Estava silenciosa, hirta, e raramente olhava para a paisagem mutável. A casa — a nossa casa — deveria ser azul com telhado cor detoçja.-Toquei com a língua nos lábios e soube-me a sal. A estrada virou e correu paralela à linha arenosa da praia. O oceano, de ondas aparentemente imóveis por causa da distância, juntava a sua voz ao rugido do motor. O chalé era um dos últimos da estrada. Um minúsculo jardim, com os arbustos cinzentos da espuma salgada, conservava os vestígios de uma recente tempestade. As ondas deviam ter chegado mesmo à sebe baixa: aqui e ali viam-se conchas vazias. O telhado inclinado estendia-se à frente, como a aba caprichosamente dobrada de um chapéu, e proporcionava muita sombra. Atrás de uma grande duna coberta de erva via-se o chalé vizinho, a uns 600 passos de distância. Em baixo, na praia em meia-lua, avistavam-se as formas minúsculas das pessoas. Abri a porta do carro. — Eri. Ela saiu sem dizer uma palavra. Se ao menos soubesse o que se passava atrás daquela testa franzida! Caminhou a meu lado para a porta. — Não, assim não — disse-lhe eu. — Não deves transpor o limiar. — Porquê? Peguei-lhe. — Abre… — pedi. Ela tocou na chapa com os dedos e a porta abriu-se. Atravessei o limiar com ela e depositei-a no chão. — É um costume. Para dar sorte. Primeiro foi ver as divisões do chalé. A cozinha ficava nas traseiras, era automática e tinha um robot — não era realmente um robot, mas sim apenas um imbecil eléctrico, para fazer a lida da casa. Sabia pôr a mesa e cumpria instruções, mas só dizia meia dúzia de palavras. — Eri, gostarias de ir à praia? Abanou a cabeça. Estávamos parados no meio da sala maior, branca e dourada. — Então do que gostarias? Talvez… Repetiu o gesto antes de eu acabar a frase. Compreendi o que me estava reservado. Mas os dados estavam lançados e o jogo teria de ser jogado. — Vou buscar as nossas coisas — disse-lhe, e esperei que ela respondesse, mas Eri sentou-se numa cadeira verde como erva e eu compreendi que não falaria. O primeiro dia foi terrível. Eri não fez nada óbvio, não se esforçou propositadamente para me evitar e depois do almoço até tentou estudar um pouco — perguntei-lhe, então, se podia ficar no seu quarto, a vê-la, e prometi que não diria uma palavra e não a perturbaria. Mas decorrido um quarto de hora (que rápido da minha parte!) compreendi que a minha presença era um tremendo fardo para ela. Denunciavam-no a linha das suas costas e os seus movimentos pequenos e cautelosos, o seu esforço oculto. Por isso, coberto de suor, bati apressadamente em retirada e fui andar de um lado para o outro no meu próprio quarto. Ainda não a conhecia. Mas percebia que ela não era estúpida, longe disso. O que, na situação vigente, tanto era bom como mau. Era bom porque, mesmo que não compreendesse, ela podia pelo menos calcular o que eu era e não veria um monstro bárbaro ou um selvagem. Era mau porque, nesse caso, o conselho que Olaf me dera no.último momento não serviria de nada. Citara-me um aforismo que eu conhecia, de Hon: «Para que a mulher seja como fogo o homçm deve ser como gelo.» Por outras palavras, ele achava que a minha única oportunidade seria à noite e não durante o dia. Eu não queria que assim fosse e por essa razão me atormentava, mas compreendia que no curto espaço de tempo que me restava não podia esperar comunicar com ela, alcançá-la por meio de palavras, que tudo quanto eu dissesse permaneceria no exterior, pois de maneira nenhuma enfraqueceria a sua rectidão, a sua justificada cólera, que só se manifestara uma vez numa breve explosão, quando ela começara a gritar: «Não quero! Não quero!» Também considerei mau sinal o facto de, então, se ter controlado tão depressa. Ao anoitecer começou a ter medo. Tentei manter-me calmo, andar suavemente, como Voov, o pequeno piloto que conseguia — perfeito homem de poucas palavras — dizer e fazer tudo quanto queria sem falar. Depois do jantar — ela não comeu nada, o que me alarmou —, senti a cólera crescer dentro de mim. Em certas ocasiões quase a odiei pelo meu próprio tormento e a grande injustiça desse sentimento serviu apenas para o intensificar. A nossa primeira verdadeira noite juntos. Quando ela adormeceu nos meus braços ainda toda afogueada, e a sua respiração entrecortada começou, em suspiros cada vez mais fracos, a serenar e a conduzi-la ao sono, tive a certeza de que vencera. Debatera-se do princípio ao fim, não comigo, mas com o seu corpo, que eu fiquei a conhecer: as unhas delicadas, os dedos delgados, as palmas das mãos, os pés, tudo coisas que tive de abrir e trazer à vida, por assim dizer, com os meus beijos e o meu hálito, abrindo caminho para ela — contra ela — com infinita paciência e lentidão, de modo que as transições foram imperceptíveis. Todas as vezes que sentia uma resistência crescente, como a morte, batia em retirada e começava a segredar-lhe palavras loucas, insensatas e infantis, ou voltava a ficar silencioso e limitava-me a acariciá-la, a sitiá-la com o meu contacto horas a fio, até senti-la descontrair-se e a sua rigidez ceder o lugar à tremura de uma última defesa. Depois tremeu de modo diferente, já conquistada, mas mesmo assim esperei e, sem dizer nada, pois o que se passava ficava além das palavras, puxei da escuridão os seus braços esguios e os seus seios — o seio esquerdo, pois aí batia o coração cada vez mais depressa. A sua respiração tomou-se mais violenta, desesperada, e aconteceu o que tinha de acontecer. Não foi sequer prazer, mas sim a misericórdia do aniquilamento e da dissolução, um ataque à última muralha dos nossos corpos, para que na violência pudessem ser só um durante alguns segundos. Os nossos hálitos ofegantes, o nosso fervor, tudo se fundiu em esquecimento, ela gritou uma vez, fracamente, com a voz alta de uma criança, e agarrou-me. E depois as suas mãos largaram-me furtivamente, como que numa grande vergonha e tristeza, como se compreendesse de repente como a ludibriara horrivelmente. E comecei tudo outra vez, os beijos nas curvas dos dedos, as súplicas mudas, toda a tema e cruel progressão. E repetiu-se tudo, como num escaldante sonho negro, e a certa altura senti a sua mão enterrada no meu cabelo a comprimir o meu rosto contra o seu ombro nu com uma força que não esperara nela. Mais tarde, exausta, a respirar rapidamente como se quisesse expulsar de si o calor acumulado e o medo súbito, adormeceu. E eu fiquei imóvel, como morto, tenso, a tentar discernir se o que acontecera significava alguma coisa ou não significava nada. Imediatamente antes de adormecer pareceu-me que estávamos salvos e só então veio a paz, uma grande paz, tão grande como a de Kereneia, quando estive deitado nos lençóis quentes de lava estalada com Arder, cuja boca via respirar atrás do vidro do seu fato, apesar de ele estar inconsciente, o que me disse que não tinha sido em vão, apesar de não ter sequer forças para abrir a válvula do seu cilindro de reserva. Fiquei paralisado, com a sensação de que a maior coisa da minha vida já ficara para trás e que, se morresse naquele instante, nada mudarij. A minha imobilidade era como o inexprimível silêncio do triunfo. Mas de manhã recomeçou tudo. Nas primeiras horas do dia continuou envergonhada — ou talvez fosse desprezo o que sentia, embora eu não soubesse se era por mim se por ela própria, pelo que acontecera. Por volta da hora do almoço consegui persuadi-la a dar uma pequena volta de automóvel. Seguimos ao longo das imensas praias, com o Pacífico estendido ao sol à nossa frente, colosso rugidor sulcado por crescentes de espuma branca e dourada, cheio até ao horizonte de minúsculas velas coloridas. Parei o carro onde as praias terminavam numa inesperada parede de rocha. A estrada descrevia uma curva acentuada e, parados a um metro da sua beira, víamos em baixo a rebentação violenta. Regressámos a casa para almoçar. Foi como na véspera e tudo em mim se revoltava ao pensamento da noite, porque não queria que fosse assim. Quando não estava a olhar para ela, sentia os seus olhos postos em mim. Sentia-me intrigado com os seus renovados cenhos franzidos, com os seus súbitos olhares fixos. E de repente, pouco antes do jantar, ao sentarmo-nos à mesa, compreendi tudo, como se alguém me tivesse aberto o crânio com uma simples pancada. Apeteceu-me esmurrar-me a mim mesmo. Que idiota egocêntrico eu tinha sido, que canalha auto-enganador! Fiquei atordoado, imóvel com uma tempestade dentro de mim e bagas de suor na testa. Senti-me fraquíssimo. — Que tens? — perguntou-me. — Eri — murmurei, rouco —, eu… só agora… Juro! Só agora compreendo que vieste comigo porque tinhas medo, medo de que eu… Não foi? Os seus olhos dilataram-se de surpresa e observaram-me cuidadosamente, como se suspeitasse de um estratagema, uma brincadeira. Acenou afirmativamente. Levantei-me de um pulo. — Vamos. — Para onde? — Para Clavestra. Arruma as tuas coisas. Estaremos lá… — consultei o relógio —… dentro de três horas. Permaneceu imóvel. — Falas a sério? — perguntou. — Eri, eu não sabia. Bem sei que parece incrível. Mas há limites. Sim. há limites. Eri, ainda não compreendo claramente como pude fazer semelhante coisa… porque creio que fechei os próprios olhos. Mas não interessa, agora não tem importância. Ela fez as malas — tão depressa! Tudo dentro de mim se quebrou e desfez, mas à superfície mantive-me perfeitamente, ou quase perfeitamente, calmo. Quando se sentou a meu lado, no carro, disse: — Perdoa-me, Hal. — O quê? Ah! — exclamei, ao compreender. — Pensaste que eu sabia? — Pensei. — Está bem, não falemos mais disso. Voltei a conduzir a cem. As casas desfilavam, cor de púrpura, brancas e cor de safira, a estrada ziguezagueava e curvava, eu aumentava a velocidade; o trânsito era muito, mas depois abrandou e os chalés perderam as suas cores, o céu tomou-se azul-escuro, as estrelas apareceram e nós continuámos a viajar velozmente, com o vento a assobiar. A região circundante tornou-se cinzenta, os montes perderam o seu volume, tomaram-se contornos, séries de corcovas escuras, e a estrada sobressaiu contra o crepúsculo como uma faixa larga e fosforescente. Reconheci a primeira casa de Clavestra, uma curva familiar e as sebes. Parei à entrada e levei as coisas dela para o jardim e daí para a varanda. — Não quero entrar. Tu compreendes. — Compreendo. Não me despedi dela. Virei-me simplesmente. Ela tocou-me no braço e eu encolhi-me como se me tivessem batido. — Obrigada, Hal. — Não digas nada. Só te peço que não digas nada. Fugi. Saltei para o carro e parti. O ragido do motor salvou-me durante um bocado. Dava vontade de rir. Obviamente, ela tivera medo de que eu o matasse. No fim de contas, vira-me tentar matar Olaf, que estava inocente como um cordeirinho, simplesmente porque não me deixaraí.. E de qualquer modo… De qualquer modo, nada. Ali, no carro, uivei, pude permitir-me tudo porque estava sozinho e o barulho do motor encobria a minha loucura. Não sei em que momento compreendi o que tinha a fazer. E mais uma vez, como da primeira, chegou a paz. Não a mesma paz. Não a mesma paz porque o facto de ter tirado tão horrivelmente partido da situação, de a ter forçado a acompanhar-me e de tudo ter acontecido por causa disso, porque esse facto era pior do que tudo quanto poderia ter imaginado e até me roubava as recordações dessa noite, de tudo. Sozinho, com as próprias mãos, destruíra tudo devido a um egoísmo ilimitado, a uma mentira que me não deixara ver o que estava mesmo à superfície, o que era a coisa mais óbvia. Sim, ela falara verdade quando dissera que não tinha medo de mim. Não me temia por si, mas sim por ele. Passavam luzes velozes, que iam ficando lentamente para trás, a paisagem era indescritivelmente bela e eu — dilacerado, trespassado — lançava-me com os pneus a protestar de uma curva para outra, na direcção do Pacífico, na direcção do penhasco que lá existia. A certa altura, quando o carro virou mais acentuadamente do que eu esperava e as rodas direitas saíram da estrada, entrei em pânico durante uma fracção de segundo, mas depois explodi num riso louco. Imaginem, ter medo de morrer ali, eu que decidira morrer noutro lado! E o riso transformou-se bruscamente em soluços. «Tenho de o fazer depressa», pensei. «Já não sou eu próprio. O que me está a acontecer é pior do que terrível, é repugnante.» Disse também a mim mesmo que devia sentir-me envergonhado. Mas as palavras não tinham peso nem significado. Escurecera por completo, a estrada estava praticamente deserta, porque poucos conduziam à noite. Nisto, porém, reparei que vinha atrás de mim, não muito longe, um gleeder preto. Passava ligeiro e sem esforço pelos lugares onde eu tinha de usar de toda a minha perícia com travão e acelerador. Porque os gleeders se seguravam à estrada por meio de forças magnéticas ou gravitacionais, sabia Deus de quais. O certo é que podia ter-me ultrapassado sem dificuldade nenhuma, mas em vez disso manteve-se à minha retaguarda, a uns 80 metros de distância, umas vezes um pouco mais perto, outras um pouco mais longe. Nas curvas apertadas, quando eu derrapava através da estrada e cortava pela esquerda, conservava-se à distância, embora eu não acreditasse que não pudesse acompanhar-me. Talvez o condutor tivesse medo. Mas a verdade é que não havia condutor nenhum. De resto, que me importava o gleeder? Importava, porque eu sentia que ele não se deixava ficar para trás por acaso. E, de súbito, acudiu-me o pensamento de que era Olaf, de que Olaf, que não confiava absolutamente nada em mim (e com razão!), se deixara ficar nas imediações, à espera, para ver como corriam as coisas. Sim, estava ali o meu salvador, o bom e velho Olaf, que uma vez mais me não deixaria fazer o que eu queria, que seria o meu irmão mais velho, o meu confortador. Semelhante pensamento fez com que qualquer coisa se apoderasse de mim e, durante um segundo, a fúria cega não me deixou ver a estrada. «Por que não me deixam em paz?», pensei, e comecei a exigir tudo do carro, a aproveitar todas as suas possibilidades, como se não soubesse que o gleeder podia atingir o dobro da velocidade. Assim, viajámos através da noite, por entre os montes salpicados de luzes, e acima do silvo da deslocação do ar comecei a ouvir o rugido do invisível, do imenso Pacífico, como se o som subisse de insondáveis abismos. «Conduz, anda. Conduz. Não sabes o que eu sei. Espias-me, segues-me, não me abandonas. Óptimo. Mas eu enganar-te-ei, fugir-te-ei quando mal te precatares. E faças o que fizeres não servirá de nada, porque um gleeder não pode sair da estrada. Por isso, até ao último segundo terei a consciência tranquila. Excelente.» Passei pelo chalé onde estivéramos. As suas três janelas iluminadas apunhalaram-me, quando passei, como se quisessem provar-me que não há sofrimento que não possa tomar-se maior ainda. Iniciei o último troço da estrada, paralelo ao oceano. Então, para meu horror, o gleeder aumentou subitamente a velocidade e começou a ultrapassar-me. Bloqueei-lhe brutalmente a passagem, guinando para a esquerda. Deixou-se ficar para trás e assim fomos manobrando: todas as vezes que ele tentava ultrapassar-me, eu bloqueava a faixa esquerda com o carro. Fizemo-lo umas cinco vezes ao todo. Nisto, embora eu estivesse a barrar o caminho, começou a avançar à rainha frente. O corpo do meu carro roçou praticamente pelo reluzente casco preto daquele projéctil sem janelas e aparentemente desocupado. Tive então a certeza de que só podia ser Olaf, pois nenhum outro homem tentaria fazer tal coisa — mas eu não podia matar Olaf. Não podia. Por isso, deixei-o passar. Colocou-se à minha frente e eu pensei que, por sua vez, me fosse bloquear, mas em vez disso manteve-se uns 15 metros à frente. «Está bem assim», pensei. E afrouxei, com a ténue esperança de que ele aumentasse a pequena distância entre nós. Mas não aumentou: afrouxou também. Faltavam cerca de dois quilómetros para a última curva do penhasco quando o gleeder afrouxou ainda mais e se manteve no centro da estrada, para que não conseguisse ultrapassá-lo. Pensei que talvez pudesse fazer o que queria, mas ainda não havia penhasco nenhum, só praia arenosa, e as rodas do carro afundar-se-iam na areia ao fim de 100 metros. Nem sequer chegaria ao oceano. Seria idiota. Não tinha por onde escolher, só me restava continuar a conduzir. O gleeder afrouxou ainda mais e eu compreendi que o pararia em breve. As traseiras do seu corpo preto brilhavam, como se manchadas de sangue fervente, das luzes de travagem. Tentei contorná-lo com uma guinada silbita, mas bloqueou-me o caminho. Era mais rápido e mais ágil do que eu — o que não admirava, pois era uma máquina que o guiava. Uma máquina tem sempre reflexos mais rápidos. Travei a fundo, tarde de mais, houve um choque terrível, uma massa preta cresceu à frente do pára-brisa e eu fui atirado para diante e perdi a consciência. Abri os olhos e acordei de um sonho, de um sonho insensato: sonhara que estava a nadar. Qualquer coisa fria e húmida corria-me pela cara, senti mãos a sacudirem-me e ouvi uma voz. — Olaf… — murmurei. — Porquê, Olaf? Porquê…? — Hal! Esforcei-me para despertar por completo, apoiei-me num cotovelo e vi a cara dela debruçada para mim, próxima. Quando me sentei, tão atordoado que não conseguia raciocinar, ela deixou-se cair devagar nos meus joelhos, com os ombros sacudidos… e eu continuei sem poder acordar. Sentia a cabeça enorme, como que cheia de algodão. — Eri — murmurei, com os lábios curiosamente grandes, pesados e, não sei explicar como, muito distantes. — Eri, és tu. Ou estou apenas… E, de súbito, senti a força voltar-me, agarrei-lhe nos braços, levantei-a e levantei-me, e andei cambaleante com ela. Caímos ambos na areia macia e ainda quente. Beijei-lhe a cara húmida e salgada e chorei — foi a primeira vez na minha vida— e ela chorou também. Não dissemos nada durante muito tempo. Gradualmente, começámos a ter medo — de quê, não sei— e ela olhou-me com olhos desvairados. — Eri — repeti. — Eri… Eri… Era tudo quanto sabia dizer. Deitei-me na areia, subitamente fraco, e ela alarmou-se ainda mais, tentou levantar-me, mas não teve forças. — Não. Eri — murmurei. — Não, eu estou bem. É só este… — Hal! Diz qualquer coisa! Diz qualquer coisa! — Que hei-de dizer?… Eri… A minha voz acalmou-a um pouco. Afastou-se a correr e voltou com uma lata, da qual me deitou de novo água na cara — amarga, a água do Pacífico. Eu tencionara beber uma quantidade muito maior — lembrou-me, rápido, um pensamento insensato. Pestanejei. Sentei-me e toquei na cabeça. Não tinha sequer um golpe. O meu cabelo amortecera o impacto e, por isso, só tinha um alto do tamanho de uma laranja, algumas escoriações e os ouvidos ainda a zumbir, mas estava bem. Pelo menos enquanto permaneci sentado. Quando tentei levantar-me. as pernas não pareceram querer cooperar. Ela ajoelhou à minha frente, a observar, de braços caídos aos lados. — És realmente tu? — perguntei. Só então compreendi. Virei-me e vi, através da nauseante vertigem provocada pelo movimento, duas formas negras entrelaçadas ao luar, a uma dúzia de metros de distância, na berma da estrada. A voz não me obedeceu quando voltei a olhar para Eri. — Hal… — Sim? — Tenta levantar-te. Eu ajudo-te. — Levantar-me? Aparentemente, a minha cabeça ainda não estava desanuviada. Compreendia e não compreendia o que acontecera. Fora Eri que viajara no gleeder? Impossível. — Onde está o Olaf? — perguntei. — O Olaf? Não sei. — Queres dizer que ele não esteve aqui?" — Não. — Vieste sozinha? Acenou afirmativamente. E. de súbito, apossou-se de mim um medo temvel, desumano. — Como foste capaz? Como? O rosto dela tremeu, os lábios tremeram-lhe, teve dificuldade em dizer as palavras. — Ti-tive de… Chorou de novo. Depois serenou, tornou-se mais calma. Tocou-me na cara. na testa. Com dedos leves tacteou-me a cabeça. Repeti, ofegante: — Eri… és tu? Dementado. Mais tarde, vagarosamente, levantei-me. Ela amparou-me o melhor que pôde e caminhámos para a estrada. Só então vi em que estado o automóvel se encontrava. A capota, a frente toda, estava tudo como um acordeão. O gleeder. pelo contrário, quase não apresentava estragos. — pude assim apreciar a sua superioridade —, além de uma pequena amolgadela de lado, onde sustentara a maior força do choque. Eri ajudou-me a entrar, fez recuar o gleeder até os destroços do meu carro caírem de lado com um longo som metálico, e arrancou. Voltámos para trás. Fiquei calado, enquanto as luzes desfilavam. A minha cabeça não se segurava, ainda grande e pesada. Apeámo-nos defronte do chalé. As janelas continuavam iluminadas, como se tivéssemos saído só por um momento. Ajudou-me a entrar em casa. Deitei-me na cama. Ela aproximou-se da mesa, contomou-a e dirigiu-se para a porta. Sentei-me. — Vais-te embora! Correu para mim, ajoelhou ao lado da cama e abanou a cabeça. — Não? — Não. — E nunca me deixarás? — Nunca. Abracei-a. Ela encostou a face à minha e tudo se esvaiu de mim: as brasas ardentes da minha obstinação e da minha cólera, a loucura das últimas horas, o medo e o desespero. Fiquei vazio, como morto, e limitei-me a apertá-la a mim com mais força, como se as minhas energias tivessem voltado. Reinava o silêncio, a luz brilhava no papel dourado das paredes do quarto e algures, muito longe, noutro mundo, fora das janelas abertas, o Pacífico bramia., Pode parecer estranho, mas nessa noite não dissemos nada. Nem uma única palavra. Só no outro dia, já tarde, soube o que se passara. Assim que eu partira no automóvel, ela adivinhara a razão e entrara em pânico, sem saber que fazer. Primeiro pensara em chamar o robot branco, mas compreendera que não poderia ajudá-la. E ele — não se lhe referia de outro modo — também não podia ajudar. Olaf, talvez. Olaf, com certeza, mas ela não sabia onde encontrá-lo e, de resto, não havia tempo. Meteu-se no gleeder da casa e partiu atrás de mim. Alcançou-me depressa e depois manteve-se na minha retaguarda enquanto houve a possibilidade de eu ir apenas regressar ao chalé. — Ter-te-ias apeado, então? — perguntei. Hesitou. — Não sei… penso que teria. Penso assim agora, mas saber, não sei. Depois, quando vira que eu não parava e continuava em frente, ficara ainda mais assustada. O resto já eu sabia. — Não, não compreendo — confessei. — É essa parte que não compreendo. Como foste capaz? — Disse a mim própria que… que não aconteceria nada. — Sabias o que eu queria fazer? E onde? — Sabia. — Como? Uma longa pausa. — Não sei. Talvez porque, entretanto, aprendera a conhecer-te um pouco. Fiquei calado. Ainda tinha muitas coisas que perguntar, mas não ousava. 154 Estávamos de pé junto da janela. De olhos fechados, a sentir o grande espaço aberto do oceano, disse: — Está bem, Eri. Mas e agora? Que vai acontecer? — Já te disse. — Mas eu não quero assim — murmurei. — Não pode ser de nenhum outro modo — respondeu, após outra longa pausa. — Além disso… — Além disso? — Não importa. Nesse mesmo dia, ao anoitecer, as coisas voltaram a piorar. Os nossos problemas voltaram, progrediram e retrocederam. Porquê? Não sei. Provavelmente ela também não sabia. Dir-se-ia que só em situações extremas nos tomávamos chegados, íntimos, e só então conseguíamos compreender-nos um ao outro. Seguiu-se uma noite. E outro dia. No quarto dia ouvi falar ao telefone e fiquei assustadíssimo. Depois ela chorou. Mas ao jantar estava de novo sorridente. E isso foi o fim e o princípio. Porque na semana seguinte fomos a Mae, a principal cidade do distrito, e num escritório, perante um homem vestido de branco, dissemos as palavras que fizeram de nós marido e mulher. Nesse mesmo dia mandei um telegrama a Olaf. No dia seguinte fui aos Correios, mas não havia nada dele. Pensei que talvez se tivesse mudado e daí o atraso. Para dizer a verdade, já então, nos Correios, senti uma ponta de ansiedade, porque aquele silêncio não estava de acordo com a maneira de ser de Olaf. Mas, com tudo quanto acontecera, só pensei no assunto um rfiomento e nem disse nada a Eri. Como se o caso estivesse esquecido. VI Para um casal unido apenas pela violência da minha loucura, entendíamo — nos melhor do que seria de esperar. A nossa vida em comum estava sujeita a uma curiosa divisão. Quando se tratava de uma diferença de atitudes, Eri era capaz de defender a sua posição, embora o assunto em causa fosse, por norma, geralmente de natureza geral. Por exemplo, ela era urna forte defensora da betrização, pela qual pugnava com argumentos que não eram retirados de livros. Eu considerava bom sinal o facto de se opor tão abertamente às minhas opiniões. Mas estas nossas discussões decorriam durante o dia. À luz do dia, não se atrevia — ou não desejava — falar de mim objectiva e calmamente, sem dúvida porque não sabia qual das suas palavras equivaleria a apontar algum defeito pessoal meu, algum aspecto absurdo «do tipo do boião dos picles», para usar a expressão de Olaf, e que um ataque nivelava aos valores básicos do meu tempo. Mas à noite — talvez porque a escuridão atenuasse um tanto a minha presença— falava-me de mim próprio, isto é, de nós, e eu gostava dessas conversas serenas às escuras, porque a escuridão ocultava misericordiosamente o meu espanto frecjuente. Falou-me dela, da sua infância, e desse modo aprendi pela segunda vez — pela primeira, na realidade, pois só então com concreto e humano conteúdo— como era finamente forjada aquela sociedade de harmonia constante e delicadamente estabilizada. Era considerado natural que ter filhos e criá-los durante os primeiros anos da sua vida requeria elevadas qualificações e preparação extensiva, por outras palavras, um curso especial. A fim de obter permissão para ter descendentes, um casal tinha de passar uma espécie de exame. Ao princípio, tal coisa pareceu-me incrível, mas ao pensar melhor tive de admitir que nós, no passado, e não eles, merecíamos a acusação de termos costumes paradoxais: na antiga sociedade, uma pessoa não era autorizada a construir uma casa ou uma ponte, a tratar uma doença ou a desempenhar a mais simples função administrativa, sem instrução especializada, ao passo que o caso de máxima responsabilidade — ter filhos, moldar-lhes o espírito — era deixado ao puro acaso e aos desejos momentâneos, e a comunidade só intervinha quando tinham sido cometidos erros e era tarde de mais para os corrigir. Por isso, obter o direito de ter um filho, tornara-se uma distinção que não era conferida a qualquer. Além disso, os pais não podiam isolar os filhos dos seus contemporâneos. Formavam-se grupos seleccionados, para ambos os sexos, nos quais estavam representados os temperamentos mais divergentes. As chamadas «crianças difíceis» recebiam tratamento hipnagógico especial, e a educação de todas as crianças começava muito cedo. Não o ler e escrever, que só era ensinado muito mais tarde, mas a educação dos mais jovens, familiarizando-os — por intermédio de jogos especiais — com o funcionamento do Mundo, da Terra, com a riqueza e a variedade da vida em sociedade. Instilavam-se em crianças de quatro e cinco anos, precisamente deste modo, os princípios de tolerância, coexistência, respeito pelas crenças e atitudes dos outros e a sem importância das feições exteriores das crianças (e consequentemente dos adultos) de outras raças. Tudo isso me parecia excelente, com uma única, mas fundamental, reserva: o facto de a pedra angular daquele mundo, a sua norma absoluta que tudo abrangia, era a betrização. Todo o objectivo da educação de uma criança era fazê-la aceitar a betrização como um facto da vida não menos inquestionável do que o nascimento ou a morte. Quando ouvi, mesmo dos lábios de Eri, como a história antiga era ensinada, tive dificuldade em conter a indignação. De acordo com o retrato apresentado, tinham sido tempos de animalidade e procriação bárbara e descontrolada, de catástrofe tanto económica como militar, e as inegáveis realizações da civilização passada eram apresentadas como uma expressão da força e da determinação que permitiam às pessoas vencer a ignorância e a crueldade do período: essas realizações tinham-se dado, pois, como que a despeito da tendência prevalecente de viver à custa de outros. O que antigamente exigira esforço indizível, afirmavam, e só era alcançável por um punhado, visto a estrada para o êxito estar eriçada de perigos e haver a necessidade de sacrifício e compromisso — o êxito material só se alcançava por erro moral — era agora comum, fácil e certo. Não era muito mau enquanto tratávamos de generalizações; eu podia admitir a condensação de vários aspectos do passado, tais como, digamos, a guerra, e tinha de aceitar que a falta — a falta completa — de política, de atrito ou tensão, de conflito internacional — embora fosse uma falta surpreendente, que dava origem imediata à suspeita de que tais coisas existiam, mas não eram mencionadas —, tinha de aceitar, dizia; que essa falta era um dado positivo e não um prejuízo. Mas tomava-se muito mau quando essa reavaliação me tocava pessoalmente. Porque não tinha sido apenas Starck que abandonara no seu livro (escrito, nota bene, meio século antes do meu regresso) a exploração do espaço. Nesse aspecto, Eri, como arqueóloga, tinha muito a ensinar-me. As primeiras gerações betrizadas mudaram radicalmente a sua atitude para com a astronáutica, mas embora os símbolos mudassem de mais para menos, o interesse permaneceu intenso. O consenso, então, era de que fora cometido um erro trágico, um erro que atingiu o seu apogeu nos próprios anos durante os quais a nossa expedição foi planeada, porque nessa altura foram organizadas expedições semelhantes em ntímero muito elevado. Não se tratava de o rendimento dessas expedições ter sido pequeno, de a penetração do espaço num raio de muitos anos-luz do sistema solar ter conduzido apenas à descoberta, nalguns planetas, de primitivas e estranhas formas de vegetação e não ao contacto com qualquer civilização altamente desenvolvida. Tão-pouco se considerava o pior o facto de a terrível duração da viagem modificar a tripulação da nave espacial, esses representantes da Terra — num grau crescente, à medida que os destinos se tornavam mais remotos — num grupo de desgraçadas criaturas mortalmente fatigadas que, depois de aterrarem aqui e ali, requereriam muitos cuidados e períodos de convalescença; nem sequer de a decisão de enviar tais entusiastas ser insensata e cruel. O cerne da questão residia no facto de o homem ter querido conquistar o Universo sem ter resolvido os seus próprios problemas na Terra, como se não fosse óbvio que os voos heróicos não fariam nada para aliviar o mar de sofrimento humano, injustiça, medo e fome do Globo. Mas, como disse, só a primeira geração betrizada pensou assim, porque depois, seguindo o curso natural das coisas, vieram o esquecimento e a indiferença. As crianças ficavam maravilhadas quando aprendiam a conhecer um pouco do romântico período da astronáutica, e provavelmente até sentiam um certo medo dos seus antepassados, que lhes eram tão estranhos e tão incompreensíveis como os antepassados que empreenderam guerras pelo saque e viagens na mira do ouro. Muito mais do que a condenação, o que me apavorava era a indiferença: o trabalho da nossa vida tinha sido envolvido em silêncio, enterrado e esquecido. Eri não tentava atiçar em mim entusiasmo por este mundo novo, não fazia nenhum esforço para me converter; falava-me simplesmente dele ao falar de si mesma, e eu — precisamente porque ela falava de si e era testemunha pessoal dele— não podia fechar os olhos às suas virtudes. Era uma civilização que se libertara do medo. Tudo quanto existia servia as pessoas. Nada pesava a não ser o seu bem-estar, a satisfação das suas necessidades, tanto das básicas como das mais sofisticadas. Em toda a parte — em todas as passagens da vida onde a presença do homem, a falibilidade das suas paixões e a lentidão dos seus reflexos podiam criar o mais pequeno dos riscos — o homem era substituído por dispositivos sem vida, por autómatos. Era um mundo que expulsava o perigo. Ameaça, conflito, todas as formas de violência, eram coisas que não tinham lugar nele. Era um mundo de tranquilidade, de maneiras e costumes brandos, de transições fáceis, de situações sem dramatismos, todo ele tão espantoso como a minha ou a nossa (estou a pensar no Olaf) reacção a ele. Nós, no curso de 10 anos, passáramos por tantos horrores, por tantas coisas que eram inimigas do homem, que o feriam e esmagavam, e voltáramos, voltáramos fartos, tão fartos! Se algum de nós tivesse ouvido dizer que o regresso teria de ser adiado, que teríamos de passar mais alguns meses no espaço, ter-se-ia provavelmente atirado à garganta de quem o dissesse. E agora que já não podíamos suportar o risco constante, a probabilidade do choque com um meteorito, a incerteza infindável, o inferno por que passáramos quando um Arder ou um Ennesson não regressavam de um voo de reconhecimento, agora começáramos imediatamente a referir-nos a esse tempo de terror como à única coisa decente e certa, que nos dava dignidade e objectivo. No entanto, eu ainda estremecia à simples lembrança de como, sentados, deitados ou suspensos nas posições mais singulares acima da cabina de rádio circular, esperáramos num silêncio quebrado somente pelo zumbido firme do sinal do scanner automático da nave, vendo à luz azul-chumbo correr o suor pela testa do operador petrificado na mesma espera — enquanto o relógio, com o alarme regulado, avançava silenciosamente até chegar enfim o momento em que o ponteiro tocava na marca vermelha do mostrador, o momento de alívio. Alívio… porque então era possível sair, explorar e morrer sozinho, e isso parecia verdadeiramente mais ácil do que esperar. Nós, pilotos, os não cientistas, constituíamos a velha guarda; o nosso tempo parara três anos antes do início, de facto, da expedição. Nesses três anos submetemo-nos a uma sucessão de testes de crescente pressão psicológica. Havia três estádios, três estações, a que chamávamos o Palácio do Fantasma, o Espremedor e a Coroação. O Palácio do Fantasma: éramos fechados num pequeno compartimento, completamente isolados do mundo. Não chegava ao interior nenhum som, nenhum raio de luz, nenhum bafo de ar nem nenhuma vibração do exterior. Semelhante a um pequeno foguetão, o compartimento estava equipado com um simulador dos seus comandos e dos seus fornecimentos de água, comida e oxigénio. E um homem tinha de lá permanecer, ocioso, sem nada, absolutamente nada, que fazer, durante um mês que parecia uma eternidade. Ninguém de lá saía o mesmo que entrara. Eu, um dos mais resistentes sujeitos do Dr. Janssen, comecei a ver na terceira semana coisas estranhas que outros tinham observado logo a partir do quarto ou quinto dia: monstros sem rosto, multidões informes que borbotavam dos mostradores devidamente reluzentes para estabelecerem conversas insensatas comigo ou pairar por cima do meu corpo suado, do meu corpo que perdia os seus contornos, se modificava, tornava maior e finalmente — a mais assustadora de todas as coisas — começava a assumir uma independência, primeiro sob a forma de espasmos de músculos individuais, depois, após um formigueiro e uma dormência, sob a forma de contracções e, por fim, de movimentos, enquanto eu observava, estupefacto e sem compreender. Não fora o treino preliminar, não fora a instrução teórica, e teria jurado que os meus braços, a minha cabeça e o meu pescoço tinham sido possuídos por demónios. O interior estofado do compartimento tinha visto coisas que desafiavam a descrição. Janssen e os seus assistentes, com o equipamento apropriado, acompanhavam o que se passava lá dentro, mas nenhum de nós o sabia na altura. A sensação de isolamento tinha de ser genuína e completa. Por isso, o desaparecimento de alguns dos assistentes do doutor constituiu um mistério para nós. Foi só durante a viagem que Gimma me disse que eles tinham pura e simplesmente estoirado, marado. Um deles, um tal Gobbek, tentara aparentemente arrombar o compartimento, incapaz de suportar o tormento do homem que lá se encontrava dentro. Mas isso era apenas o Palácio do Fantasma. Pois a seguir vinha o Espremedor com os seus empurradores e as suas centrifugadoras, a sua infernal máquina aceleradora capaz de produzir 400 gs — uma aceleração nunca utilizada, evidentemente, pois transformaria um homem numa poça. Mas os 100 gs chegavam para que as costas de um indivíduo ficassem viscosas de alto a baixo, com sangue espremido através da pele. Passei o último teste, a Coroação, com distinção. Era a última peneira, o derradeiro estádio para nos excluir. Al Martin, um calmeirão, que, na altura, na Terra, parecia o que pareço hoje, um gigante, um matacão de músculos de ferro, e tão calmo quanto era possível desejar, voltou à Terra, da Coroação, num estado tal que o removeram imediatamente do centro. A Coroação era uma coisa muito simples. Vestiam um fato a um homem, levavam-no e colocavam-no em órbita e a uma altitude de diversas centenas de milhares de quilómetros, quando a Terra brilha como a Lua multiplicada cinco vezes, atiravam-no simplesmente para fora do foguetão, para o espaço, e afastavam-se. A pairar, a mover os braços e as pernas, tinha de esperar pelo regresso dos outros, de esperar que o recolhessem. O fato espacial era seguro e confortável, tinha oxigénio, ar condicionado, aquecimento e até um sistema de alimentação do indivíduo, com uma pasta espremida de duas em duas horas de um bucal especial. Portanto, não podia acontecer nada, a não ser que houvesse algum mau funcionamento do pequeno rádio preso à parte de fora do fato e que assinalava automaticamente a localização daquele que o usava. Só faltava uma coisa ao fato: um receptor — o que significava que o homem não podia ouvir outra voz além da sua. Com o vazio e as estrelas à sua volta, suspenso, imponderável, tinha de esperar. É verdade que a espera era relativamente longa, mas não exageradamente. E era tudo. No entanto, havia quem enlouquecesse com isso, quem começasse com convulsões epilépticas. Era o teste que ia mais contra o que existe num homem, era uma aniquilação total, uma condenação, uma morte com plena e continuada consciência. Era um sabor de eternidade que entrava no indivíduo e o deixava conhecer o seu horror. Adquiríamos o conhecimento, sempre considerado impossível e impalpável, do abismo cósmico que se estendia em todas as direcções; a queda interminável, as estrelas entre as pernas inúteis e pendentes, a futilidade, a inutilidade dos braços, da boca, dos gestos, do movimento e da inércia; no fato especial um grito de rebentar os tímpanos, os desgraçados a uivar… Basta. Não há necessidade de nos determos no que, no fim de contas, era apenas um teste, uma introdução intencional, planeada com cuidado, com precauções de segurança: fisicamente, nenhum dos «coroados» foi lesado e o foguetão da base recuperou-os a todos. É verdade, porém, que também não nos diziam isso, para que a situação se mantivesse tão autêntica quanto possível. A Coroação correu-me bem. Tinha o meu sistema, que era muito simples e completamente desonesto. Não estava previsto que o adoptássemos. Quando me atiraram para fora da escotilha, fechei os olhos e depois pensei em várias coisas. A única coisa de que precisávamos, e em grande quantidade, era força de vontade. Tínhamos de dizer a nós próprios que não devíamos abrir os desgraçados dos olhos acontecesse o que acontecesse. Creio que Janssen soube do meu estratagema. Mas não houve repercussões. Tudo isto, porém, teve lugar na Terra ou na sua proximidade. Seguiu-se um espaço que não foi concebido nem criado no laboratório, um espaço que matava de facto, sem faz de conta, e que algumas vezes poupava — Olaf, Gimma, Thurber, eu próprio e os sete do Ulysses— e até nos permitia regressar. Após o que, nós que acima de tudo desejávamos paz, vendo o nosso sonho tornado realidade, e com perfeição, imediatamente o desdenhávamos. Creio que foi Platão quem disse: «Ó desgraçado, terás o que quiseste!» VII Uma noite, muito tarde, estávamos deitados, exaustos. A cabeça de Eri, vira Ja para um lado, descansava na curva do meu braço. Levantei os olhos para a janela aberta e vi as estrelas nos espaços entre as nuvens. Não havia vento, a cortina pendia imóvel como um pálido fantasma, mas uma onda desolada avançou do vasto oceano e eu ouvi o longo ribombar que a anunciou e depois o furioso rugido da rebentação na praia. Seguiram-se vários momentos de silêncio e de novo a água invisível investiu contra a praia nocturna. Mas eu mal prestava atenção àquele recordar firme e repetido da minha presença na Terra, pois os meus olhos estavam fixos no Cruzeiro do Sul, do qual Beta fora a nossa estrela guia. Todos os dias me orientava por ela. automaticamente, com os pensamentos noutras coisas. Conduzira-nos sem falhas, impecavelmente, como um farol que nunca se apagava no espaço. Quase sentia nas mãos as pegas metálicas que movimentava para colocar o ponto luminoso, distinto na escuridão, no centro do campo de visão, com a orla de borracha macia do aparelho ocular encostado à testa e às faces. Beta. uma das estrelas mais distantes, quase não se modificou quando chegámos ao nosso destino. Brilhava com a mesma indiferença. embora o Cruzeiro do Sul tivesse desaparecido havia muito para nós. porque nos lançáramos profundamente nos seus braços. Depois, aquele ponto de luz branca, aquela estrela gigante, já não era o que parecera no princípio: um desafio. A sua imutabilidade revelava o seu verdadeiro significado: que era uma testemunha da nossa passagem, da indiferença do vazio do Universo — uma indiferença que ninguém é, nunca, capaz de aceitar. Ma.-, naquele momento, ao tentar ouvir o som da respiração de Eri entre os bramidos do Pacífico, senti-me incrédulo. Disse para comigo, silenciosamente: «É verdade, é verdade, estive ali». Mas o meu espanto permaneceu. Eri estremeceu e eu comecei a afastar-me. para lhe dar mais espaço, mas de súbito senti o seu olhar posto em mim. — Não estás a dormir? — perguntei, num murmúrio, e inclinei-me para tocar os seus lábios, mas ela colocou as pontas dos dedos na boca. Deixou-os ficar um momento e depois desceu-os ao longo da clavícula até ao peito, apalpou a cavidade dura entre as minhas costelas e comprimiu-a com a palma da mão. — Que é isto? — sussurrou. — Uma cicatriz. — Que aconteceu? — Tive um acidente. Calou-se e eu senti-a a olhar para mim. Levantou a cabeça. Os seus olhos eram só escuridão, sem o mínimo brilho. Eu via o contorno do seu braço, a mover-se ao ritmo da respiração. — Por que não me dizes nada? — Eri… — Por que não queres falar? — Acerca das estrelas? Compreendi de súbito. Ela calou-se e eu fiquei sem saber que dizer. — Pensas que eu não compreenderia? Olhei-a atentamente, no escuro, como se o rugido do oceano fluísse e refluísse através do quarto. Não sabia como explicar-lhe. — Eri… Tentei tomá-la nos braços, mas ela libertou-se e sentou-se na cama. — Não és obrigado a falar se não quiseres. Mas diz-me ao menos porquê. — Não sabes? Não sabes realmente? — Agora, talvez. Querias… poupar-me? — Não. Tenho simplesmente medo. — De quê? lbfc66-n 161 — Não sei bem. Não quero desenterrar tudo. Isso não significa que negue alguma coisa. De resto, seria impossível. Mas falar a esse respeito significaria — ou assim me parece — fechar-me dentro do que se passou. Isolado de toda a gente, de tudo, do que é… o presente. — Compreendo — disse serenamente. A mancha branca do seu rosto desapareceu; baixara a cabeça. — Pensas que não sei apreciar. — Não, não — tentei interrompê-la. — Espera, agora é a minha vez. O que penso a respeito da astronáutica e o facto de que jamais deixaria a Terra, são uma coisa. Mas não têm nada a ver contigo e comigo. Embora na realidade tenham, pois estamos juntos. De outro modo não estaríamos, nunca. Para mim, és tu. É por isso que gostaria… mas não és obrigado. Se é como dizes, se sentes assim. — Eu digo-te. — Mas não hoje. — Hoje. — Deita-te. Deixei-me cair nas almofadas. Ela foi em bicos de pés à janela, uma brancura na escuridão, e correu a cortina. As estrelas desapareceram e ficou apenas o rugido lento do Pacífico, a voltar repetidamente, com uma persistência monótona. Eu não via praticamente nada. O movimento do ar denunciou os passos dela e a cama afundou-se um pouco. — Viste alguma vez uma nave do tipo do Prometheus! — Não. — É grande. Na Terra pesaria mais de trezentas mil toneladas. — E vocês eram tão poucos? — Éramos doze: Tom Arder, Olaf, Ame, Thomas— os pilotos, incluindo eu — e os sete cientistas. Se pensas que aquilo estava vazio, enganas-te. A propulsão ocupava nove décimos da massa. Fotoagregados. Armazenagem, provisões, unidades de reserva. O espaço para viver era na verdade pequeno. Cada um de nós tinha uma cabina, além dos espaços comuns. Na parte média do corpo, o centro de comando, os pequenos foguetões de desembarque e as sondas ainda mais pequenas, para recolher amostras da coroa… — E tu estiveste sobre Arcturus numa delas? — Estive. E o Arder também. — Por que não voaram juntos? — Num foguetão? É mais arriscado desse modo. — Mais arriscado como? — Uma sonda é um sistema de arrefecimento, uma espécie de refrigerador voador. Só tem espaço suficiente para nos sentarmos. Sentamo-nos dentro de uma cápsula de gelo. O gelo funde-se no escudo e volta a congelar nos tubos. Os compressores de ar podem ser danificados. Basta um momento apenas, porque no exterior a temperatura é de dez ou doze mil graus. Quando os canos param num foguetão de dois homens, são dois homens que morrem. De outro modo, é só um. Compreendes? — Compreendo. Colocou a mão naquela parte insensível do meu peito. — E isto… aconteceu lá? — Não, Eri. Queres que te conte? — Está bem. — Mas não penses… Ninguém sabe a esse respeito. — Isto? A cicatriz pareceu regressar à vida sob o calor dos seus dedos. — Sim. — Como é possível? E o Olaf? — Nem mesmo o Olaf. Ninguém sabe. Eu menti-lhes, Eri. Agora tenho de te dizer a ti, já que comecei. Eri… deu-se no sexto ano. Regressávamos, mas nas regiões enevoadas não é possível movimentar-nos depressa. É um espectáculo magnificente. Quanto mais velozmente a nave viaja, tanto mais forte é a luminescência da nuvem. Tínhamos uma cauda atrás de nós — não como as dos cometas, era mais uma aurora polar, ténue aos lados, profundamente mergulhada no céu, na direcção de Alpha Eridanus, ao longo de milhares e milhares de quilómetros… O Arder e o Ennesson já tinham perecido, nessa altura. O Venturi também morrera. Eu acordava às seis da manhã, quando a luz mudava de azul para branco. Ouvi o Olaf falar aos comandos. Localizara qualquer coisa interessante. Desci. O radar mostrou um ponto, ligeiramente fora do rumo. Thomas apareceu também e perguntámo-nos o que poderia ser. Era grande de mais para ser um meteoro e, de resto, os meteoros nunca aparecem isolados. Reduzimos a velocidade, o que acordou os restantes. Lembro-me de que, quando se nos reuniram, o Thomas disse que tinha de ser uma nave. Brincávamos muitas vezes desse modo. Pode haver no espaço outras naves de outros sistemas, mas dois mosquitos soltados em extremidades opostas da Terra têm maiores probabilidades de se encontrar. Entretanto, alcançáramos uma aberta na nuvem e a fria poalha nebulosa tomou-se tão dispersa que podíamos ver a olho nu as estrelas de sexta grandeza. Afinal, o ponto era um planetóide. Qualquer coisa como Vesta. Um quarto de bilião de toneladas ou talvez mais. Extraordinariamente regular, quase esférico, o que é raro. Dois miliparsecs ao largo da proa. Estava em movimento e nós seguimo-lo. Thurber perguntou-me se nos podíamos aproximar mais. Respondi-lhe que nos podíamos aproximar um quarto de miliparsec. «Aproximámo-nos. Visto ao telescópio parecia um porco-espinho, uma bola eriçada de espinhos, Uma excentricidade própria de rfiuseu. Thurber começou a discutir com Biel a respeito da sua origem, se era ou não tectónica. Thomas interveio, para dizer que isso não se podia determinar. Não haveria nenhuma perda de energia; nem sequer começáramos a acelerar. Voaríamos até lá, recolheríamos alguns espécimes e regressaríamos. Gimma hesitou. O tempo não constituía nenhum problema. Tínhamos algum a mais. Por fim, concordou. Sem dúvida por eu estar presente, apesar de não ter aberto a boca. Talvez até por isso. As nossas relações tinham-se tornado… Mas essa é outra história. Parámos. Uma manobra deste género leva tempo e, entretanto, o planetóide afastou-se, mas nós tínhamo-lo no radar. Eu estava preocupado, porque a partir do momento em que iniciáramos o regresso só tivéramos problemas. Avarias que não sendo graves eram no entanto difíceis de consertar e que aconteciam sem qualquer razão aparente. Não sou supersticioso, mas acredito em séries. No entanto, não tinha nada a argumentar contra a ida dele. Talvez tenha parecido infantil, mas verifiquei pessoalmente o motor do Thomas e disse-lhe que tivesse cuidado com a poeira. — Com o quê? — A poeira. Compreendes, na região de uma nuvem fria os planetóides actuam como aspiradores. Removem a poeira do espaço no seu caminho, o que se prolonga durante um longo período de tempo. A poeira assenta em camadas que podem duplicar o tamanho do planetóide. A rajada de um jacto ou até um passo pesado bastam para provocar uma nuvem de poeira turbilhonante, que paira sobre a superfície. Pode não parecer grave, mas não se consegue ver nada. Eu disse-lho. Mas ele sabia-o tão bem como eu. Olaf lançou-o pelo lado da nave e eu fui para a navegação e comecei a guiá-lo. Vi-o aproximar-se do planetóide, manobrar, virar o foguetão e descer para a superfície, como que suspenso de uma corda. Depois, claro, perdi-o de vista. Ma isso foi cinco quilómetros… — Viram-no no radar? — Não, no sistema óptico; quer dizer, por telescópio. Infravermelho. Mas eu pude falar o tempo todo com ele. Pela rádio. Precisamente quando estava a pensar que havia muito tempo não via o Thomas fazer uma aterragem tão cuidadosa — no regresso tomáramo-nos todos cuidadosos —, vi um pequeno clarão e uma mancha negra começou a alastrar através da superfície do planetóide. Gimma, que estava a meu lado, gritou. Pensou que Thomas, para travar no último momento, tinha batido na chama. Trata-se de uma expressão que usamos. Faz-se o motor ter uma breve explosão, mas, naturalmente, não em semelhantes circunstâncias. E eu sabia que o Thomas seria incapaz de fazer tal coisa. Tinha de ser um relâmpago. — Um relâmpago? Lá? — Sim. Qualquer corpo que se desloque a velocidade elevada através de uma nuvem acumula carga, electricidade estática, devido ao atrito. Havia uma diferença de potencial entre o Prometheus e o planetóide. Podia ser de biliões de vóltios. Ou até mais. Quando Thomas aterrou, saltou uma centelha. Foi esse o clarão que vimos. E por causa do calor súbito a poeira subiu e num instante toda a superfície ficou coberta por uma nuvem. Não conseguíamos ouvi-lo. O seu rádio só emitia estalidos. Eu estava furioso, principalmente comigo próprio, por ter subestimado as circunstâncias. O foguetão tinha condutores especiais de relâmpagos em garfo, e a carga deveria ter-se transformado sem problemas em fogo-de-santelmo. Mas não transformou. Era excepcionalmente potente. Gimma perguntou-me quando calculava que a poeira assentaria. Thurber não perguntou; era claro que levaria dias. — Dias? — Sim, porque a gravidade era baixíssima. Se largássemos uma pedra, 164 levaria horas a cair antes de atingir o chãô. Imagina quanto mais tempo seria preciso para que a poeira assentasse, depois de ter sido atirada a cem metros de altura. Disse a Gimma que fosse tratar da sua vida, pois teríamos de esperar. — E não se podia fazer nada? — Não. Se eu pudesse ter a certeza de que o Thomas ainda se encontrava dentro do foguetão, teria corrido o risco e voltado o Prometheus. chegado junto do planetóide e atirado a poeira para todos os cantos da galáxia. Mas não podia ter a certeza. E encontrá-lo? A superfície do planetóide tinha uma área igual, sei lá, à da Córsega. Além disso, com a nuvem de poeira, era possível passar a pouca distância dele e não o ver. Só havia uma solução, e essa estava nas mãos dele. Podia ter levantado voo e regressado. — Não o fez? — Não. — Sabes porquê? — Calculo. Teria tido de levantar voo às cegas. Eu podia ver que a nuvem não chegava a atingir um quilómetro acima da superfície, mas ele ignorava-o. Tinha medo de chocar com alguma saliência ou com uma rocha. Podia ter aterrado no fundo de alguma garganta funda. Por isso, deixámo-lo ficar ali um dia, dois dias… Ele tinha oxigénio e provisões para seis. Rações de emergência. Ninguém estava em situação de fazer nada. Nós andávamos de um lado para o outro e pensávamos em maneiras de tirar Thomas daquela complicação. Emissores. Diferentes comprimentos de onda. Até lançámos foguetes luminosos. Mas não deram resultado, porque a nuvem era negra como um túmulo. Um terceiro dia e uma terceira noite. As nossas medições demonstravam que a nuvem estava a assentar, mas eu não tinha a certeza de que a poeira acabasse por descer nas setenta horas que restavam ao Thomas. Ele poderia resistir mais tempo sem comida, mas não sem oxigénio. Então tive uma ideia. Raciocinei do seguinte modo: o foguetão do Thomas era construído principalmente de aço. Desde que não houvesse minérios ferrosos naquela maldito planetóide, talvez fosse possível localizá-lo com um indicador ferromagnético — um instrumento para encontrar objectos de ferro. Nós tínhamos um muitíssimo sensível, capaz de localizar um prego a três quartos de quilómetro. E um foguetão a vários quilómetros. Olaf e eu examinámos o aparelho. Depois eu disse a Gimma e parti. — Sozinho? — Sim. — Porquê? — Porque sem o Thomas só restávamos nós os dois e o Prometheus precisava de ter um piloto. — E eles concordaram? Sorri, no escuro. — Eu era o primeiro-piloto. Gimma não me podia dar ordens, mas sim, apenas, sugestões que eu avaliava e a que respondia sim ou não. Claro que a maior parte das vezes respondia sim. Mas em emergências a decisão era minha. — E o Olaf? — Bem, já conheces um pouco o Olaf. Como podes imaginar, não pude partir logo. No fim de contas, bem vistas as coisas, eu é que tinha mandado o Thomas para baixo. O Olaf não podia negar isso. Portanto, parti. Sem foguetão, evidentemente. — Sem foguetão? — Sim. Num fato com propulsor a gás. Demorou um bocado, mas não muito tempo. Tive alguma dificuldade com o detector, que era praticamente uma caixa e pouco fácil de manejar. Sem peso, claro, mas quando entrei na nuvem tive de ter cuidado para não embater em nada. Deixei de ver a nuvem à medida que me aproximei dela. Primeiro as estrelas começaram a desaparecer, algumas de cada vez, na periferia; depois, metade do céu ficou preto. Olhei para trás e vi o Prometheus a brilhar ao longe — a nave tinha equipamento especial, que lhe tomava o casco luminoso. Parecia um comprido lápis branco com uma bola numa extremidade, o farol fotónico. Depois desapareceu tudo. A transição foi muito abrupta. Talvez um segundo de névoa preta e depois nada. O meu rádio estava desligado; em vez dele, tinha o detector preso aos auriculares. Bastaram-me poucos minutos para voar para a orla da nuvem, mas precisei de mais de duas horas para descer para a superfície. Precisava de ter cuidado. A lanterna eléctrica revelou-se inútil, como eu esperara. Iniciei a busca. Sabes o aspecto das estalactites em grutas? — Sei. — Era qualquer coisa assim, mas ainda mais estranho. Estou a falar do que vi depois, quando a poeira assentou, porque durante a busca não consegui ver nada, como se alguém tivesse coberto a viseira do meu fato de alcatrão. Levava a caixa presa por correias. Orientei a antena e escutei; depois caminhei com ambos os braços estendidos. Nunca tropecei tanto na minha vida. Se me não aconteceu nada devo-o apenas à baixa gravidade. Claro que com um pouco de visibilidade um homem poderia recuperar o equilíbrio dez vezes mais depressa. Mas assim… É difícil explicar a alguém que nunca o experimentou. O planetóide era todo constitiído por picos irregulares, com pedregulhos amontoados à sua volta, e todas as vezes que pousava o pé eu começava a cair, com aquele movimento lento que faz lembrar um ébrio, e não podia saltar para trás: isso ter-me-ia lançado pelos ares durante um quarto de hora. Tinha simplesmente de esperar e de continuar a tentar, para avançar. O cascalho escorregava debaixo de mim — fragmentos de pedras, colunas, estilhaços de rocha—, tudo mal assente no seu lugar, pois a força que os mantinha era extraordinariamente fraca— o que não quer dizer que se um pedregulho acertasse num homem o não matasse. Nesse caso, seria a massa que actuaria e não o peso. Claro que haveria tempo para uma pessoa saltar e se desviar, se visse a coisa cair… ou pelo menos se a ouvisse. Mas nas circunstâncias não havia ar e, por isso, era só pela vibração debaixo dos pés que eu sabia se voltaria a fazer ruir alguma estrutura de rocha. E não podia fazer nada a não ser esperar que um fragmento saísse do negrume de pez e começasse a esmagar-me… Vagueei durante horas e deixei de considerar brilliante a minha ideia de utilizar o detector. Também precisava de ter cuidado porque, de vez em quando, dava comigo no ar, isto é, a flutuar como num sonho apalhaçado. Por fim, captei um sinal. Devo tê-lo perdido umas oito vezes, não me lembro ao certo, mas quando encontrei o foguetão era noite no Prometheus. «0 foguetão encontrava-se num ângulo, meio enterrado naquela diabólica poeira. Era a coisa mais macia, mais delicada, que possas imaginar. Quase insubstancial. O mais leve cotão, na Terra, ofereceria maior resistência. As partículas eram incrivelmente pequenas. Inspeccionei o interior do foguetão. Ele não estava lá. Disse que o foguetão se encontrava num ângulo, mas não tinha a certeza disso; era impos,sível encontrar a vertical sem utilizar equipamento especial, e isso teria levado pelo menos uma hora e um fio de prumo convencional, que não pesava praticamente nada, seria inútil, pois a cabeça não chegaria para manter a linha esticada… Na altura, não fiquei surpreendido por ele não ter tentado levantar voo. Entrei. Verifiquei imediatamente que Thomas improvisara qualquer coisa para determinar a vertical, mas que não funcionara. Havia ainda muita comida, mas nenhum oxigénio. Devia tê-lo transferido todo para o tanque do fato e partido. — Porquê? — Sim, porquê? Ele estivera ali três dias. Naquele tipo de foguetão há apenas um assento, um pára-brisa, os comandos, alavancas e uma escotilha na retaguarda. Sentei-me lá um bocado e compreendi que nunca seria capaz de o encontrar. Durante um segundo, pensei que talvez ele tivesse partido precisamente quando eu aterrara, que utilizara o seu propulsor a gás para regressar ao Prometheus e se encontrava a bordo enquanto eu andara à toa por cima daquelas estúpidas pedras… Saltei do foguetão tão energicamente que voei para cima. Sem nenhum sentido de direcção, sem nada. Sabes o que acontece quando vemos uma centelha na escuridão total? Os olhos fantasiam, há raios, visões… Bem, com o sentido do equilíbrio pode acontecer uma coisa semelhante. Com uma gravidade zero não há problema, uma pessoa acostuma-se. Mas quando a gravidade é extremamente fraca, como naquela planetóide, o ouvido interno reage erradamente, se não irracionalmente. Uma pessoa pensa que está a subir velozmente, como uma peça de fogo-de-artifício, depois a descer, etc. E sucedem-se as sensações de girar e rodar dos braços, das pernas e do tronco, como se as partes do nosso corpo mudassem de lugar e a cabeça não estivesse no lugar que lhe pertence… «Foi assim que eu voei até colidir com uma parede, ricochetear, embater em qualquer coisa, ser outra vez atirado e conseguir agarrar-me a uma pedra saliente… Estava lá alguém deitado: o Thomas. Ela continuou calada. Na escuridão, o Pacífico rugia. — Não, não é o que tu pensas. Ele estava vivo. Sentou-se imediatamente e eu liguei o rádio. A distância era tão curta que podíamos comunicar perfeitamente. «És tu? ouvi-o perguntar. «Sou eu, respondi. «Parecia uma cena de uma farsa ridícula, de tão espantosa. Mas foi assim que aconteceu. Levantámo-nos. «Como te sentes? perguntei. «Óptimo. E tu? «A resposta surpreendeu-me um pouco, mas redargui: «Muito bem, obrigado. E lá em casa também estão todos bem. «Idiota, sem dúvida, mas eu pensei que ele tinha falado assim para mostrar que estava a aguentar-se, compreendes? — Compreendo. — Quando parou junto de mim, vi-o como uma mancha de escuridão mais densa à luz da minha lâmpada de ombro. Passei as mãos pelo seu fato. Não estava avariado. «Tens oxigénio suficiente? perguntei, pois isso era o mais importante. «Oue importa? respondeu-me. «Perguntei a mim mesmo que devia fazer a seguir. Pôr o seu foguetão a funcionar? Seria demasiado arriscado. Para dizer a verdade, nem sequer me sentia muito satisfeito. Estava receoso… ou melhor, inseguro. É difícil explicar. A situação era irreal, eu pressentia algo de estranho nela, embora não soubesse exactamente o quê. Nem sequer sabia ao certo o que sentia. A não ser que não estava satisfeito com aquele miraculoso encontro. Tentei imaginar uma maneira de salvar o foguetão. Mas isso, pensei, não era o mais importante. Primeiro precisava de saber em que estado Thomas se encontrava. Estávamos ali parados os dois, na noite sem estrelas. «Oue andaste a fazer durante este tempo todo? perguntei. Isso era importante. Se ele tivesse tentado fazer alguma coisa, nem que fosse recolher algumas amostras minerais, seria bom sinal. «Diversas coisas, respondeu-me. E tu, que andaste a fazer. Tom? «Tom? perguntei e senti-me gelar, pois Tom Arder morrera havia um ano e ele sabia-o muito bem. «Tu és o Tom, não és? Reconheço a tua voz. «Não disse nada. Ele tocou-me no fato com a mão enluvada e disse: «Desagradável, não é? Nada para ver, e nada de nada. Eu tinha-o imaginado de modo diferente. E tu? «Pensei que estava a imaginar coisas relacionadas com o Arder. Era uma coisa que tinha acontecido a alguns de nós. «Não, isto aqui não é muito interessante, respondi-lhe. Vamo-nos embora, Thomas, que dizes? «Embora? Mostrou-se surpreendido. De que estás a falar. Tom? «Eu já não prestava atenção ao seu Tom. «Queres ficar aqui? perguntei. «E tu não queres?. «Pensei que estava a mangar comigo, mas achei que já bastava de brincadeiras estúpidas. «Não, respondi. Temos de regressar. Onde está a tua pistola? «Perdi-a quando morri. «O quê? «Mas não me importei. Um morto não precisa de pistola." «"Está bem… Anda, eu ato-te a mim e partimos. «"Endoideceste, Tom"? Partimos para onde?" «Regressamos ao Prometheus. «"Mas não está aqui…" «"Está além. Deixa-me atar-te." «"Espera. «E empurrou-me. «Falas de modo estranho. Não és o Tom!" «"Pois não. Sou o Hal." «Também morreste? Quando?" «Compreendi então o que se passava e resolvi fazer o jogo dele. «Oh. há alguns dias! Mas deixa-me atar-te…" «Ele não queria. Começámos de brincadeira, a gracejar, ao princípio como que bem-humoradamente. mas depois as coisas tornaram-se mais sérias. Tentei agarrá-lo, mas com o fato não pude. Que havia de fazer? Não podia deixá-lo nem por um momento sequer: não voltaria a encontrá-lo segunda vez. Os milagres náo acontecem duas vezes. E ele queria ficar ali, como morto. Depois, quando pensei que o convencera, quando me pareceu disposto a concordar e lhe pedi que me segurasse no propulsor a gás, ele encostou a sua cara à minha, tão encostada que quase o vi através dos vidros, e gritou: Sacana! Enganaste-me! Estás vivo!" E disparou contra mim. Havia algum tempo que sentia a cara de Eri encostada às minhas costas. Ao ouvir as últimas palavras, estremeceu, como se a percorresse uma corrente eléctrica, e cobriu-me a cicatriz com a mão. Ficámos um bocado em silêncio. — Era um fato muito bom — prossegui. — Não se rasgou. Entrou no meu corpo, partiu-me uma costela, dilacerou-me alguns músculos, mas não se rasgou. Nem sequer perdi a consciência, mas o meu braço direito imobilizou-se e uma sensação quente disse-me que sangrava. No entanto, durante um momento devo ter ficado confuso, pois quando me levantei o Thomas desaparecera. Procurei-o. a tactear de gatas, mas em vez dele encontrei o propulsor. Devia tê-lo deixado cair imediatamente após ter disparado. Com o propulsor consegui regressar à nave. Eles viram-me no momento em que saí da nuvem. Olaf aproximou a nave e puxaram-me para dentro. Disse que não tinha conseguido encontrá-lo. Que encontrara apenas o foguetão vazio e o propulsor me caíra da mão e disparara quando eu tropeçara. O fato tinha duas camadas. Um bocado do forro metálico soltou-se e eu tenho-o aqui. debaixo da costela. De novo silêncio e o bramir de uma onda, em crescendo, como se tomasse balanço para um salto através de toda a praia, como se o fracasso das suas inúmeras predecessoras a não tivesse desencorajado. Ao desfazer-se espraiou-se, tomou-se uma pulsação suave, mais próxima e mais silenciosa. até que deixou por completo de se ouvir. — Partiram? — Não. Esperámos. Passados mais dois dias a nuvem assentou e eu desci segunda vez. Sozinho. Compreendes porquê, independentemente de todas as outra razões? — Compreendo. — Encontrei-o depressa. O seu fato brilliava na escuridão. Jazia aos pés de um pináculo. O seu rosto não se via, pois o vidro estava enevoado do lado de dentro. Quando o levantei, pensei por momentos que segurava num fato vazio: não pesava quase nada. Mas era ele. Deixei-o e regressei no seu foguetão. Mais tarde, examinei-o cuidadosamente e descobri o que acontecera. O relógio parara — era um relógio vulgar — ele perdera toda a noção do tempo. O relógio media horas e dias. Consertei-o e voltei a instalá-lo, para que ninguém desconfiasse. Abracei-a. O meu hálito agitou-lhe o cabelo. Tocou na cicatriz e, de súbito, o que fora uma carícia transformou-se numa pergunta: — A sua forma… — É peculiar, não é? Foi cosida duas vezes. Os pontos rebentaram, da primeira vez… Quem fez a sutura foi o Thurber, porque Venturi, o nosso médico, já tinha morrido nessa altura. — O que te deu o livro encarnado? — Sim. Mas como o sabes, Eri? Fui eu que te disse? Não, impossível. — Falaste com o Olaf, antes… lembras-te? — Tens razão. Mas, imagina, lembrares-te disso! Uma coisa tão insignificante. Sou realmente um suíno. Deixei-o no Promelheus, com tudo o mais. — Tens lá coisas? Em Luna? — Tenho. Mas não vale a pena trazê-las para cá. — Vale, sim, Hal. — Querida, transformaria a casa num memorial, num museu, e eu detesto esse género de coisas. Se as trouxer, será apenas para as queimar. Guardarei algumas como recordação dos outros. Aquela pedra… — Qual pedra? — Tenho uma quantidade de pedras. Há uma de Kereneia, outra do planetóide do Thomas… Mas não julgues que andei a apanhá-las! Prenderam-se simplesmente aos refegos das minhas botas. O Olaf soltava-as e guardava-as, devidamente rotuladas. Não consegui tirar-lhe essa mania da cabeça. Não é importante, mas… tenho de te dizer. Sim, devo dizer-te, realmente, para que não penses que tudo quanto lá se passou foi terrível e que nunca aconteceu nada a não ser morte. Tenta imaginar… uma fusão de mundos. Primeiro, cor-de-rosa, o mais leve e delicado cor-de-rosa, uma infinitude de cor-de-rosa, e, dentro dele, a penetrá-lo, um cor-de-rosa mais escuro, e mais afastado um vermelho quase azul, mas muito afastado, e a toda a volta uma fosforescência imponderável, que não se parecia com uma nuvem nem com uma neblina… era diferente. Não tenho palavras para o descrever. Nós dois saímos do foguetão e olhámos. Não compreendo, Eri. Ainda hoje, agora, sinto um aperto na garganta, tão belo era. Imagina: não havia vida alguma, nem plantas, nem animais, nem pássaros, nada. Não havia olhos para o testemunhar. Tenho a certeza de que desde a criação do Mundo ninguém vira aquilo, que nós fomos os primeiros, o Arder e eu, e de que se o gravímetro não se tem avariado, obiigando-nos a desembarcar para o calibrar, pois o quartzo estilhaçara-se e o mercúrio estava a entomar-se, se nâo fosse isso, ninguém, até ao fim do Mundo, ali pararia e o veria. Não é estranho? Sentia-se um impulso para… enfim, não sei. Não podíamos partir. Esquecemos por que desembarcáramos e deixámo-nos ficar, parados, a olhar. — Que era, Hal? — Não sei. Quando regressámos e dissemos aos outros, o Biel quis ir ver, mas não era possível. Não havia energia suficiente de reserva. Tiráramos muitas fotografias, mas não tinham saído bem. Nelas parecia tudo leite cor-de-rosa com paliçadas purpúreas, e Biel começou a falar da luminescência química dos vapores do hidrecto de silício. Duvido que ele acreditasse nisso, mas em desespero de causa, visto que nunca poderia investigar o caso, tentou apresentar uma explicação. Era como… como nada que eu tenha visto. Não temos quaisquer pontos de referência. Quaisquer analogias. Possuía uma profundidade imensa, mas não era uma paisagem. Aquelas diferentes tonalidades, como disse, cada vez mais distantes e escuras, até os nossos olhos se alagarem. Movimento: nenhum, realmente. Flutuava e permanecia imóvel. Mudava, como se respirasse, mas permanecia o mesmo; talvez a coisa mais importante fosse a sua enormidade. Como se, para além da sua cruel eternidade negra, existisse outra eternidade, outro infinito tão concentrado e forte, tão brilhante, que se fechássemos os olhos não poderíamos acreditar nele. Quando olhámos um para o outro… Precisarias de conhecer o Arder. Hei-de mostrar-te a sua fotografia. Aquilo é que era um homem! Maior do que eu, dava a impressão de ser capaz de passar através de qualquer parede sem dar sequer por isso. Falava sempre lentamente. Ouviste falar daquele… buraco em Kereneia? — Ouvi! — Ficou lá preso, na rocha. Debaixo dele fervia lama quente que de um momento para o outro podia esguichar através da espécie de cano onde ele estava preso. E Arder dizia: «Aguenta, Hal. Vou dar mais uma vista de olhos. Talvez se tirar a garrafa… não. Não sai, tenho as correias embaraçadas. Mas aguenta.» E assim por diante. Até parecia estar a falar ao telefone, do quarto do seu hotel. Não se tratava de uma pose; ele era mesmo assim. O mais sensato de todos nós, sempre a ponderar tudo. Foi por isso que depois voou comigo e não com o Olaf, que era seu amigo… mas tu já ouviste isso. — Já. — Mas eu estava a dizer… Arder… Quando olhei para ele, tinha lágrimas nos olhos. Tom Arder. E não se envergonhava delas, sequer. Não se envergonhou então nem depois. Todas as vezes que falávamos do assunto — e falávamos de tempos a tempos —, os outros ficavam furiosos. Pensavam que estávamos a inventar, a fingir. Porque nos tomáramos tão… beatíficos. E engraçado, não é? De qualquer modo, olhámos um para o outro e tivemos o mesmo pensamento, apesar de não sabermos calibrar devidamente o gravímetro, que era a nossa única possibilidade de encontrarmos o Prometheus. O nosso pensamento foi o seguinte: tinha valido a pena. Tinha valido a pena só por termos podido parar ali e admirar aquela majestade. — Estavam parados num monte? — Não sei. Era uma espécie de perspectiva diferente, Eri. Era como se olhássemos de uma grande altura, embora não fosse uma elevação. Espera um momento! Viste o Grand Canyon, no Colorado? — Vi. — Imagina que esse desfiladeiro é mil vezes maior. Ou um milhão de vezes. Que é feito de vermelho e rosa-dourado, quase completamente transparente, e que através dele podes ver todos os strata, pregas geológicas, anticlinais e sinclinais; que tudo isso é imponderável, flutua e parece sorrir-te. Não, não chega. Querida, tanto eu como o Arder nos esforçámos tremendamente por dizer aos outros, por lhes descrever o que víramos, mas não conseguimos. A pedra é de lá. O Arder apanhou-a, para lhe dar sorte. Tinha-a sempre consigo. Tinha-a com ele em Kereneia. Guardava-a numa caixa de comprimidos de vitaminas. Quando começou a esboroar-se, embrulhou-a em algodão. Mais tarde, quando regressei sem ele, encontrei a pedra debaixo da cama da sua cabina. Devia ter-lhe caído para lá. Creio que o Olaf estava convencido de que tinha sido essa razão que… mas não ousava dizê-lo, era muito estúpido. Que podia uma pedra ter a ver com o fio que causou a avaria do rádio de Arder?… VIII Entretanto, Qlaf não dava sinais de vida. Comecei por me sentir intranquilo e depois culpado. Com medo de que tivesse cometido alguma loucura. Porque ele ainda estava só, mais só ainda do que eu estivera. Não queria envolver Eri em acontecimentos imprevisíveis, e isso aconteceria se começasse a procurar pessoalmente. Por isso, decidi ir ter primeiro com Thurber. Não estava certo se iria pedir-lhe conselhos. Só queria vê-lo. Tinha sido o Olaf que me dera o endereço. Thurber estava no centro universitário de Malleolan. Telegrafei-lhe a avisá-lo da minha visita e separei-me de Eri pela primeira vez. Nos últimos dias ela andara reticente e nervosa, facto que atribuí a preocupação por Olaf. Prometi-lhe que voltaria o mais depressa que pudesse, provavelmente dentro de dois dias, e que não faria nada sem a consultar primeiro. Eri conduziu-me a Houl, onde embarquei num ulder directo. As praias do Pacífico já estavam desertas, dada a aproximação das tempestades do Outono. Os magotes coloridos de jovens tinham desaparecido da estâncias locais. Por isso, não me surpreendi de ser praticamente o único passageiro do projéctil prateado. O voo, através de nuvens que tornavam tudo irreal, durou quase uma hora e terminou ao crespúsculo. A cidade erguia-se através da escuridão que se adensava como um fogo multicolorido— os edifícios mais altos, em forma de taça, brilhavam no meio como chamas ténues e imóveis, com os seus contornos, recortados em nuvens brancas, a lembrar borboletas gigantes unidas por arcadas dos níveis mais altos; os níveis inferiores das ruas, a desembocar uns nos outros, formavam rios coleantes e coloridos. Talvez fosse por causa da neblina ou um efeito do material de construção semelhante a vidro, mas, de cima, a cidade parecia um aglomerado de gemas concêntricas, uma ilha de cristal cravejada de pedras preciosas a erguer-se do oceano, cuja superfície de espelho repetia mais e mais tenuemente os socalcos reluzentes, do primeiro até ao último, agora praticamente invisíveis, como se debaixo da cidade se encontrasse o seu incandescente esqueleto de rubi. Custava a crer que aquele conto de fadas de chama e cor misturadas fosse o lar de vários milhões de pessoas. O complexo universitário erguia-se fora da cidade. O meu ulder aterrou num imenso parque, numa plataforma de cimento. Somente a pálida claridade prateada através do céu, por cima da parede de árvores, indicava a proximidade da cidade. Uma longa avenida conduzia ao edifício principal, que estava escuro, como se deserto. Mal abri a enorme porta, o interior inundou-se de luz. Encontrei-me num vestíbulo abobadado, com azulejos azul-pálido. Uma rede de passagens à prova de som conduziu-me a um corredor simples e austero. Abri uma porta, depois outra, mas as salas estavam todas vazias, como se as pes.soas tivessem partido havia muito tempo. Subi um lanço de escada verdadeira. Devia haver um elevador algures, mas não.me apeteceu procurá-lo. Além disso, escadas que não se moviam era uma novidade. Ao cimo, seguindo em ambas as direcções havia outro corredor com salas vazias. Na porta de uma delas vi um pequeno papel com as palavras: «Aqui, Bregg.» Bati e ouvi a voz de Thurber. Entrei. Ele estava sentado, inclinado para a frente, à luz de um candeeiro suspenso e baixo: Atrás dele, a escuridão de uma janela de parede. A secretária à qual ele trabalhava estava cheia de papéis e livros — livros a sério — e noutra secretária mais pequena havia autênticos punhados dos «bagos de milho» de cristal, assim como várias peças de equipamento. Tinha à frente uma rima de papel que estava a anotar nas margens com uma caneta— uma caneta de tinta permanente! — Sente-se — disse, sem levantar a cabeça. — Acabo isto num minuto. Sentei-me numa cadeira baixa junto da secretária, mas desviei-a imediatamente para o lado, porque a luz transformava a sua cara numa mancha e eu queria vê-lo bem. Trabalhava ã sua maneira característica, de testa franzida sob o clarão do candeeiro. Aquela sala era uma das mais simples que eu vira até então, com paredes baças, uma velha porta e nenhuma decoração. E também nenhum dos cansativos dourados. De cada lado da porta havia um écran quadrado e em branco, e a parede que ficava perto da janela estava cheia de armários metálicos. Encostados a um deles estavam rolos de mapas ou de desenhos técnicos. E mais nada. Observei Thurber. Calvo, solidamente constituído, pesado. Escrevia e de vez em quando limpava os olhos com a mão. Os seus olhos enchiam-se constantemente de água. Gimma (que gostava de revelar os segredos alheios, especialmente os que uma pessoa mais se esforçava por ocultar) dissera-me uma vez que Tliurber tinha medo de cegar. O que explicava por que motivo era sempre o primeiro a deitar-se quando mudávamos de aceleração e também a razão por que, nos últimos anos, deixava os outros fazer coisas que em tempos insistira em fazer ele próprio. Reuniu os papéis com ambas as mãos, bateu com eles na secretária, acertou-lhes as arestas e meteu-os numa pasta, que fechou. Só então baixou as mãos grandes de dedos grossos, que pareciam ter dificuldade em dobrar-se, e disse: — Bem-vindo, Hal. Como vai isso? — Não me queixo. Está… sozinho? — Quer saber se o Gimma está aqui? Não está. Partiu ontem, para a Europa. — Está a trabalhar? — Estou. Seguiu-se uma pausa. Não sabia como aceitaria ele o que tinha para lhe dizer. Primeiro queria saber o que pensava do mundo a que viéramos parar. Claro que, conhecendo-o, não esperava um jorro de palavras. Ele guardava para si a maioria das suas opiniões. — Está aqui há muito tempo? — Bregg — disse, sem se mexer —, duvido que isso lhe interesse! Está com rodeios. — Possivelmente — admiti. — Devo então dizer o que tenho em mente? Começava a sentir de novo aquele constrangimento, um não-sei-quê entre irritação e timidez, que sempre se apoderava de mim na sua presença. Desconfio de que os outros sentiam o mesmo. Nunca se sabia quando ele falava a sério ou estava a brincar. Apesar de toda a sua compostura e da atenção que nos dispensava, era difícil imaginar o que se passava. — Não — respondeu-me. — Talvez mais tarde. De onde veio? — De Houl. — Directamente? — Sim. Por que pergunta? — Isso é bom — disse, como se não tivesse ouvido a minha pergunta. Olhou-me durante uns cinco segundos, talvez, sem se mexer, como se quisesse adquirir a certeza da minha presença. A sua expressão não dizia nada, mas eu sabia que alguma coisa tinha acontecido. Dir-me-ia o quê? Era imprevisível. Enquanto eu me perguntava como deveria começar, ele estudava-me cuidadosamente, como se eu lhe tivesse aparecido numa forma não familiar. — Que está o Vabach a fazer? — perguntei quando aquela silenciosa perscrutação se tomou demasiada. — Foi com o Gimma. Não era isso o que eu queria saber, e ele percebera-o, mas a verdade é que não fora ali para lhe perguntar por Vabach. Novo silêncio. Comecei a arrepender-me da minha decisão. — Ouvi dizer que casou — disse de súbito, quase descuidadamente. — Casei — respondi, talvez com excessiva secura. — Fez-lhe bem. Tentei encontrar qualquer outro assunto de conversa. Além de Olaf, nada mais me acudiu ao espírito, mas eu ainda não queria perguntar por ele. Receava o sorriso de Thurber — o modo como costumava demolir Gimma, e não só —, mas ele limitou-se a arquear um pouco as sobrancelhas e a perguntar-me: — Oue planos tem? — Nenhuns — respondi, e era verdade. — E gostaria de fazer alguma coisa? — Gostaria, mas nem tudo me serviria. — Ainda não fez nada até agora? Corei, definitivamente. Fiquei furioso. — Não, nada. Thurber… não vim cá para falar de mim. — Bem sei — respondeu, serenamente. — Trata-se do Staave, não trata? — Trata. — Houve um certo elemento de risco nisso — declarou, afastando-se devagarinho da secretária; a sua cadeira virou-se obedientemente para mim. — O Oswann receou o pior, especialmente mais tarde, quando o Staave deitou fora o seu hipnagogue… Você fez o mesmo, não fez? — Oswann? — repeti. — Que Oswann? Espere… o da Adaptação? — Sim. Ele estava mais preocupado com o Staave. Eu apontei-lhe o seu erro. — Que quer dizer? — Mas o Gimma responsabilizou-se pelos dois… — concluiu, como se não me tivesse ouvido. — O quê? — perguntei, e levantei-me da cadeira. — Gimma? — Claro que ele não sabia nada — prosseguiu Thurber — e disse-mo. — Então por que diabo se responsabilizou por nós? — explodi, confuso. — Achou que devia fazê-lo — explicou Thurber, laconicamente. — Que o director de uma expedição devia conhecer os seus homens… — Disparate. — Só estou a repetir o que ele disse ao Oswann. — Sim? E de que tinha o Oswann medo? Que nos amotinássemos? — Nunca sentiu esse impulso? — perguntou, calmamente. Pensei antes de responder. — Não — disse, por fim. — Seriamente, nunca. — E deixará os seus filhos serem betrizados? — E você? — perguntei, devagar. Sorriu pela primeira vez e os seus lábios exangues estremeceram. Mas não disse nada. — Escute, Thurber, lembra-se daquela noite, depois do último voo sobre Beta… quando lhe disse… Acenou com a cabeça, indiferente. De súbito, a minha calma evaporou-se. — Sabe, nessa altura não lhe disse tudo. Estávamos todos juntos, mas não em igualdade de circunstâncias. Eu recebia ordens de vocês dois — de você e de Gimma —, queria que fosse assim. Queríamos todos. Venturi, Thomas, Ennesson e Arder, que não receberam um depósito de reserva porque Gimma o estava a guardar para uma necessidade. Óptimo. Mas que lhe dá agora o direito de me falar como se tivesse passado o tempo todo sentado nessa cadeira? Foi você que mandou o Arder descer em Kereneia em nome da ciência, Thurber, e eu tirei-o de lá em nome do seu pobre coiro. Regressámos e, afinal, agora verifica-se que o coiro é o que conta; o resto não conta. Portanto, talvez eu devesse estar a perguntar-lhe como se sente e a responsabilizar-me por si e não o contrário, hem? Que lhe parece? Mas eu sei o que lhe parece. Trouxe um monte de factos e pode enterrar-se neles até ao fim dos seus dias, sabendo que nenhuma destas pessoas corteses lhe perguntará: «Quanto custou esta análise espectral? Um homem, dois homens? Não acha, professor Thurber, que o preço foi um pouco elevado?» Ninguém lhe dirá isso porque não têm contas em aberto connosco. Mas o Venturi tem. E o Arder, e o Ennesson, e o Thomas. Que utilizará como pagamento, Thurber? Pagará esclarecendo Qswann a meu respeito? E o Gimma responsabilizando-se pelo Olaf e por mim? A primeira vez que o vi, estava a fazer a mesma coisa que está a fazer hoje. Foi em Apprenous. Estava sentado no meio dos seus papéis e olhava fixamente, como agora. A aproveitar uma folga de assuntos mais importantes, em nome da ciência… Levantei-me. — Agradeça ao Gimma por ter tomado o nosso partido… Thurber levantou-se, também. Durante talvez um segundo fitámo-nos nos olhos. Ele era mais baixo, mas não se notava. A sua altura não importava. A calma do seu olhar era indescritível. — É-me permitido falar ou a sentença já foi dada? — indagou. Resmunguei qualquer coisa ininteligível. — Então sente-se — respondeu-me e, sem esperar, sentou-se pesadamente na sua cadeira. Voltei a sentar-me. — Mas você fez alguma coisa — disse, num tom que dava a impressão de que estivéramos a falar do tempo. — Leu Starck, acreditou nele, sentiu-se ludibriado e agora procura alguém sobre quem lançar as culpas. Se isso significa muito para si, posso aceitá-las. Mas não é esse o ponto. Starck convenceu-o, ao fim daqueles dez anos? Bregg, eu sabia que era um espaIha-brasas, mas nunca o considerei estúpido. Fez uma pausa momentânea e, estranhamente, senti algo parecido com alívio e uma esperança de libertação. Não tive tempo para analisar essa sensação, porque ele prosseguiu: — Contacto com civilizações galaxiais? Mas quem disse alguma coisa a esse respeito? Nenhum de nós. nenhum dos sábios, nem Merquier, nem Simonadi. nem Rag Ngamieli… ninguém. Nenhuma expedição contava com semelhante contacto e. portanto, toda essa conversa acerca de fósseis a voar através do espaço e do correio galáctico perpetuamente atrasado é uma refutação de um argumento que nunca ninguém apresentou. Que se pode obter das estrelas? E para que serviu a expedição de Amundsen? Ou a de Andrée? Para nada. O único benefício claro reside no facto de terem provado uma possibilidade. Demonstraram que se podia fazer. Ou, mais precisamente, que foi durante um dado tempo a coisa alcançável mais difícil de alcançar. Não sei se nós conseguimos sequer isso, Bregg. Francamente, não sei. Mas estivemos lá. Fiquei calado. Thurber não olhava para mim. Descansou os punhos na beira da secretária. — Que lhe provou o Starck? A inutilidade da cosmodromia? Como se nós próprios o não soubéssemos! E os pólos! Que havia nos pólos? Os que os conquistaram sabiam que não havia lá nada. E a Lua? Que procurou o grupo de Ross na cratera de Eratóstenes? Diamantes? E porque atravessaram Bant e Jegorin a face de Mercúrio? Para se bronzearem? E Kellen e Offshagg? A única coisa de que tinham a certeza, quando voaram para a nuvem fria de Cérbero, era de que podiam lá morrer. Não sabe o que Starck está realmente a dizer? Que um ser humano deve comer, beber e vestir-se e que o resto é loucura. Todo o homem tem o seu Starck, Bregg. Todos os períodos da História o tiveram também. Por que os mandou Gimma a si e ao Arder? Para recolherem amostras da coroa. Quem mandou Gimma? A ciência. Claro e simples, não é? O estudo das estrelas. Bregg, pensa que não teríamos ido se não houvesse estrelas? Digo-lhe que teríamos. Teríamos querido examinar aquele vazio, para encontrar uma explicação para ele. Geonides ou qualquer outro ter-nos-ia dito que valiosas medições e experiências poderíamos efectuar, de caminho. Não me interprete mal. Não estou a dizer que as estrelas são apenas um pretexto. Tão-pouco o foi o pólo. Nansen e Andrée pecisavam dele… O Everest significou mais para Mallory e Irving do que o próprio ar. Diz que eu lhe dei ordens «em nome da ciência»? Sabe que isso não é verdade. Você esteve a pôr à prova a minha memória. Quer que ponha à prova a sua? Lembra-se do planetóide de Thomas? Estremeci. — Você mentiu-nos. então. Desceu uma segunda vez sabendo que ele estava morto. Não é verdade? Fiquei calado. — Eu desconfiei imediatamente. Nunca discuti o caso com o Gimma, mas creio que ele também desconfiou. Por que o fez, Bregg? Não era Arcturus nem Kereneia e não havia ninguém para salvar. Que objectivo foi o seu. homem? Continuei calado. Thurber esboçou um sorriso. — Sabe qual é o nosso problema, Bregg? O facto de o termos feito e de estarmos agora aqui sentados. O homem regressa sempre de mãos vazias… Calou-se. O seu sorriso tomou-se uma careta quase sem significado. Por instantes respirou mais ruidosamente, a agarrar a secretária com ambas as mãos. Olhei-o como se o visse pela primeira vez. Achei-o velho e essa descoberta foi um choque para mim. Nunca pensara nele assim, fora sempre como se não tivesse idade… — Thurber — disse, calmamente —, escute… Isto é, bem… apenas um panegírico sobre as sepuhuras dos… insaciáveis. Agora não há nenhuns como eles. E não voltará a haver. Por isso, no fim de contas, Starck vence… Mostrou os dentes quadrados e amarelos, mas não se tratou de um sorriso. — Bregg. dê-me a sua palavra de que não contará a ninguém o que lhe vou dizer. Hesitei. — A ninguém — repetiu, com ênfase. — Está bem. Levantou-se, foi ao canto da sala, pegou num rolo de papel e voltou com ele para a secretária. O papel fez uma pequena restolhada, ao desenrolar-se nas suas mãos. O que vi pareceu-me um peixe esventrado, com linhas vermelhas como sangue. — Thurber! — Sim — respondeu serenamente, e enrolou de novo o papel com ambas ás mãos. — Uma nova expedição? — Sim — repetiu, e foi encostar de novo o rolo ao canto, como uma espingarda. — Quando? Onde? — Não muito em breve. Ao Centro. — Sagitário… — Murmurei. — Sim. Os preparativos demorarão muito tempo. Mas graças à anabiose… Continuou a falar, mas eu só captava palavras e expressões isoladas — «voo em loop», «aceleração não gravitacional» — e a excitação que sentira quando vira o desenho do foguetão gigante cedeu o lugar a uma letargia inesperada, de cujo centro examinei as mãos que tinha apoiadas nos joelhos. Thurber calou-se, olhou para mim, foi para a secretária e começou a reunir papéis, como se quisesse dar-me tempo para digerir a notícia. Eu devia bombardeá-lo com perguntas — quais de nós. da velha guarda, voaríamos; quantos anos duraria a expedição: quais os seus objetivos?… — , mas não perguntei nada. Nem sequer por que motivo estava a ser guardado segredo de tudo. Olhei-lhe para as mãos grandes e grossas, que denunciavam a sua idade mais claramente do que o seu rosto, e senti uma pequena satisfação, tão inesperada quanto mesquinha: pensei que ele pelo menos não voaria. Quanto a mim, não viveria para os ver regressar, nem mesmo que derrubasse o recorde de Matusalém. Não interessava. Não tinha importância. Levantei-me. Thurber remexeu nos seus papéis. — Bregg — disse, sem levantar a cabeça —, ainda tenho que fazer. Se quiser, podemos jantar juntos. Você poderá passar a noite no dormitório, que está agora vazio. Murmurei um «está bem» e dirigi-me para a porta. Ele recomeçara a trabalhar como se eu já ali não estivesse. Fiquei uns momentos junto da porta e por fim saí. Só tive consciência exacta de onde estava quando ouvi o som firme dos meus próprios passos: Parei. Encontrava-me no meio do comprido corredor, entre duas séries de portas idênticas. O eco dos meus passos ainda se ouvia. Ilusão? Alguém que me seguia? Virei-me e vi uma figura alta desaparecer por uma das portas, ao fundo. Foi tudo tão rápido que não vi bem a pessoa; vi apenas um movimento, umas costas e uma porta a fechar-se. Não tinha nada a fazer ali. Não fazia sentido caminhar mais: o corredor não tinha saída. Voltei para trás, passei por uma enorme janela através da qual vi a claridade da cidade, prateada no imenso parque negro, e parei de novo defronte da porta onde se lia: «Aqui, Bregg.» E onde Thurber estava a trabalhar. Já não queria vê-lo. Não tinha nada a dizer-lhe nem ele a mim. Porque viera, para começar? De súbito, lembrei-me porquê, surpreendido. Voltaria a entrar e perguntaria pelo Olaf. Mas não já. Não estava cansado; sentia-me perfeitamente, mas estava a acontecer-me qualquer coisa, qualquer coisa que não compreendia. Dirigi-me para a escada. Defronte dela ficava a última das portas, aquela por onde a pessoa desconhecida desaparecera pouco antes. Lembrei-me de que espreitara para essa sala ao princípio, quando entrara no edifício; reconheci a mancha de tinta a cair. Nessa altura não havia nada na sala. Que teria a pessoa lá ido fazer? Tive a certeza de que não fora fazer nem procurar nada, que se escondera apenas de mim, e parei alguns momentos indeciso defronte da escada, da escada vazia, branca e imóvel. Lentamente, muito lentamente, voltei-me. Sentia uma estranha inquietação… não era bem uma inquietação, pois não tinha medo de nada… O que sentia assemelhava-se ao que sentimos depois de uma injecção de anestésico… Estava tenso, mas senhor de mim. Dei dois passos e apurei o ouvido. Pareceu-me ouvir, do outro lado da porta, o som de uma respiração. Impossível. Decidi ir-me embora, mas não fui capaz. Tinha prestado demasiada atenção àquela ridícula porta, não me podia ir embora assim. Abri-a e olhei para dentro. Sob um pequeno candeeiro de tecto, no meio da sala vazia, estava Olaf, de pé. Com a mesma velha roupa e as mangas arregaçadas, como se tivesse acabado de largar as ferramentas. Olhámos um para o outro. Ao ver que eu não falava, falou ele: — Como estás, Hal? A sua voz não estava totalmente firme. Não me apetecia brincar. Estava apenas surpreendido com aquele encontro inesperado e talvez ainda estivesse, também, sob o efeito do choque das palavras de Thurber. De qualquer modo, não respondi. Aproximei-me da janela, de onde se desfrutava a mesma vista — o parque negro e a claridade da cidade —, voltei-me e sentei-me no parapeito. Olaf não se mexeu. Continuou no centro da sala. Do livro que segurava soltou-se uma folha de papel que caiu para o chão. Inclinámo-nos ao mesmo tempo. Eu apanhei a folha de papel e vi a planta do foguetão, a mesma que Thurber me mqstrara havia momentos. No fundo da folha estavam observações na caligrafia de Olaf. Era então isso, pensei. Ele não escrevera por que ia voar e quisera poupar-me o conhecimento desse facto. Eu dir-lhe-ia que estava enganado, que não me interessava a expedição. Ficara farto das estrelas e, de qualquer modo, Thurber dissera-me tudo e, por isso, podia falar com a consciência tranquila. Olhei cuidadosamente para as linhas do desenho que tinha na mão, como se aprovasse o aerodinamismo do foguetão, mas não disse nada. Limitei-me a estender-lhe o papel, que ele aceitou com certa relutância, dobrou ao meio e colocou dentro do livro. Tudo isso se passou num silêncio total — não intencionalmente, estou certo, mas sim porque foi executada em silêncio, a cena assumiu um significado simbólico, como se eu tivesse tomado conhecimento da sua participação na expedição e, ao devolver o desenho, aceitasse esse passo sem entusiasmo, mas também sem pesar. Quando tentei olhá-lo nos olhos ele desviou a cabeça, mas decorrido um momento olhou-me. Era a imagem da incerteza e da confusão. Mesmo então, quando eu já sabia tudo? O silêncio da pequena sala tomou-se insuportável. Ouvi-o respirar um pouco mais depressa. O seu rosto estava encovado e os seus olhos menos brilhantes do que da última vez que o vira, como se andasse a trabalhar muito e a dormir pouco. Mas também havia neles outra expressão que não reconheci. — Estou óptimo — respondi, devagar. — E tu? No instante em que proferi tais palavras compreendi que o momento para as dizer passara; teriam estado bem quando entrei, mas agora pareciam quase hostis, ou até mesmo sarcásticas. — Viste o Thurber? — perguntou-me. — Vi. — Os estudantes partiram… Agora não há aqui ninguém, eles deram-nos o edifício todo… — começou a explicar, desajeitadamente. — Para vocês poderem trabalhar no plano da expedição? — indaguei, e ele respondeu imediatamente: — Sim, Hal. Mas tu sabes o género de trabalho que é… Neste momento somos apenas um punhado, mas temos máquinas fantásticas, esses robots, sabes… — Óptimo. Seguiu-se outro silêncio. E, singularmente, quanto mais ele se prolongava, tanto maior se tomava a ansiedade de Olaf, a sua exagerada rigidez, pois continuava no meio da sala, como que pregado ao chão, debaixo da luz, preparado para o pior. Decidi pôr cobro àquilo: — Escuta — disse, muito suavemente. — Que imaginaste, ao certo? A atitude cobarde não resulta, bem sabes… Pensaste realmente que eu não descobriria se tu me não dissesses? Calei-me e ele permaneceu silencioso, com a cabeça inclinada para um lado. Eu fora longe de mais, sem dúvida, pois ele não tinha a culpa — se estivesse nas suas circunstâncias, talvez eu tivesse feito o mesmo. Tão-pouco lhe queria mal pelo seu silêncio de um mês. O que me magoava era aquela tentativa de fugir, de se esconder de mim naquela sala vazia, quando me vira sair do gabinete de Thurber. Mas não podia dizer-lho claramente, era demasiado estúpido e ridículo. Ergui a voz, chamei-lhe grandíssimo idiota, mas nem mesmo assim ele se defendeu. — Achas então que não resta nada para discutir? — perguntei, brusco. — Isso depende de ti. — Depende de mim, como? — De ti — repetiu, obstinado. — Era importante quem se encarregaria de te dizer… — Acreditás realmente nisso? — Foi o que me pareceu… — Não faz diferença nenhuma — resmunguei. — Que tencionas fazer? — perguntou, sereno. — Nada. Olaf olhou-me, desconfiado. — Escuta, Hal, eu… Não terminou a frase. Eu percebia que estava a torturá-lo com a minha presença, mas não podia perdoar-lhe que tivesse fugido. E partir naquele momento, assim, sem uma palavra, teria sido pior do que a incerteza que ali me levara. Não sabia que dizer. Tudo quanto nos unia estava proibido. Olhei-o no mesmo momento em que ele olhou também para mim. Cada um de nós estava a contar que o outro ajudasse. Desci do parapeito. — Olaf, é tarde. Vou-me embora. Não penses que estou zangado contigo. De maneira nenhuma. De qualquer modo, havemos de nos encontrar, talvez tu nos visites… — Disse as palavras com esforço, sem naturalidade, e ele percebeu-o. — O quê… não passas cá a noite? — Não posso. Compreendes, prometi… Não disse o nome dela. Olaf murmurou: — Como queiras. Eu acompanho-te à saída. Saímos da sala juntos e descemos a escada. No exterior escurecera por completo. Olaf caminhou a meu lado sem uma palavra. De súbito, parou. E eu parei também. — Fica — murmurou, como que envergonhado; só lhe consegui ver a mancha vaga da cara. — Está bem — concordei inesperadamente, e voltei-me. Ele não estava preparado para isso. Ficou um momento parado e depois deu-me o braço e conduziu-me a outro edifício mais baixo. Numa sala deserta e com algumas luzes acesas jantámos num balcão, sem nos sentarmos se(|uer. Durante toda a refeição trocámos talvez umas dez palavras. Depois íiimos para o andar de cima. O quarto aonde me conduziu era um quadrado quase perfeito, branco baço, com uma grande janela que devia abarcar o parque de uma direcção diferente, pois não vi a claridade da cidade por cima das árvores. Havia uma cama feita de lavado, duas cadeiras e uma terceira cadeira, maior, junto da janela. Através de uma porta entreaberta viam-se, brilhantes, os azulejos de uma casa de banho. Olaf parou à porta de braços pendentes, como se esperasse que eu falasse. Mas eu não disse nada, limitei-me a dar a volta ao quarto e a tocar nos móveis maquinalmente, como se tomasse temporariamente posse deles. Depois ele perguntou, calmo: — Posso ser-te útil nalguma coisa? — Podes. Deixa-me em paz. Continuou ali parado, sem se mexer. O seu rosto tornou-se vermelho e depois pálido e, de súbito, sorriu, sorriu para ocultar o insulto, pois as minhas palavras tinham soado como um insulto. Perante aquele sorriso desamparado, patético, algo dentro de mim se quebrou. Num esforço convulsivo para arrancar a máscara de indiferença que afivelara, pois não tinha outra, corri para ele quando se voltava para sair, agarrei-lhe na mão e apertei-lha como se, com a violência do meu aperto, lhe pedisse perdão. E ele, sem olhar para mim, respondeu com um aperto semelhante e foi-se embora. Ainda sentia um formigueiro na minha mão, da firmeza com que fora apertada, quando ele fechou a porta atrás de si, cuidadosa e silenciosamente. como se saísse do quarto de um doente. Fiquei sozinho, como quisera. O edifício estava cheio de um silêncio absoluto. Não ouvi sequer os passos de Olaf, a retirar-se. O meu vulto pesado reflectia-se tenuemente no vidro da janela; de uma fonte desconhecida vinha ar quente. Através dos contornos do meu reflexo vi as silhuetas das árvores, entretanto mergulhadas em completa escuridão. Passei de novo o olhar pelo quarto e depois fui para a grande cadeira junto da janela. Uma noite de Outono. Não podia pensar sequer em dormir. Parei à janela. A escuridão que ficava para lá dela estava com certeza cheia de frescura e do murmúrio dos ramos sem folhas a roçar uns nos outros. De súbito, desejei estar lá, vaguear pelo meio da escuridão, através do seu caos não premeditado. Saí do quarto sem pensar. O corredor estava deserto. Fui em bicos de pés até à escada — precaução desnecessária, provavelmente, pois Olaf já se devia ter deitado e Thurber, se estava a trabalhar, encontrava-se num andar diferente, numa ala distante do edifício. Corri pela escada abaixo, já sem ter o cuidado de abafar os passos, saí e comecei a andar depressa. Não escolhi nenhuma direcção especial, limitei-me a andar e a evitar o mais possível a claridade da cidade. Os caminhos do parque não tardaram a conduzir-me para além dos seus limites, assinalados por uma sebe. Encontrei-me na estrada, caminhei um bocado e depois parei bruscamente. Não queria caminhar por uma estrada abaixo; as estradas conduziam a casas, a gente, e eu queria estar só. Lembrei-me de que Olaf me falara em Clavestra de Malleolan, a nova cidade nas montanhas, construída depois da nossa partida. De facto, os poucos quilómetros de estrada que percorrera pareciam cheios de cotovelos e curvas, sem dúvida a contornar encostas, mas na escuridão eu não podia certificar-me disso. Tipicamente, a estrada não estava iluminada: a sua superfície brilhava com uma fosforescência fraca, tão fraca que não iluminava a vegetação dos lados. Por isso, deixei a estrada, tacteei o caminho às escuras e encontrei-me entre arbustos baixos e densos, que subiam para um monte sem árvores — sem árvores porque o vento soprava ali livremente. Avistei diversas vezes fragmentos pálidos e sinuosos da estrada que abandonara, lá muito em baixo, e depois a última luz desapareceu. Parei uma segunda vez. Menos com os olhos inúteis do que com todo o corpo, de cara ao vento, tentei tomar conhecimento com a Terra, que me era tão estranha como outro planeta. Queria alcançar um dos picos que rodeavam o vale onde se erguia a cidade, mas como encontrair a direcção certa? De súbito, quando todos os esforços me pareciam vãos, ouvi um rugido distante e prolongado, semelhante a ondas mas ao mesmo tempo diferente, que vinha de cima e da direita: o ruído do vento a soprar através de uma floresta, uma floresta que se situava a uma altitude muito superior àquela em que me encontrava. Segui nessa direcção. Uma encosta invadida por erva seca conduziu-me às primeiras árvores. Escolhi o meu caminho através desses fantasmas, de braços levantados para proteger a cara dos ramos. Em breve a encosta tomou-se menos íngreme, as árvores tomaram-se menos densas e tive de escolher de novo uma direcção. A escutar atentamente no escuro, aguardei com paciência a próxima rajada de vento forte. E o vento soprou, ouvi o seu longo silvo vir do terreno alto, ao longe. Sim, o vento daquela noite era meu aliado. Segui a direito, ignorando o facto de estar a perder altitude, a descer ingrememente para uma ravina negra. No fundo havia um declive também íngreme. Comecei a subir gradualmente, com um pequeno regato a indicar-me o caminho. A certa altura deixei de o ver. Provavelmente passou a correr sob uma camada de pedras. O som da água foi diminuindo à medida que eu subia, até que emudeceu por completo e mais uma vez a floresta me rodeou: árvores altas, pinheiros, e ausência quase total de sub-bosque. O solo estava coberto de uma camada fofa como uma almofada de velhas agulhas de pinheiro e nalguns pontos apresentava-se escorregadio, do musgo. A minha caminhada cega prosseguiu durante mais de três horas. As raízes em que tropeçava torciam-se com violência crescente à volta de pedregulhos que irrompiam da camada de solo superficial. Receei que o cume se apresentasse coberto de floresta e que nesse labirinto terminasse a minha recém-iniciada excursão às montanhas. Mas tive sorte: através de uma pequena passagem nua de vegetação cheguei a um campo de cascalho que se foi tomando cada vez mais íngreme. Por fim, quase não me conseguia manter de pé; as pedras começaram a escorregar-me debaixo dos pés, com um ruído de matraca. Saltando de um pé para outro, não sem repetidas quedas, cheguei ao lado de um rego fundo e pude subir mais depressa. De vez em quando parava para tentar distinguir o que me rodeava, mas a escuridão total não mo permitia. Não via nem a cidade nem a sua claridade, nem sequer qualquer vestígio da estrada reluzente que deixara. O rego conduziu-me a uma área nua, com manchas de erva seca. Compreendi que me encontrava a grande altitude pela extensão cada vez maior de céu estrelado, e os espinhaços das outras montanhas começaram a nivelar-se com o da que eu subia. Mais alguns centos de passos e cheguei aos primeiros aglomerados de pinheiros anões. Se alguém me detivesse subitamente na escuridão e me perguntasse para onde ia e porquê, não teria sabido responder. Mas não havia ninguém e a solidão daquela marcha nocturna dava-me uma sensação, ainda que temporária, de alívio. O ângulo da encosta acentuou-se e andar tomou-se cada vez mais difícil, mas eu fui avançando, tentando apenas seguir a direito, como se tivesse um objectivo definido. O meu coração batia depressa, tinha a respiração acelerada, mas continuava a subir num frenesi, com o conhecimento instintivo de que precisava exactamente daquele esforço esgotante. Afastava os ramos torcidos dos pinheiros anões, algumas vezes ficava preso neles, libertava-me e prosseguia. Cachos de agulhas roçavam-me pela cara e pelo peito e prendiam-se-me na roupa; os dedos pegavam-se-me, da resina. Num descampado, senti um vento inesperado. Jorrando do escuro, avançava a assobiar lá no alto, onde calculei que haveria uma passagem. Depois o maciço seguinte de pinhei; is anões engoliu-me. Havia nele ilhas de ar parado e momo, impregnado da forte fragrância dos pinheiros. Erguiam-se no meu caminho obstáculos indistintos, rochas espalhadas à toa, e debaixo dos pés escorregavam-me pedras soltas. Já devia caminhar havia diversas horas e ainda sentia em mim uma reserva de força suficiente para me conduzir ao desespero. O rego que levava a alguma passagem, provavelmente ao cume, estreitou tanto que eu podia ver ambos os seus lados erguerem-se contra o céu e ocultarem as estrelas com os seus espinhaços escuros. A região de neblina ficava muito abaixo de mim, mas a noite fria não tinha Lua e as estrelas emitiam pouca luz. Fiquei por isso surpreendido com o aparecimento, à volta e acima de mim, de formas esbranquiçadas e alongadas. Encontravam-se na escuridão sem a iluminarem, como se tivessem absorvido radiância durante o dia. O primeiro ranger solto debaixo dos meus pés disse-me que pisava neve. Uma fina camada de neve cobria o resto da íngreme encosta. Mal agasalhado como estava, teria enregelado até aos ossos, mas o vento amainou inesperadamente e eu pude ouvir claramente o rangido da neve a cada passo que dava. Na passagem propriamente dita quase não havia neve. Enormes rochas varridas pelo vento recortavam-se em silhueta acima do cascalho. Parei, com o coração numa correria louca, e olhei na direcção da cidade. Ficava oculta pela encosta e só uma mancha de cinzento-avermelhado, das luzes, denunciava a sua posição no vale. Por cima de mim as estrelas tremiam distintamente visíveis. Andei mais alguns passos e sentei-me num rochedo em forma de sela. A claridade da cidade desaparecera outra vez. À minha frente, no escuro, estavam as montanhas, fantasmagóricas com os picos embranquecidos pela neve. Olhando com insistência para a aresta oriental do horizonte, consegui distinguir os primeiros raios do dia nascente. Contra ele, os contomos de um espinhaço partido em dois. Sombras informes à minha volta — ou dentro de mim? — deslocavam-se, recuavam, mudavam de proporções. Fiquei tão preocupado com isso que por momentos foi como se tivesse perdido a visão. E quando a recuperei estava tudo diferente. O céu oriental, de um ténue cinzento acima do vale invisível, acentuava mais ainda o negrume da rocha, mas mesmo assim eu poderia ter apontado todas as suas irregularidades, todos os seus recortes. Conhecia intimamente o cenário que o dia desdobraria para os meus olhos, porque tinha sido gravado em mim para sempre e não em vão. Ali estava a imutabilidade que eu desejara, que permanecera intacta enquanto o meu mundo ruía e perecia num abismo de tempo de século e meio. Fora naquele vale que passara os anos da minha mocidade, na velha estalagem de madeira da encosta relvosa, oposta, a Cloud Catcher. Dessa casa não deveriam restar nem os alicerces de pedra, as últimas tábuas deviam ter apodrecido havia muito, mas a cumeeira rochosa permanecia imutável, como se tivesse estado à espera daquele encontro. Poderia uma vaga recordação inconsciente ter-me guiado através da noite precisamente para tal lugar? O choque do reconhecimento libertou-me instantaneamente de toda a minha fraqueza, tão desesperadamente ocultada — ocultada primeiro com uma falsa calma e depois com o frenesi intencional do meu montanhismo. Estendi a mão e, sem me embaraçar com a tremura dos dedos, apanhei um pouco de neve e meti-a na boca. O frio que se me derreteu na língua não me apaziguou a sede, mas despertou-me mais. Fiquei sentado a comer neve, ainda sem acreditar, à espera de que os primeiros raios de sol confirmassem a minha suposição. Muitos antes de o Sol aparecer, de cima das estrelas que lentamente se apagavam, desceu um pássaro que dobrou as asas, se tornou mais pequeno e, pousando num plano de rocha inclinado, começou a andar na minha direcção. Não me mexi, com medo de o assustar. O pássaro contornou-me e afastou-se, e precisamente quando eu pensava que não reparara em mim voltou pelo outro lado e contornou o rochedo onde eu estava sentado. Olhámo-nos um bocado, até eu perguntar, baixinho: — De onde vieste? Compreendendo que ele não tinha medo de mim, recomecei a comer neve. O pássaro inclinou a cabeça, fitou-me com as contas pretas dos olhos e de súbito, como se estivesse farto de mim, abriu as asas e foi-se embora. E eu, a descansar na rocha áspera, inclinado para a frente e com as mãos dormentes da neve, esperei pelo alvorecer e recordei a noite toda numa sinopse violenta e incompleta — Thurber e as suas palavras, o silêncio entre Olaf e mim, o panorama da cidade, a névoa vermelha e as aberturas na névoa feitas por funis de luz, rajadas de ar quente, a inalação e exalação de um milhão, os largos suspensos, alamedas, avenidas, arranha-céus com asas de fogo, os diferentes níveis com cores diferentes, a desinspirada conversa com o pássaro na passagem e eu a comer neve… E todas estas imagens eram e não eram imagens, como às vezes nos sonhos, eram simultaneamente uma recordação e a tentativa de evitar aquilo em que não ousava tocar. Porque, de princípio a fim, eu tinha de encontrar em mim próprio uma aceitação do que não podia aceitar. Mas isso tinha sido antes, como num sonho. Agora, de cabeça desanuviada e atento, à espera do dia, num ar quase prateado e na presença, que lentamente se revelava, das encostas das montanhas, dos sulcos na rocha e do cascalho, que emergiam da noite em silenciosa confirmação da realidade do meu regresso, eu, sozinho mas não um estranho à Terra, agora sujeito a ela e às suas leis, pude pela primeira vez, sem protesto nem mágoa, pensar naqueles que iam partir para o tosão de ouro das estrelas… A neve do cume incendiou-se de ouro e branco, sobressaiu das sombras purpúreas do vale, sobressaiu poderosa e eterna, e eu, sem fechar os olhos cheios de lágrimas, levantei-me devagar e comecei a caminhar através das pedras para sul, para minha casa.