A Cidade e as Estrelas Arthur C. Clarke Em um futuro muito distante, toda a humanidade está confinada a uma única cidade, totalmente fechada. Ninguém pode sair da cidade, que funciona como o último reduto da raça humana. Todas as necessidades humanas são atendidas por um sofisticado sistema de computadores e a vida é virtualmente eterna. Os seres humanos, após uma existência muito prolongada, são armazenados em bancos de memória dos computadores para depois ressucitarem, evitando o tédio da vida eterna. Mas nem todos se conformam com esta situação: um jovem quer saber o que há lá fora. Esse inconformismo dá origem a uma das mais belas histórias da ficção científica e certamente trata-se de uma obra-prima de Arthur C. Clarke. Arthur C. Clarke A Cidade e as Estrelas Tradutor: Donaldson Garschagen Título original em inglês: THE CITY AND THE STARS Arthur C. Clarke, 1956 EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rio de Janeiro — 1979 Estamos a mais de um milhão de anos no futuro. Por que ninguém mais se lembra dos outros seres inteligentes que o homem viu no Universo? O computador, que domina os segredos do espaço e do tempo, talvez saiba a resposta. É ele que mantém a última cidade sobre a Terra e a povoa com seres humanos nascidos em provetas. Mas por que ele permitiu o nascimento de um homem sem medo do desconhecido? Por que ele permitiu que só esse homem descobrisse o fantástico destino do Universo? Arthur C. Clarke Arthur Charles Clarke nasceu na Inglaterra em 1917. Aos 20 anos, lançou uma revista de ficção científica, a Novae Terrae, publicando contos que antecipavam o futuro (descreveu a chegada do homem à Lua imaginando técnicas parecidas com as que seriam usadas décadas depois). Durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou como radiotécnico na Força Aérea Britânica, aperfeiçoando um sistema de radar que foi muito útil aos Aliados. Em 1945, publicou um texto que antecipava em mais de 20 anos a comunicação via satélite. Depois da Guerra, formou-se em Física e Matemática, ganhando a vida como editor-assistente da revista Science Abstracts. Em 1951 publicou seu primeiro romance de ficção científica, As Areias de Marte. Depois de passar algum tempo casado com a norte-americana Marilyn Mayfield (de quem se divorciou em 1964), mudou-se para o Sri Lanka (antigo Ceilão), uma ilha nas costas da índia. Vive com uma família amiga (um mergulhador, ex-pugilista, sua esposa e filhos), cercado de avançadíssima tecnologia (computadores, barcos que andam sobre água e sobre terra com auxílio de colchões de ar, etc). Apaixonado pela informática, pelas telecomunicações, pelos mergulhos submarinos e pelas pesquisas sobre vida extraterrena, Arthur Clarke tornou-se famoso em 1969, quando um livro seu foi adaptado para o cinema por Stanley Kubrick: 2001: uma Odisséia no Espaço. Autor de mais de 50 obras de ficção científica, ganhou renome internacional pela clareza de seu estilo (a descrição que ele faz dos modernos progressos da ciência e da tecnologia é sempre viva, acessível e correta) e pela profundidade de suas idéias (a necessidade do progresso espiritual como condição da própria sobrevivência do homem é seu tema central). A Cidade e as Estrelas (obra de 1956) é um exemplo de seu talento: a concepção do mundo descrita nesse livro é ousadíssima (estamos a mais de um milhão de anos no futuro) e toda ela verossímil (é um futuro que o progresso da tecnologia pode tornar possível). Outros livros: Encontro com Rama, Terra Imperial, Histórias de Dez Mundos, O Fim da Infância, As Fontes do Paraíso, Sobre o Tempo e as Estrelas, A Sonda do Tempo, 2010: uma Odisséia no Espaço II, Os Náufragos do Selene (Editora Nova Fronteira).      Para Val Como jóia fulgurante, a cidade jazia sobre o seio do deserto. No passado, havia conhecido mudanças e inovações, mas agora tudo estava imóvel no tempo. Noites e dias passavam sobre a face do deserto, mas nas ruas de Diaspar era sempre crepúsculo, e a escuridão jamais chegava. As longas noites de inverno cobriam o deserto de geada, ao se congelar a última umidade caída no ar rarefeito da Terra — mas a cidade não sofria calor ou frio. Não tinha contato com o mundo exterior. Era, em si mesma, um universo. O Homem já havia construído cidades, mas nunca uma cidade como aquela. Algumas haviam durado séculos, outras, milênios — antes que o tempo apagasse até mesmo seus nomes. Só Diaspar havia desafiado a Eternidade, defendendo-se a si mesma, e a tudo quanto ela reunia, do desgaste moroso das eras, dos estragos da decadência e da corrupção da ferrugem. Desde sua construção, os oceanos da Terra já haviam desaparecido e o deserto tinha passado a abranger todo o globo. As últimas montanhas tinham sido reduzidas a pó pelos ventos e pela chuva e o mundo achava-se demasiado cansado para produzir outras, novas. A cidade, porém, não se preocupava: mesmo que a Terra se consumisse, Diaspar ainda seria capaz de proteger os filhos daqueles que a haviam edificado, salvando, a eles e a seus tesouros, do fluxo do tempo. Haviam-se esquecido de muitas coisas, mas não o percebiam. Estavam tão ajustados ao meio ambiente em que viviam como este a eles — pois tinham sido projetados em conjunto. O que existia além dos muros da cidade não lhes interessava, era algo que tinha sido como que varrido de suas mentes. Diaspar encerrava tudo quanto existia, tudo de que necessitavam, tudo que seriam capazes de imaginar. Não lhes importava saber que um dia o Homem havia sido senhor das estrelas. Contudo, às vezes os antigos mitos se levantavam para os perseguir, e eles se sentiam desagradavelmente perturbados à lembrança das lendas do Império, quando Diaspar era jovem e extraía sua seiva do comércio com muitos sóis. Não queriam a volta dos tempos antigos, estavam felizes e satisfeitos com o eterno outono. As glórias do Império eram coisa do passado, e lá podiam ficar — pois recordavam-se perfeitamente de como o Império havia encontrado seu fim, e ao pensarem nos Invasores o próprio frio do espaço lhes gelava os ossos. E então voltavam-se mais uma vez para a vida e para o aconchego da cidade, para a longa idade áurea cujas origens já se achavam perdidas e cujo fim nem se vislumbrava a distância. Outros homens haviam sonhado com essa idade, mas somente eles a haviam alcançado. E isso porque tinham vivido na mesma cidade, caminhando pelas mesmas ruas, milagrosamente imutáveis, enquanto mais de um bilhão de anos transcorriam. Capítulo I Tinham levado muitas horas abrindo caminho para fora da Caverna dos Vermes Brancos. Ainda agora não poderiam estar seguros de que não os perseguiam um daqueles monstros pálidos — e a força de suas armas já se havia quase esgotado. Mais adiante, ainda acenavam para eles as setas flutuantes que lhes haviam servido de misterioso guia através dos labirintos da Montanha de Cristal. Não lhes restava outra alternativa senão segui-las, ainda que, como acontecera tantas vezes antes, elas pudessem conduzi-los a perigos ainda mais funestos. Alvin olhou rapidamente para trás, tentando verificar se os companheiros estavam próximos. Alystra, quase junto dele, carregava a esfera de luz fria mas permanente que havia mostrado tantos horrores e esplendores desde o início daquela aventura. O brilho branco e esmaecido escorria pelo corredor estreito e se espalhava pelas paredes cintilantes, enquanto durava, podiam ver para onde caminhavam e lhes era possível perceber a presença de qualquer perigo visível. No entanto, Alvin sabia muito bem que os maiores perigos naquelas cavernas de modo algum eram os que se podiam ver. Atrás de Alystra, lutando com o peso dos projetores, vinham Narillian e Floranus. Alvin ficou a imaginar por que os projetores seriam tão pesados, já que teria sido tão simples muni-los com neutralizadores de gravidade. Alvin nunca parava de pensar nessa espécie de coisas, mesmo no meio das aventuras mais desesperadas. Quando pensamentos assim passavam por sua cabeça, era como se a estrutura da realidade começasse a ruir por um instante, e que por trás do mundo dos sentidos ele colhesse o lampejo de outro universo, inteiramente diferente… O corredor terminava numa parede branca. Teria a seta os enganado de novo? Não, pois ao se aproximarem a rocha começou a transformar-se em pó. Através da parede surgiu um lingote metálico que, rodopiando, logo se transformou num gigantesco parafuso. Alvin e seus amigos voltaram atrás, esperando que a máquina forçasse entrada na caverna. Com um ruído tonitruante de metal sobre rocha — que decerto ecoaria por todos os desvãos da Montanha e despertaria toda sua raça de pesadelos — a subterráquea emergiu da parede e veio repousar aos pés deles. Abriu-se uma porta maciça e surgiu Callistron, gritando que se apressassem. («Por que Callistron?», pensou Alvin. «Que estará ele fazendo aqui?») Logo depois estavam em segurança, e a máquina saltou adiante ao dar início à sua jornada pelas entranhas da Terra. A aventura chegara ao fim. Daí a pouco, como sempre acontecia, estariam em casa, e todos os espantos, terrores e maravilhas ficariam para trás. Estavam exaustos e felizes. Pela inclinação do piso, Alvin percebeu que a subterráquea penetrava na terra. Provavelmente Callistron sabia o que estava fazendo e essa era a maneira de levá-los para casa. Ainda assim, era uma pena… — Callistron — disse ele, de repente —, por que não vamos para o alto? Ninguém conhece a forma ou os contornos da Montanha de Cristal. Seria maravilhoso sair numa de suas encostas, avistar o céu, a terra ao redor. Estamos debaixo da terra há muito tempo. Assim que terminou de pronunciar essas palavras, Alvin pressentiu que havia cometido um erro. Alystra emitiu um grito abafado, o interior da subterráquea estremeceu como uma imagem vista através da água, e para além das paredes metálicas que os cercavam Alvin sentiu mais um de seus vislumbres de outro universo. Os dois mundos pareciam em conflito, predominando ora um, ora outro. De repente tudo acabou. Houve um estalo, uma sensação de que alguma coisa se quebrava — e o sonho chegou ao fim. Alvin estava de volta a Diaspar, a seu quarto familiar, flutuando meio metro acima do chão, pois o campo de gravidade o protegia do contato doloroso com a matéria bruta. Alvin voltara a ser ele mesmo. Aquela era a sua realidade — e ele sabia exatamente o que viria a seguir. Alystra foi a primeira a aparecer, mais perplexa do que aborrecida, pois estava perdidamente apaixonada por ele. — Ah, Alvin — ela se queixou, olhando-o da parede na qual como que se materializara. — A aventura estava tão emocionante! Por que você estragou tudo? — Desculpe-me. Não tive intenção… Só achei que seria uma boa idéia… Foi interrompido pela chegada simultânea de Callistron e Floranus. — Ouça aqui, Alvin — começou Callistron. — Esta foi a terceira vez que você interrompeu uma Saga. Ontem, quebrou a seqüência, quando quis subir o Vale do Arco-íris. E anteontem estragou tudo quando quis chegar à Origem, naquela linha de tempo que estávamos explorando. Daqui por diante, se você não cumprir as regras, terá de ir sozinho. Callistron desapareceu enfurecido, levando Floranus consigo. Narillian não apareceu, por certo estava demasiado aborrecido. Só ficou a imagem de Alystra, olhando para Alvin com tristeza. Alvin inclinou o campo gravitacional, desceu e caminhou em direção à mesa que se materializara. Sobre ela surgiu uma taça com frutas exóticas, ao invés da comida que havia desejado, pois na confusão de seus pensamentos ele havia cometido um equívoco. Para não deixar patente seu erro, pegou a fruta de aspecto menos perigoso e pôs-se a chupá-la com cuidado. — Bem — disse Alystra finalmente —, o que pretende fazer? — Não posso evitar essas coisas — respondeu ele, com um certo azedume. — Acho que as regras são imbecis. Além disso, como posso lembrar-me delas quando estou vivendo uma Saga? Portanto, comporto-me do modo que me parece mais natural. Você não gostaria de olhar a montanha? Alystra arregalou os olhos, horrorizada. — Mas isso significaria sair para o mundo exterior! — arquejou. Alvin sabia que não adiantava argumentar. Ali estava a barreira que o separava do povo de seu mundo, e que poderia condená-lo a uma vida de frustração. Ele estava sempre querendo sair, em realidade ou em sonho. Mas para toda a população de Diaspar, o «lá fora» era um pesadelo que não podiam encarar. Jamais falavam sobre isso, se fosse possível evitar o assunto. Sair era coisa imunda, má. Nem mesmo Jeserac, seu tutor, lhe dizia por quê… Alystra ainda o observava, perplexa mas com uma expressão de ternura. — Você é infeliz, Alvin — disse. — Ninguém deve ser infeliz em Diaspar. Deixe-me ir falar com você. Alvin sacudiu a cabeça com rispidez. Sabia onde aquilo o levaria, e por ora queria apenas ficar sozinho. Duplamente desapontada, Alystra desapareceu de vista. Uma cidade com dez milhões de seres humanos, pensou Alvin, e nem uma só pessoa com quem ele pudesse abrir-se. Eriston e Etania gostavam dele à sua maneira, mas agora, quando a custódia chegava ao fim, sentiam-se satisfeitos por poder deixar que ele moldasse os próprios divertimentos e a própria vida. Nos últimos cinco anos, quando as divergências de Alvin com os padrões convencionais se tornaram óbvias, ele sentira, mais de uma vez, o ressentimento dos pais. Esse ressentimento não era com ele — se fosse, isso seria pelo menos uma coisa que poderia enfrentar —, mas com o completo azar que havia feito com que fossem escolhidos, entre os milhões de habitantes da cidade, como seus guardiões quando Alvin saiu, vinte anos antes, da Casa de Criação. Vinte anos. Ele se lembrava do seu primeiro momento e das primeiras palavras que escutara: — Seja bem-vindo, Alvin. Eu sou Eriston, designado como seu pai. E esta é Etania, sua mãe. — Na época, essas palavras nada significavam, mas a mente as gravara com total exatidão. Alvin lembrava-se de ter olhado de alto a baixo para seu próprio corpo, agora três ou cinco dedos mais alto, mas que quase nada se modificara desde o momento do nascimento. Ele havia chegado ao mundo quase inteiramente desenvolvido, e pouco teria mudado desde então, exceto no peso, quando chegasse o tempo de abandoná-lo, dentro de uns mil anos. Antes dessa primeira recordação, nada. Um dia talvez esse nada retornasse, mas tratava-se de uma idéia demasiado remota para que suas sensações fossem atingidas. Mais uma vez, Alvin voltou a mente para o mistério de seu nascimento. Não lhe parecia estranho que pudesse ter sido criado, num determinado instante, pelos poderes e forças que materializavam todos os objetos da vida diária. Não, o mistério não residia aí. O enigma que nunca tinha sido capaz de resolver, nem ninguém lhe havia explicado, estava em seu caráter de único. Único… palavra estranha, triste. Coisa também estranha e triste para alguém ser. Quando essa palavra lhe era aplicada (e isso acontecera várias vezes, quando pensavam que não estivesse ouvindo), ela parecia encerrar insinuações funestas, que ameaçavam alguma coisa mais que sua própria felicidade. Seus pais, o tutor, todos quantos ele conhecia, haviam tentado protegê-lo da verdade, como se estivessem ansiosos por preservar a inocência de sua longa infância. A simulação duraria pouco, porém. Daí a alguns dias ele se tornaria cidadão pleno de Diaspar, e nada do que desejasse saber lhe poderia ser ocultado. Por exemplo, por que não se saía bem nas Sagas? Das milhares formas de recreação da cidade, essa era a mais popular. Quando alguém entrava numa Saga, não era simplesmente como um observador passivo, como nas diversões rudimentares das épocas primitivas, que Alvin experimentara às vezes, era um participante ativo e possuía (ou parecia possuir) livre-arbítrio. Os fatos e as cenas que constituíam a matéria-prima das aventuras podiam ter sido preparados de antemão por artistas desconhecidos, mas havia ampla flexibilidade, de modo a permitir grande variação. Podia-se penetrar nesses mundos fantasmagóricos com os amigos, procurar emoções que não existiam em Diaspar — e enquanto durasse o sonho não havia maneira de distingui-lo da realidade. Na verdade, quem poderia ter certeza de que a própria Diaspar não fosse um sonho? Ninguém fora capaz de esgotar todas as Sagas imaginadas e gravadas desde os primórdios da cidade. Elas envolviam toda a gama de emoções e continham variações infinitas e sutilíssimas. Algumas — as mais populares entre os jovens — eram dramas simples de aventuras e descobrimentos, outras eram puras explorações de estados de alma, outras ainda constituíam exercícios de lógica ou matemática que proporcionavam deleites sem fim às mentes mais sofisticadas. No entanto, embora as Sagas parecessem agradar a seus companheiros, deixavam Alvin com uma sensação de inconclusão. Apesar das cores e das emoções, dos temas e dos locais variados, faltava alguma coisa nelas. Alvin concluiu que as Sagas nunca chegavam a uma conclusão, eram sempre pintadas em tela pequena demais. Não havia grandes panoramas, as paisagens inesperadas por que sua alma ansiava. Acima de tudo, faltava-lhes a sugestão da imensidão onde se haviam realizado as explorações do homem antigo — o vácuo luminoso entre as estrelas e os planetas. Os planejadores das Sagas tinham sido acometidos pela mesma estranha fobia que atacava todos os habitantes de Diaspar. Até mesmo suas aventuras vicárias deviam ocorrer dentro de portas fechadas, em cavernas subterrâneas ou em pequenos vales claros e limpos cercados de montanhas, que encobriam a visão do resto do mundo. Só havia uma explicação. Há muito tempo, antes talvez da construção de Diaspar, acontecera alguma coisa que destruíra não só a curiosidade e a ambição do Homem, mas que o trouxera para casa, de volta das estrelas, para refugiar-se, acovardado, no pequeno mundo fechado da última cidade terrestre. O Homem renunciara ao Universo e se encarcerara no ventre de Diaspar. O flamejante e invencível impulso que o arremessara para a Galáxia e para as ilhas de névoa, mais além, havia-se esmaecido. Nenhuma nave havia penetrado no Sistema Solar, por eras sem fim. Em algum lugar, entre as estrelas, os descendentes do Homem podiam estar ainda construindo Impérios e arruinando sóis, mas a Terra a tudo permanecia alheia e indiferente. A Terra, sim. Mas Alvin, não. Capítulo II A sala estava mergulhada na escuridão, excetuada uma parede brilhante sobre a qual fluíam e refluíam ondas de cor, enquanto Alvin lutava com os sonhos. Parte do desenho o satisfazia, ele havia admirado imensamente as linhas acidentadas das montanhas que saltavam do mar. Havia algo de poder e orgulho naquelas curvas ascendentes, Alvin estudara-as longamente, colocando-as, então, na unidade de memória do visualizador, onde ficariam preservadas enquanto ele fazia experiências com o resto do quadro. Alguma coisa lhe escapava, conquanto não soubesse o quê. Tentara repetidamente preencher os espaços em branco, enquanto o instrumento lia em sua mente os desenhos cambiantes e os materializava na parede. Não adiantara. As linhas saíam borradas e inseguras, as cores manchadas e opacas. Se o artista não sabia qual era seu objetivo, nem mesmo o mais milagroso dos instrumentos seria capaz de encontrá-lo para ele. Alvin interrompeu os rabiscos insatisfatórios e olhou com dissabor as três quartas partes vazias do retângulo, que tentava preencher com beleza. Num impulso repentino, duplicou a proporção do desenho e desviou-o para o centro da estrutura. Não… esse era um processo canhestro, e o equilíbrio estava errado. E o pior é que a mudança de escala havia revelado os defeitos da construção, a falta de rigor daquelas linhas à primeira vista corretas. Teria de começar tudo de novo. «Rasura total», ordenou ele à máquina. O azul do mar definhou, as montanhas se dissolveram como névoa, até ficar apenas o branco. Era como se os desenhos não tivessem existido, como se estivessem perdidos no limbo que tragara todos os mares e montanhas da Terra em épocas anteriores ao nascimento de Alvin. A luz apagou-se e o retângulo luminoso, no qual Alvin estivera projetando seus sonhos, mesclou-se ao ambiente, fundindo-se com as outras paredes. Mas seriam mesmo paredes? Para quem nunca tivesse visto aposento semelhante, ele pareceria na verdade muito estranho. Era inteiramente desprovido de contornos e carecia de mobília, de modo que Alvin dava a impressão de estar no centro de uma esfera. Nenhuma linha visível separava paredes de chão ou de teto. Não havia nada sobre o que se pudesse fixar os olhos. O espaço em torno de Alvin tanto podia ter três metros como três quilômetros — o sentido da visão não tinha ali objeto definido. Era difícil resistir à tentação de caminhar para a frente, com os braços estendidos, a fim de descobrir os limites físicos de tão insólito lugar. Não obstante, tais salas haviam sido o «lar» para a maioria da raça humana durante a maior parte de sua história. Bastava a Alvin formular o pensamento adequado e as paredes se transformariam em janelas abertas para qualquer parte da cidade, por ele escolhida. Outro desejo, e máquinas que ele jamais vira encheriam o cômodo com imagens de qualquer tipo de mobília que ele necessitasse. O fato de os móveis assim obtidos serem ou não «reais» era problema que molestara poucos homens durante os últimos bilhões de anos. Decerto não seriam menos reais do que aquela outra contrafação, a matéria sólida, e quando já não fossem necessários poderiam voltar ao mundo fantasmal dos bancos de memória da cidade. Como tudo em Diaspar, jamais se gastavam — e jamais mudariam, a menos que os modelos armazenados fossem cancelados por ato ou desejo deliberado. Alvin já reconstruíra parcialmente o aposento quando um repique persistente, semelhante ao de sinos, soou em seus ouvidos. Estruturou mentalmente o sinal de admissão e a parede em que estivera pintando dissolveu-se mais uma vez. Tal como esperava, ali estavam os pais com Jeserac um pouco atrás. A presença do tutor significava que aquela reunião familiar não seria nada comum — mas isso ele já sabia de antemão. A ilusão era perfeita e não se perdeu quando Eriston começou a falar. Na realidade, como Alvin não ignorava, Eriston, Etania e Jeserac estavam a quilômetros dali, pois os construtores da cidade haviam conquistado o espaço de maneira tão completa como haviam subjugado o tempo. Alvin não sabia com segurança nem mesmo onde os pais viviam, em meio às incontáveis espirais e complexos labirintos de Diaspar, mas tinham-se mudado desde a última ocasião em que estivera fisicamente diante deles. — Alvin — começou Eriston —, vinte anos já se passaram desde que sua mãe e eu nos encontramos com você… Sabe o que isso significa. Nossa custódia acabou, e você está livre para fazer o que bem desejar. Havia um traço — mas apenas um traço — de tristeza na voz de Eriston. O que predominava era o alívio, como se agradasse a Eriston que uma situação de fato já perdurando há certo tempo tivesse agora reconhecimento legal. Fazia anos que Alvin antecipara sua liberdade. — Compreendo — respondeu. — Agradeço a vocês os cuidados que tiveram comigo. Sempre me lembrarei de vocês em todas as minhas vidas. Essa era a resposta formal. Alvin já a ouvira tantas vezes que o significado real das palavras lhe escapava. Tratava-se tão somente de um padrão de sons sem significado específico. No entanto, pensando bem, «todas as minhas vidas» era expressão inusitada. Alvin sabia vagamente o que ela significava, agora, chegava o momento de saber com certeza. Havia muitas coisas em Diaspar que ele ainda não compreendia e que teria de aprender nos séculos vindouros. Por um momento, teve-se a impressão de que Etania desejava falar. Ela ergueu a mão, desfazendo a gaze iridescente da túnica, mas deixou-a cair. Virou-se então desconsoladamente para Jeserac, e pela primeira vez Alvin percebeu que seus pais estavam preocupados. Sua memória passou rapidamente em revista as lembranças das últimas semanas. Não, não, nada houvera em sua vida recente capaz de provocar aquela tímida incerteza, aquela expressão quase de alarme que parecia cercar Eriston e Etania. Jeserac, contudo, parecia dominar a situação. Lançou um olhar interrogativo a Eriston e Etania e, satisfeito com o fato de não terem mais o que dizer, lançou-se à arenga por cuja oportunidade esperava há tantos anos. — Alvin — começou —, por vinte anos você foi meu pupilo, e eu fiz o melhor que pude para lhe ensinar as maneiras da cidade e conduzi-lo à herança que lhe pertence. Você me fez muitas perguntas, não foi a todas que pude responder. Você ainda não estava pronto para saber umas tantas coisas, outras, eu mesmo desconhecia. Agora, sua infância terminou, embora a juventude mal tenha começado. Ainda é meu dever guiá-lo, no caso de você necessitar de ajuda. Dentro de duzentos anos, Alvin, você começará a conhecer alguma coisa dessa cidade, bem como um pouco de sua história. Eu mesmo, que já me aproximo do fim da vida, só vi menos de um quarto de Diaspar e talvez menos de uma milésima parte de seus tesouros. Até agora, Alvin nada tinha ouvido de novo, não havia, porém, como apressar Jeserac. O ancião olhou-o resolutamente através do golfo dos séculos, enquanto suas palavras caíam com o peso da sabedoria incomensurável adquirida durante uma vida de longo contato diário com homens e máquinas. — Diga-me uma coisa, Alvin. Porventura já se perguntou onde você estava antes de ter nascido, antes de encontrar-se diante de Etania e Eriston, na Casa da Criação? — Creio que estava no nada. Talvez não passasse de uma matriz no cérebro da cidade, esperando o momento de ser criado. Alguma coisa assim. Um divã materializou-se ao lado de Alvin. Sentou-se e ficou à espera de que Jeserac prosseguisse. — Você está certo, naturalmente — foi a resposta. — Mas essa não é uma resposta completa, é apenas uma pequena parte dela. Até agora você só conheceu crianças de sua idade, todas elas ignorantes da verdade. Dentro em breve elas poderão recordar, mas você não. Por isso devemos prepará-lo para enfrentar os fatos. «Durante um bilhão de anos, Alvin, a raça humana tem vivido nesta cidade. Desde que o Império Galático desmoronou, e os Invasores retornaram às estrelas, este tem sido o nosso mundo. Fora dos muros de Diaspar, nada existe — exceto o deserto de que falam as nossas lendas.» «Pouco sabemos a respeito de nossos ancestrais primitivos, exceto que tinham vida muito curta e que, por estranho que possa parecer, podiam reproduzir-se sem auxílio das unidades de memória ou de organizadores de matéria. Num processo complexo e, ao que parece, incontrolável, os moldes-chaves de cada ser humano eram preservados em microscópicas estruturas celulares, criadas, efetivamente, dentro do corpo. Caso você se interesse, os biólogos poderão falar a respeito, mas por ora basta dizer que o método já não possuía grande importância quando foi abandonado, no alvorecer da história.» «Como qualquer outro objeto, um ser humano é definido pela sua estrutura: seu padrão. O padrão de um homem, e mais ainda o padrão que define a mente desse homem, é incrivelmente complexo. Ainda assim, a natureza foi capaz de reduzi-lo a uma pequeníssima célula, incapaz de ser vista a olho desarmado.» «O que a natureza pode fazer, também pode o Homem, a seu modo. Não sabemos quanto tempo ele levou para atingir tal finalidade. Um milhão de anos, talvez… mas o que isso significa? Nossos antepassados terminaram por aprender a analisar e guardar as informações que definiriam qualquer ser humano específico — e a usar essas informações a fim de recriar o original, da mesma forma como você acabou de criar esse divã.» «Sei perfeitamente que essas coisas lhe interessam, Alvin, mas não posso dizer-lhe exatamente como se chegou a isso. A maneira de armazenar a informação não tem importância, o que vale é a informação propriamente dita. Ela pode assumir a forma de palavras escritas em geral, de campos magnéticos variáveis ou, ainda de padrões de carga elétrica. O Homem utilizou todos esses métodos de armazenamento, e muitos outros. Basta dizer que, há muito, muito tempo, ele era capaz de armazenar a si próprio — ou, para sermos mais exatos, ao modelo incorpóreo, do qual podia ser chamado de volta à existência.» «Isso você já sabe. Através desse método, nossos antepassados nos deram, na prática, a imortalidade, mas evitaram os problemas criados pela abolição da morte. Mil anos de vida corporal são mais do que suficientes para qualquer pessoa, ao fim desse tempo, a mente está repleta de recordações, e ela só aspira ao descanso… ou a um novo nascimento.» «Muito em breve, Alvin, eu me prepararei para deixar esta vida. Regressarei através de minhas memórias, condensando-as e cancelando as que não desejo manter. Então, entrarei na Casa da Criação, mas por uma porta que você nunca viu. Este velho corpo deixará de existir e, conseqüentemente, acabará também a minha consciência. Nada restará de Jeserac exceto uma galáxia de elétrons congelada no núcleo de um cristal.» «Dormirei, Alvin, e sem sonhos. Então, certo dia, daqui a cem mil anos, quem sabe eu me encontrarei num novo corpo, diante daqueles que vierem a ser escolhidos como meus guardiães. Cuidarão de mim como Eriston e Etania cuidaram de você, pois, a princípio, eu nada saberei sobre Diaspar nem terei lembranças do que fui antes. Essas memórias retornarão devagar, ao fim de minha infância, e eu crescerei com base nelas, enquanto mover-me rumo a meu novo ciclo de existência.» «Esse é o padrão de nossas vidas, Alvin. Todos nós já voltamos aqui, muitíssimas vezes antes, e embora os intervalos de inexistência variem segundo leis aparentemente aleatórias, a população atual jamais se repete. O novo Jeserac terá amigos novos e diferentes, mas o velho Jeserac — aquilo que eu quiser preservar dele — ainda existirá.» «Isso não é tudo. Em qualquer ocasião, Alvin, somente um centésimo dos cidadãos de Diaspar vive e caminha pelas ruas. A grande maioria jaz nos bancos de memória, esperando pelo sinal que poderá chamá-los a um novo estágio de vida. Portanto, temos continuidade, mas estamos sujeitos a mudança, temos a imortalidade, mas não a estagnação.» «Sei o que você está pensando, Alvin. Quer saber quando recuperará as lembranças de suas vidas anteriores, a exemplo de seus companheiros. Não existem essas memórias, porque você é único. Tentamos ao máximo mantê-lo na ignorância desse fato, a fim de que nenhuma sombra toldasse sua infância… embora eu acredite que você deve ter adivinhado parte da verdade. Não suspeitávamos disso até cinco anos atrás, mas agora não resta mais dúvida.» «Você, Alvin, é uma coisa que só tem acontecido raramente em Diaspar, desde sua fundação. Talvez tenha permanecido adormecido durante eras nos bancos de memória… ou talvez tenha sido criado há somente vinte anos, por força de alguma permuta fortuita. Pode ter sido planejado, no começo, pelos arquitetos da cidade, ou ser fruto de um acidente de nossa própria época.» «Não sabemos. Tudo o que sabemos é que você, Alvin, está à margem da raça humana, nunca viveu antes. Na verdade, digo que você é a primeira criança a nascer na Terra depois de pelo menos dez milhões de anos.» Capítulo III Quando Jeserac e seus pais desapareceram, Alvin fez o que pôde para esvaziar o cérebro de qualquer pensamento. Fechou o quarto à sua volta, para que ninguém pudesse interromper o transe em que mergulhara. Não estava dormindo. Dormir era coisa que nunca fizera, coisa que pertencia a um mundo de dias e noites, e em Diaspar só havia dia. Esvaziar a mente constituía para ele a coisa mais próxima ao sono e, embora não fosse realmente indispensável, sabia que aquilo o ajudaria a pôr em ordem a mente. Havia aprendido poucas coisas novas. Quase tudo o que Jeserac lhe dissera, ele já adivinhara antes. Uma coisa, porém, era ter adivinhado, e outra verificar que suas previsões estavam confirmadas além de qualquer possibilidade de contestação. De que modo aquilo poderia afetar-lhe a vida? Não sabia ao certo, e a hesitação era uma sensação nova. Talvez não fizesse diferença. Se não conseguisse adaptar-se a Diaspar, nesta vida, ele o faria na próxima… Mesmo enquanto formulava o pensamento, a mente o rejeitava. Diaspar podia bastar para o resto da humanidade, mas não para ele. Não tinha dúvida de que poderia gastar mil existências sem conhecer todas as maravilhas da cidade, sem provar todas as permutas de experiência que ela tinha a oferecer. Tudo isso eram coisas que ele poderia fazer… mas, se não fizesse outras, jamais ficaria satisfeito. Só havia um problema a enfrentar: o que mais havia ali a ser feito? A pergunta sem resposta tirou-o, de um só arranco, do devaneio. Não podia permanecer ali naquele inquieto estado de espírito, e só havia um lugar na cidade onde poderia encontrar alguma paz de espírito. A parede tremulou e deixou de existir parcialmente quando ele a atravessou, saindo para o corredor, e suas moléculas polarizadas resistiram à passagem como um vento fraco a soprar em seu rosto. Existiam muitas maneiras pelas quais ele poderia ser transportado sem esforço, mas Alvin preferiu caminhar. O aposento achava-se quase no nível principal da cidade, e uma passagem curta deixou-o numa rampa em espiral que o levou até a rua. Alvin não tomou conhecimento da via móvel e dirigiu-se à calçada estreita — sem dúvida um gesto excêntrico, pois tinha diante de si um caminho de vários quilômetros. Mas ele apreciava o exercício, que lhe aliviava a mente. Além disso, havia tanto o que ver que seria tolice passar rapidamente pelas mais recentes maravilhas de Diaspar quando se dispunha de uma eternidade de vida. Era costume dos artistas da cidade — e todos em Diaspar eram artistas — exibir de vez em quando suas últimas produções ao lado das vias móveis, de modo que os transeuntes pudessem admirá-las. Dessa maneira, bastavam alguns dias para que a população examinasse com espírito crítico qualquer criação digna de nota e expressasse sobre ela seus pontos de vista. O veredicto, gravado automaticamente por dispositivos de amostragem de opinião, que ninguém ainda tinha sido capaz de subornar ou ludibriar — e não faltavam tentativas disso —, decidia qual era a obra-prima. Se a votação fosse suficientemente conclusiva, a matriz dessa obra entrava para a memória da cidade. Quem assim desejasse poderia possuir, no futuro, uma cópia indistinguível do original. Todas as outras peças seguiam o destino de tais trabalhos: eram dissolvidas em seus elementos originais ou acabavam na residência de amigos dos artistas. Alvin viu apenas um objet d'art que o impressionou realmente: era uma criação de pura vida, que lembrava vagamente uma flor que desabrochasse. Abrindo-se vagarosamente a partir de um minúsculo núcleo de cor, expandia-se em espirais e pétalas complexas. Depois, subitamente sucumbia e reiniciava o ciclo. Não exatamente o mesmo, pois não havia dois ciclos idênticos. Embora Alvin a examinasse durante uma vintena de pulsações, de cada feita ela apresentava diferenças sutis e indefiníveis. Mas o padrão básico era sempre o mesmo. Ele sabia por que amava essa peça de escultura intangível. Seu ritmo expansivo dava a impressão de espaço e, também, de fuga. Por esse motivo, a obra não despertaria provavelmente a mesma emoção nos conterrâneos de Alvin. Anotou o nome do artista e decidiu procurá-lo na primeira oportunidade. Todas as vias, tanto as móveis como as fixas, terminavam ao atingir o parque que era o coração verde da cidade. Ali, numa área circular de cinco quilômetros de diâmetro, achava-se a memória do que tinha sido a Terra antes que o deserto engolisse tudo, menos Diaspar. Primeiro, uma ampla faixa de grama, depois árvores baixas que pareciam cada vez mais grossas à medida que se caminhava sob sua sombra. Ao mesmo tempo, o chão inclinava-se suavemente para baixo, de modo que quando enfim se saía da estreita floresta, todos os sinais da cidade haviam desaparecido, ocultos pela cortina de árvores. O longo curso d'água que corria à frente de Alvin era chamado simplesmente de o Rio. Não tinha, nem precisava, de outro nome. A intervalos era cruzado por pontes estreitas, e corria ao redor do parque num círculo completo e fechado, quebrado por lagoas ocasionais. Que um rio de águas velozes como aquele pudesse retornar para si mesmo, depois de um curso de menos de dez quilômetros, era coisa que Alvin jamais considerara esquisita. Na verdade, não teria achado nada extraordinário se em determinado ponto do circuito o Rio empreendesse uma escalada. Diaspar encerrava coisas ainda mais estranhas. Cerca de doze pessoas nadavam numa das pequenas lagoas, e Alvin parou a observá-las. Conhecia a maioria de vista, se não de nome, e por um momento esteve tentado a ir juntar-se a elas. Mas o segredo que ele estava conduzindo fez com que se decidisse a não fazê-lo, e Alvin limitou-se ao papel de espectador. Fisicamente, não havia como determinar, qual daqueles jovens havia saído da Casa de Criação naquele ano, e qual deles vivia em Diaspar há tanto tempo quanto Alvin. Apesar de consideráveis, as variações de tamanho e peso não apresentavam correlação alguma com a idade. As pessoas nasciam assim, simplesmente, e ainda que, em geral, quanto mais altas mais idosas fossem, essa regra era de aplicação duvidosa, a menos que se tratasse de uma pessoa várias vezes centenária. O rosto constituía orientação mais segura. Alguns dos recém-nascidos eram mais altos do que Alvin, mas tinham um olhar de imaturidade, uma expressão de inquiridora surpresa diante do mundo em que agora se encontravam — expressão essa que os traía ao primeiro exame. Era estranho pensar que, adormecidas no fundo de suas mentes, houvesse vistas infinitas das vidas que em breve iriam recordar. Alvin os invejava, mas não estava certo de ter motivos para isso. A primeira existência de uma pessoa constituía bem precioso que nunca deveria repetir-se. Era maravilhoso contemplar a vida pela primeira vez, no frescor do alvorecer. Ah, se houvesse outras pessoas como ele, com quem pudesse compartilhar pensamentos e sensações… No entanto, fisicamente, ele tinha exatamente as mesmas características daquelas crianças que se divertiam na água. O corpo humano não havia mudado muito durante o bilhão de anos transcorridos desde a construção de Diaspar, pois o desenho básico havia sido congelado eternamente nos bancos de memória da cidade. No entanto, havia-se alterado boa parte de sua primitiva forma, embora a maioria das modificações fossem internas e, portanto, invisíveis ao olhar. O Homem havia-se reconstruído muitas vezes no decurso de sua longa história, no esforço de abolir as doenças de que a carne tinha sido herdeira. Acessórios desnecessários como unhas e dentes haviam desaparecido. Os pêlos limitavam-se à cabeça, não havia qualquer vestígio deles no corpo. A mudança que mais teria surpreendido os homens das eras anteriores era, talvez, o desaparecimento do umbigo. Essa inexplicável ausência lhes daria muito o que pensar, e à primeira vista eles se sentiriam também desafiados pelo problema de distinguir machos e fêmeas. Talvez chegassem até à presunção de não haver qualquer diferença, no que estariam incorrendo em erro grave. Nas circunstâncias apropriadas, não restava dúvida quanto à masculinidade de qualquer homem de Diaspar. Ocorria, apenas, que agora o «equipamento» viril era inteiramente recolhido quando fora de uso, a armazenagem interna melhorara enormemente a disposição pouco elegante e, a bem da verdade, bastante perigosa criada pela natureza. Era verdade que a reprodução desde muito deixara de ser competência do corpo, por ser questão demasiado importante para ser entregue aos jogos do acaso em que os cromossomos eram usados como dados. Contudo, e embora a concepção e o nascimento já não representassem nem mesmo memórias, o sexo continuava a existir. Já nos tempos remotos, nem mesmo uma centésima parte da atividade sexual tinha relação com a reprodução. O desaparecimento desse simples um por cento havia mudado o padrão da sociedade humana e a significação de palavras como «pai» e «mãe» — mas permanecia o desejo, embora sua satisfação já não tivesse agora objetivo mais profundo senão a de quaisquer dos outros prazeres dos sentidos. Alvin deixou os companheiros de geração e continuou em direção ao centro do parque. Viam-se ali caminhos claramente demarcados cruzando e recruzando fileiras de arbustos e vez por outra penetrando em estreitas ravinas entre grandes penhascos recobertos de líquen. Alvin a certa altura encontrou uma pequena máquina poliédrica, não maior do que a cabeça de um homem, flutuando entre as ramagens de uma árvore. Ninguém sabia quantas variedades de robôs havia em Diaspar, mantinham-se a distância e desincumbiam-se de suas tarefas com tal eficiência que era raríssimo encontrar um deles. O solo começou a elevar-se de novo. Alvin estava-se aproximando da pequena colina no centro exato do parque e, portanto, da própria cidade. Havia ali menos obstáculos e voltas e ele tinha uma visão clara do topo da elevação e do edifício simples que a encimava. Estava um tanto ofegante ao chegar a seu destino. Mas satisfeito por poder descansar encostado afinal numa das colunas róseas e olhar o caminho que acabara de trilhar. Há formas arquitetônicas que nunca mudam, porque alcançaram a perfeição. O Túmulo de Yarlan Zey poderia ter sido projetado pelos construtores de templos das primeiras civilizações, embora lhes fosse impossível imaginar de que materiais era feito. O teto abria-se para o céu e a única câmara era pavimentada com grandes lajes, que à primeira vista pareciam pedras naturais. Durante muitas eras geológicas, pés humanos haviam cruzado e recruzado aquele chão, sem qualquer traço no material inconcebivelmente resistente. O criador do grande parque — o construtor, diziam alguns, da própria Diaspar — sentava-se, no templo, com os olhos levemente baixos, como se examinasse os planos espalhados nos joelhos. O rosto conservava aquela expressão curiosamente fugidia que havia confundido o mundo durante tantas gerações. Alguns haviam-na interpretado como um capricho gratuito do artista, mas a outros parecia que Yarlan Zey estivesse rindo de algum gracejo secreto. Todo o edifício constituía um enigma, pois a seu respeito nada constava das memórias históricas da cidade. Alvin nem mesmo tinha certeza do que significava a palavra «túmulo». Talvez Jeserac lhe pudesse explicar, pois era colecionador de palavras arcaicas, que gostava de deixar cair aqui e ali na conversa, para confusão dos ouvintes. Daquele ponto central, Alvin dispunha de uma visão panorâmica do parque, sobre o biombo das árvores, e ainda da cidade, mais além. Os edifícios mais próximos encontravam-se a quase três quilômetros, formando um cinturão baixo que circundava o parque. Além deles, fileira após fileira, estendiam-se no horizonte as torres e terraços que subiam vagarosamente para o céu, tornando-se cada vez mais rebuscados e imponentes. Diaspar tinha sido planejada como uma entidade, era uma máquina possante e completa em si mesma. Mas, ainda que sua aparência exterior chegasse a causar espanto por sua complexidade, tudo aquilo dava simplesmente uma idéia vaga das maravilhas ocultas da tecnologia, sem as quais todos os enormes edifícios seriam sepulcros sem vida. Alvin olhava fixamente os limites de seu mundo. A quinze, vinte quilômetros, com seus detalhes perdidos na distância, estavam as muralhas externas da cidade, sobre as quais parecia repousar o teto do céu. Nada havia além delas — exceto o vazio palpitante do deserto, no qual um homem logo perderia o juízo. Por que, então, aquele vazio o atraía, como não atraía a mais ninguém que ele já houvesse conhecido? Alvin não sabia. Continuou a contemplar as espirais coloridas e as ameias que encerravam agora o domínio total da humanidade, como se procurasse uma resposta à sua própria pergunta. Não a encontrou. Mas naquele momento, quando seu coração ansiava pelo inalcançável, tomou uma decisão. Sabia agora o que ia fazer de sua vida. Capítulo IV Jeserac não foi de grande ajuda, muito embora não se mostrasse tão reticente quanto Alvin temia. Já escutara aquelas perguntas em sua longa carreira de mentor, e não acreditava que mesmo um Único pudesse causar muitas surpresas ou trazer-lhe problemas que não estivesse em condições de resolver. Era bem verdade que Alvin começava a mostrar algumas pequenas excentricidades de conduta que mais cedo ou mais tarde poderiam exigir correção. Não participava, como seria de desejar, da vida social meticulosamente elaborada de Diaspar, nem dos mundos de fantasia dos companheiros. Não demonstrava grande interesse pelos domínios mais elevados do pensamento, o que era de admirar, sobretudo em sua idade. Mais estranha ainda era sua insólita vida amorosa. Não se esperava que ele viesse a formar uniões estáveis pelo menos antes de passado um século, mas a brevidade de seus romances já se tornara conhecida. Eram intensos enquanto duravam — mas nenhum deles ultrapassara algumas semanas. Segundo tudo indicava, Alvin só era capaz de se concentrar em uma coisa de cada vez. Em certas ocasiões, entregava-se de corpo e alma aos jogos eróticos dos companheiros, ou desaparecia por vários dias com a companheira escolhida. Contudo, uma vez cessada a animação, sobrevinham prolongados períodos em que se mostrava de todo alheio àquilo que deveria representar o maior interesse de sua idade. Sem dúvida, isso era ruim para ele, e pior ainda para suas amantes abandonadas, que se punham a vaguear pela cidade e gastavam tempo enorme até encontrar consolo. Conforme Jeserac percebera, Alystra chegara agora a essa situação deplorável. Não que Alvin fosse frio ou leviano. Mas nas coisas do amor, como em tudo mais, tinha-se a impressão de que ele buscava uma meta que Diaspar não lhe poderia fornecer. Contudo, nada disso preocupava Jeserac. Um Único estaria certamente sujeito a tais distorções. No momento apropriado, Alvin passaria a obedecer às normas gerais da cidade. Ninguém, por mais excêntrico ou brilhante que fosse, seria capaz de afetar a inércia colossal de uma sociedade que permanecera praticamente imutável durante aproximadamente um bilhão de anos. Jeserac não se limitava a acreditar em estabilidade, para ele, além da estabilidade, nada mais era concebível. — O problema que o afeta é muito antigo — disse ele a Alvin —, mas você ficaria surpreso ao saber quantas pessoas aceitam o mundo passivamente. É verdade que a raça humana ocupou no passado um espaço infinitamente maior do que o desta cidade. Você já viu um pouco do que a Terra era, antes que os desertos se alastrassem e os oceanos desaparecessem. Essas lembranças que você projeta com tanto prazer são as mais remotas que possuímos, as únicas que mostram o planeta antes da chegada dos Invasores. Não acredito que muita gente tenha visto essas imagens antigas. Aqueles espaços ilimitados, abertos para o infinito, não podem ser suportados por todos. «E mesmo a Terra, veja bem, não passa de um grão de areia no Império Galáctico. O vazio entre os abismos interestelares constitui um pesadelo que nenhum homem saudável tentaria imaginar. Nossos ancestrais cruzaram esses abismos na aurora da história, quando saíram para construir o Império. Cruzaram-nos novamente quando os Invasores os expulsaram da face da Terra.» «A lenda diz (e trata-se apenas de uma lenda, veja) que celebramos um pacto com os Invasores. Poderiam ficar com o Universo que tanto desejavam, e nós nos contentaríamos com o mundo em que havíamos nascido.» «Mantivemos o pacto e esquecemos os sonhos vãos de nossa infância, da mesma forma como você também esquecerá os seus, Alvin. Os homens que construíram esta cidade, e que planejaram a sociedade que ela gerou, eram senhores das mentes e da matéria. Colocaram dentro destas paredes tudo quanto a raça humana pudesse vir a desejar — e garantiram que jamais sairíamos daqui.» «Ah, as barreiras físicas são as menos importantes. É possível que haja caminhos para fora da cidade, mas não creio que você os seguisse até o fim, caso os encontrasse. E mesmo que fosse bem sucedido, que vantagem obteria? Seu corpo não resistiria por muito tempo no deserto, quando a cidade o deixasse de proteger e nutrir.'' — Se existe um caminho para fora da cidade — disse Alvin devagar — o que me impede de ir embora? — Essa é uma pergunta tola — respondeu Jeserac. — Acho que você já sabe a resposta. Jeserac estava certo, mas de um modo diferente do que imaginava. Alvin realmente já sabia — ou melhor, adivinhara. Seus companheiros lhe haviam fornecido a resposta, tanto na vida consciente como nas aventuras oníricas que haviam compartilhado. Nunca tinham sido capazes de deixar Diaspar, o que Jeserac ignorava, entretanto, era que a compulsão que governava a vida deles não tinha nenhum poder sobre Alvin. Este não sabia se sua condição de Único havia sido causada por um acidente ou por desígnio antigo, mas uma de suas conseqüências tinha sido esta. E Alvin perguntava-se quantas dessas conseqüências ele teria ainda a desvendar. Em Diaspar ninguém tinha pressa, e esta era uma regra que nem mesmo Alvin violava com freqüência. Durante várias semanas pensou cuidadosamente no problema, e gastou muito tempo repassando na memória histórias mais antigas da cidade. Passou horas a fio apoiado nos braços impalpáveis de um campo antigravitacional, enquanto o projetor hipnótico lhe abria a mente para o passado. Quando o registro terminava, a projeção vacilava e sumia, mas Alvin permanecia ali, deitado, olhando para o vazio, antes de regressar das épocas remotas e encarar a realidade. Via ainda as léguas infindas de águas azuis, mais vastas do que a própria terra, rolando em ondas contra as praias douradas. Em seus ouvidos ressoavam ainda o quebrar dos vagalhões desaparecidos havia um bilhão de anos. Recordava as florestas e as pradarias, bem como os estranhos animais que tinham dividido o mundo com o Homem. Eram raros esses registros antigos. Aceitava-se pacificamente, embora ninguém soubesse a razão, que em certa ocasião, entre a chegada dos Invasores e a construção de Diaspar, todas as memórias dos tempos primitivos se tinham perdido. E essa destruição fora tão completa que era difícil atribuí-la a mero acidente. A humanidade perdera o seu passado, à exceção de algumas crônicas que podiam ser inteiramente lendárias. Antes de Diaspar tudo era simples — as Origens. Naquele limbo estavam mergulhados, juntos, os primeiros homens que haviam domesticado o fogo e os primeiros a libertar a energia atômica, os primeiros a construir uma canoa de madeira e os primeiros a alcançar as estrelas. No lado remoto desse deserto de tempo, todos eram vizinhos. Alvin pretendia realizar suas experiências sozinho, mas solidão era coisa difícil de conseguir em Diaspar. Logo que saiu do quarto, deu com Alystra, que de modo algum procurou dar à sua presença ali um ar de casualidade. Jamais ocorrera a Alvin que Alystra fosse bela, pois jamais vira a fealdade humana. Quando a beleza é universal, ela perde seu poder sobre o coração, e só a sua ausência é capaz de produzir qualquer efeito emocional. Por um instante, Alvin aborreceu-se com o encontro, que trazia a lembrança de paixões já estéreis para ele. Ainda era por demais jovem e auto-suficiente para sentir necessidade de ligações duradouras, e quando a ocasião chegasse talvez viesse a ter dificuldade para mantê-las. Mesmo nos momentos de maior intimidade a barreira de sua singularidade se interpunha entre ele e suas amantes. Acontecia que, como demonstrava seu corpo bem proporcionado, ele ainda era uma criança, e assim permaneceria durante decênios, enquanto um a um, os companheiros recordariam as vidas anteriores e o deixariam para trás. Isso já acontecera antes e o impedira, por cautela, de entregar-se sem reservas a outra pessoa. Até mesmo Alystra, que por ora parecia tão cândida e simples, em breve se tornaria um inimaginável complexo de recordações e conhecimentos acumulados. A vacilação sentida por Alvin desapareceu quase imediatamente. Não havia motivo para que Alystra não o acompanhasse, se assim desejasse. Alvin estava longe de ser um egoísta, e não queria guardar a nova experiência para si mesmo, como um avarento. Na verdade, poderia até aprender muitas coisas observando as reações dela. Alystra não fez perguntas, o que era de estranhar, quando o canal expresso os deixou fora do coração agitado da cidade. Juntos, encaminharam-se para a seção central de alta velocidade, indiferentes ao milagre que se consumava sob seus pés. Um engenheiro do mundo antigo chegaria à insanidade tentando compreender como um caminho aparentemente sólido movia-se com rapidez cada vez maior. Mas para Alvin e Alystra era natural a existência de matérias que acumulavam as propriedades dos sólidos, numa direção, e dos líquidos, em outra. Ao redor deles, os edifícios agigantavam-se cada vez mais, como se a cidade procurasse fortalecer suas proteções contra o mundo exterior. Como seria estranho, pensava Alvin, se aquelas paredes verticais se tornassem transparentes como vidro e se pudesse observar a vida lá dentro! Espalhadas no espaço ao derredor havia pessoas conhecidas, pessoas que viria a conhecer ainda e pessoas estranhas que jamais encontraria — estas últimas, poucas, na verdade, pois no decurso de sua vida encontraria quase todos os habitantes de Diaspar. A maior parte dessas pessoas estaria sentada em seus próprios cômodos, mas não sozinha. Tinham apenas de formular o desejo para estarem, real, mas não fisicamente, na presença de qualquer pessoa que escolhessem. Não sofriam de tédio, pois dispunham de acesso a tudo quanto acontecera nos reinos da imaginação ou da realidade, desde a época da construção da cidade. Para homens cujas mentes estavam assim constituídas, a existência era absolutamente satisfatória, e também fútil, embora ainda longe da compreensão de Alvin. A medida que ele e Alystra se afastavam do coração da cidade, o número de pessoas nas ruas diminuía gradativamente, e já não restava nenhuma à vista quando atingiram um ponto de descanso, após suave desaceleração, junto a uma longa plataforma de mármore. Caminharam através do frio remoinho de matéria onde a substância do caminho móvel refluía à origem, e defrontaram-se com uma parede cheia de túneis brilhantemente iluminados. Sem hesitar, Alvin escolheu um e penetrou nele, com Alystra logo atrás. O campo peristáltico os recolheu e os impulsionou para diante. Confortavelmente deitados, observavam os arredores. Parecia incrível que estivessem num túnel tão profundamente cavado na terra. A arte que se ocupara de tudo quanto existia em Diaspar também atuara ali, e acima deles os céus davam a impressão de abertos aos ventos. Ao redor, elevavam-se as cúspides da cidade, reluzindo à luz solar. Não era aquela a cidade que Alvin conhecia, mas a Diaspar de uma era remotíssima. Embora a maior parte dos grandes edifícios fosse semelhante, diferenças sutis aumentavam o interesse do cenário. Alvin desejava ir mais adiante, mas nunca havia encontrado uma maneira de retardar seu avanço pelo túnel. Daí a pouco eram depositados suavemente num amplo cômodo elíptico, completamente cercado de janelas, através das quais podiam perceber vislumbres tantalizantes de jardins ornamentados de flores brilhantes. Havia ainda jardins em Diaspar, mas só tinham existido na mente do artista que os concebera. Certamente não havia flores semelhantes no mundo de hoje. Alystra estava encantada com a beleza das flores, e tinha naturalmente a impressão de que Alvin a levara ali para que as visse. Alvin ficou a observá-la por alguns momentos, correndo alegremente de um cenário a outro, gozando os prazeres de cada nova descoberta. Existiam centenas de locais idênticos nos edifícios meio vazios da periferia de Diaspar, mantidos em ordem perfeita pelos poderes ocultos que velavam por eles. Algum dias a maré da vida poderia chegar ali mais uma vez, mas até esse tempo o velho jardim constituía um segredo de que só eles partilhavam. — Temos mais coisas pela frente — disse Alvin. — Isso é apenas o começo. Ao penetrar ele por uma das janelas, a ilusão se desfez, não havia jardim algum além do vidro, mas apenas uma passagem circular, em curva ascendente. Alvin avistou Alystra um pouco abaixo dele, embora soubesse que ela não poderia vê-lo. A moça, porém, não hesitou e logo depois achava-se ao lado dele, na passagem. O chão que pisavam começou a deslizar lentamente para a frente, como se ansioso por levá-los a um destino. Caminharam um pouco sobre o caminho, até que a velocidade da via tomou-se tão grande que qualquer esforço se fazia desnecessário. O corredor inclinou-se um pouco para cima e cerca de trinta metros adiante fez uma volta, em ângulo reto. Mas somente a lógica levava a essa conclusão. Para os sentidos, era como se fossem conduzidos por um corredor inteiramente plano. O fato de eles estarem movendo-se, na realidade, para o alto, através de um poço vertical, a uma grande profundidade, não lhes provocava qualquer sensação de insegurança, uma falha no campo de polarização era simplesmente impossível. O corredor começou a «baixar» novamente, até descrever um novo ângulo reto. O movimento do chão diminuiu um pouco, até deter-se ao fim de um longo pórtico decorado com espelhos. Alvin sabia muito bem que ali não tinha como apressar Alystra — não só porque algumas características femininas haviam-se mantido, desde Eva, como também porque ninguém seria capaz de resistir ao fascínio de um lugar daqueles. Devido a algum truque do artista, apenas alguns espelhos refletiam a cena como era na realidade, e mesmo aqueles, como Alvin já se convencera, mudavam constantemente de posição. Os espelhos restantes decerto refletiam alguma coisa, mas era desconcertante para uma pessoa ver-se movimentando entre cenários cambiantes e imaginários. Às vezes viam-se pessoas indo e vindo nos limites do mundo atrás dos espelhos, e por mais de uma vez Alvin dera com rostos conhecidos. No entanto, concluiu que não estivera olhando para amigos que houvesse conhecido em sua existência. Através da mente do artista desconhecido, ele estivera olhando para dentro do passado, observando as encarnações anteriores de pessoas que trilhavam os caminhos do mundo em que ele próprio vivia. Entristeceu-se ao recordar sua condição de Único, ao pensar que, por mais que esperasse diante daqueles cenários, jamais encontraria qualquer eco remoto de si próprio. — Você sabe, por acaso, onde estamos? — perguntou ele a Alystra, quando terminaram o giro dos espelhos. Alystra sacudiu a cabeça. — Perto dos limites da cidade — respondeu, descuidadamente. — Parece que andamos bastante, mas não faço idéia do espaço que percorremos. — Estamos na Torre de Loranne — respondeu Alvin. — É um dos pontos mais altos de Diaspar. Venha, vou mostrar-lhe. Segurando a mão de Alystra, conduziu-a para fora do corredor. Não havia saídas visíveis na parede, mas em vários pontos se viam sinais da existência de corredores laterais. Quando alguém se aproximava dos espelhos nesses pontos, os reflexos pareciam fundir-se numa arcada de luz, e podia-se penetrar por ela em outro corredor. Alystra perdeu toda noção consciente dos desvios e voltas, e por fim saíram num túnel longo, pelo qual penetrava um vento frio e constante. O túnel estendia-se horizontalmente por mais de cem metros, em várias direções, e seus últimos confins eram débeis círculos luminosos. — Não gosto desse lugar — queixou-se Alystra. — É frio. Era provável que ela jamais tivesse experimentado frio de verdade em sua vida, e Alvin sentiu-se culpado. Deveria ter aconselhado que ela trouxesse uma capa, uma capa eficiente, pois todas as roupas em Diaspar eram ornamentais e não serviam para proteger o corpo. Considerando que o desconforto de Alystra era por culpa dele, Alvin ofereceu-lhe sua própria capa, sem uma palavra. Não havia no gesto traço algum de galanteria. A igualdade entre os sexos, estabelecida havia muito tempo, destruíra esses convencionalismos. Se a culpa fosse de Alystra, ela lhe teria dado a capa, que ele teria aceito automaticamente. Não era desagradável caminhar com o vento soprando atrás deles, e logo depois atingiram o fim do túnel. Uma treliça de pedra os impedia de prosseguir, o que era de esperar, pois estavam à beira do nada. O grande conduto de ar abria-se na face escarpada da torre, abaixo de Alvin e Alystra despenhava-se um declive de pelo menos trezentos metros. Estavam no alto das muralhas externas da cidade. Diaspar estendia-se a seus pés. Poucas pessoas a tinham visto ali. A visão era a inversão da cena que Alvin contemplara do centro do Parque. Acompanhava com os olhos as ondas concêntricas de pedra e metal que desciam em extensões de um quilômetro e meio em direção ao coração da cidade, mais além, divisava campos e bosques, parcialmente encobertos pelas torres, bem como o Rio, correndo eternamente em círculo. Ainda mais longe, os remotos baluartes de Diaspar voltavam a elevar-se para o céu. A seu lado, Alystra gozava a paisagem com prazer, mas sem surpresa. Já tinha visto a cidade vezes sem conta, de outros mirantes bem situados e quase tão belos — e com muito mais conforto. — Aí está o nosso mundo. Inteiro — disse Alvin. — Agora, quero mostrar-lhe outra coisa. Alvin afastou-se da treliça e começou a caminhar para o distante círculo de luz na extremidade do túnel. O vento soprava frio contra seu corpo envolto em luz, mas ele mal se dava conta do desconforto de assim penetrar na corrente de ar. Dera apenas alguns passos quando verificou que Alystra não mostrava intenção de segui-lo. Ela o observava, com a capa emprestada adejando ao vento e uma das mãos protegendo o rosto. Alvin viu que seus lábios se moviam, mas não conseguiu entender o que ela dizia. Olhou-a primeiramente com surpresa, e depois com impaciência mesclada de certa piedade. O que dissera Jeserac era verdade. Ela não podia segui-lo. Aprendera o significado daquele distante círculo luminoso, pelo qual o vento penetrava em Diaspar. Atrás de Alystra ficava o mundo conhecido, cheio de maravilhas, mas desprovido de surpresas, flutuando como uma bolha brilhante mas fechada pelo rio do tempo. Adiante, a poucos passos dela, estendia-se a imensidão vazia, o mundo dos Invasores. Alvin voltou atrás, surpreendendo-se ao encontrar Alystra trêmula. — Por que está com medo? — perguntou. — Ainda estamos em segurança. Você olhou por aquela janela atrás de nós. Nesse caso, por que não olha também por essa outra? Alystra olhava-o como se ele fosse um monstro estranho. E para seus padrões, ele realmente era. — Eu não seria capaz disso — respondeu afinal. — Só de pensar nisso sinto um frio mais forte do que o deste vento. Não vá além, Alvin! — Mas não há lógica nisso! — protestou Alvin, sem remorsos. — Que mal lhe poderia fazer ir até o fim deste corredor e olhar para fora? O mundo lá fora é estranho e deserto, mas nada tem de horrível. Na verdade, quanto mais o olho, mais belo ele me parece. Alystra não esperou que terminasse. Fez meia volta e deslizou pela rampa que os trouxera ao túnel. Alvin não fez nenhum gesto para detê-la, pois isso implicaria sua vontade sobre outra pessoa. A persuasão, ele via, seria inteiramente inútil. Sabia que Alystra não iria parar até chegar de volta à sua casa. E não havia perigo de que se perdesse nos labirintos da cidade, pois não havia dificuldade em reconstituir de volta seus próprios passos. A habilidade instintiva de escapar mesmo ao mais emaranhado dos labirintos não passava de uma das muitas conquistas do Homem desde que começara a viver em cidades. O rato, há muito extinto, tinha sido forçado a adquirir a mesma capacidade quando abandonara os campos para viver em contato com a humanidade. Alvin aguardou um momento, meio esperançoso de que Alystra mudasse de idéia e voltasse. Não fora colhido de surpresa pela reação da amiga — somente por sua violência e irracionalidade. Embora lamentasse sinceramente que tivesse ido embora, não podia deixar de pensar que ela bem poderia ter deixado a capa. Além do frio, era desagradável também marchar contra o vento que penetrava nos pulmões da cidade. Alvin lutava ao mesmo tempo contra a corrente de ar e contra a força que a mantinha em movimento. Só ao atingir a treliça de pedra e ao lançar os braços em torno de suas barras é que ele pôde relaxar o corpo. Havia espaço suficiente para ele introduzir a cabeça, e mesmo assim o panorama apresentava-se algo restrito, pois a entrada do conduto de ar estava em parte fixada à parede da cidade. Contudo, o que ele via era suficiente. Centenas de metros abaixo, a luz do sol varria o deserto. Os raios quase horizontais incidiam sobre a grade e lançavam desenhos fantásticos de ouro e de sombra pelo interior do túnel. Alvin apertou os olhos para não ser ofuscado pelo clarão e examinou a terra pela qual nenhum homem havia caminhado durante eras sem conta. Parecia um mar eternamente gelado. Quilômetro após quilômetro, dunas de areia ondulavam na direção do oeste, com os contornos grosseiramente exagerados pela luz oblíqua. Aqui e ali algum capricho do vento formara curiosos sorvedouros e ravinas na areia, tornando-se difícil, às vezes, sustentar que nenhuma daquelas obras de escultura fosse obra de seres inteligentes. A uma grande distância, tão grande que Alvin não podia julgar até onde se estendia, elevava-se uma fileira de colinas suavemente arredondadas. Essas colinas tinham sido uma decepção para Alvin, ele teria dado tudo para ver ao vivo as montanhas alcantiladas de que falavam os antigos registros e seus próprios sonhos. O sol alteava-se sobre o cume das colinas, com sua luz enfraquecida e avermelhada pelas centenas de quilômetros de atmosfera que havia atravessado. Havia duas grandes manchas pretas em seu disco. Alvin tinha aprendido, em seus estudos, que essas coisas existiam, mas ficava surpreso de poder vê-las com tanta facilidade. Pareciam quase um par de olhos a espreitá-lo, enquanto ele, agachado em seu solitário buraco de espia, sentia o vento perpassar-lhe os ouvidos. Não houve crepúsculo. Com o cair do sol, os poços de sombra entre as dunas reuniram-se velozmente num único e vasto lago de escuridão. A cor fugiu do céu, as estrias vermelhas e douradas desvaneceram-se, dando lugar a um azul ártico que mergulhou na noite, cada vez mais profundamente. Alvin esperou por aquele momento emocionante que só ele, de toda a humanidade, chegara a conhecer — o momento em que a primeira estrela reluz e ganha vida. Muitas semanas haviam-se passado desde que ele viera pela primeira vez àquele lugar, e ele sabia que a configuração do céu noturno devia ter mudado nesse intervalo. Contudo, não se achava preparado para o primeiro olhar aos Sete Sóis. Não poderiam ter outro nome. As palavras lhe afloraram espontaneamente aos lábios. Formavam um pequeno grupo compacto e surpreendentemente simétrico contra o poente. Seis deles estavam dispostos numa elipse levemente achatada, a qual, Alvin percebia, era na realidade um círculo perfeito, um pouco inclinado em direção à linha de visão. Cada estrela tinha cor diferente, Alvin podia identificar a vermelha, a azul, a dourada e a verde, mas as de outros matizes enganavam-lhe a vista. No centro exato da formação achava-se um único gigante branco — a estrela mais brilhante de todo o céu visível. Em conjunto, o grupo assemelhava-se a uma peça de joalheria, parecia incrível, e contra todas as leis da probabilidade, que a natureza houvesse jamais projetado composição tão perfeita. À medida que seus olhos se acostumavam à escuridão, Alvin pôde localizar o grande véu de poeira que tinha sido chamado de Via Láctea. Estendia-se do zênite até o horizonte, com os Sete Sóis incrustados em suas dobras. As outras estrelas já haviam surgido agora, para desafiá-los, mas seus agrupamentos desiguais apenas reforçavam o enigma daquela simetria perfeita. Era quase como se alguma força se houvesse deliberadamente oposto às desordens do universo natural, deixando seu sinal entre as estrelas. Dez vezes, não mais, a Galáxia havia girado em torno de seu eixo desde que o Homem pisara a Terra pela primeira vez. Segundo seus próprios termos, um simples momento. Mas nesse curto período, ela mudara completamente, mudara mais do que tinha o direito de fazer no curso natural dos acontecimentos. Os grandes sóis que em certa época haviam ardido com violência, no orgulho da juventude, caminhavam agora para a decadência. Mas Alvin não vira os céus em sua antiga glória e, por isso, ignorava o que perdera. O frio penetrando em seus ossos, obrigou-o a voltar depressa para a cidade. Alvin livrou-se da treliça e esfregou o corpo, ativando a circulação. À sua frente, no túnel, a luz que emanava de Diaspar era tão fulgurante que por um momento ele teve de proteger os olhos. Fora da cidade havia coisas como dia e noite, mas em seu interior o dia era eterno. Ao descer o sol, o céu sobre Diaspar se enchia de luz e ninguém podia perceber quando a iluminação natural havia desvanecido. Mesmo antes de os homens perderem a necessidade de dormir, já haviam banido a escuridão das cidades. A única noite que chegava a Diaspar era uma rara e imprevisível obscuridade que às vezes visitava o Parque e o transformava num local de mistério. Alvin voltou lentamente pelo corredor de espelhos, ainda com o cérebro tomado pela noite e pelos espelhos. Parecia-lhe não haver maneira de escapar para aquele vazio enorme — e nenhum objetivo racional para essa idéia. Jeserac tinha dito que um homem não demoraria a morrer no deserto, e Alvin bem podia acreditar nisso. Talvez algum dia ele chegasse a descobrir algum modo de deixar os limites físicos de Diaspar, mas mesmo que o fizesse estava seguro de que teria de retornar logo à cidade. Atingir o deserto seria façanha divertida, mas nada mais. Seria um jogo que não poderia compartilhar com ninguém, mas nada mais. Ainda assim, teria de aceitá-lo, se isso ajudasse a apaziguar o anseio que lhe ia na alma. Relutando em voltar ao seu mundo familiar, Alvin demorou-se entre os reflexos do passado. Diante de um dos grandes espelhos, observou as cenas que iam e vinham. O mecanismo de aparecimento dessas imagens era controlado por sua presença, e até certo ponto por seus pensamentos. Os espelhos permaneciam sempre vazios até ele entrar na sala, mas agitavam-se assim que ele se punha a caminhar entre eles. Alvin achava-se agora em pé num largo pátio que na realidade nunca vira, mas que com toda probabilidade existia em algum lugar de Diaspar. O pátio estava cheio de gente, numa epécie de reunião pública. Dois homens discutiam cortesmente numa plataforma, enquanto seus seguidores os rodeavam, levantando indagações ocasionais. O total silêncio aumentava a sedução da cena, pois a imaginação supria imediatamente a ausência de sons. Que estariam aqueles homens debatendo? Talvez não se tratasse de uma cena real do passado, mas sim de um episódio engendrado pela sua imaginação. O cuidadoso equilíbrio das figuras, os movimentos levemente formais, tudo isso parecia bem arrumado demais para ser verdadeiro. Alvin observou os rostos na multidão, à procura de alguém que ele reconhecesse. Não conhecia ninguém, mas pensou que poderia estar olhando para amigos que não encontraria no decorrer de séculos. Quantos padrões possíveis de fisionomia humana existiriam? O número era enorme, mas ainda finito, sobretudo porque todas as variações pouco estéticas já haviam sido eliminadas. As pessoas no espelho continuavam sua discussão de há muito esquecida, ignorando a presença de Alvin entre elas. Às vezes era-lhe difícil não acreditar que estivesse fora da cena, pois a ilusão parecia perfeita. Um dos fantasmas do espelho pareceu caminhar para trás de Alvin e desapareceu imediatamente, da mesma forma como teria feito um objeto real. E quando um outro se movimentou à sua frente, foi a vez do próprio Alvin eclipsar-se. Já se preparava para ir embora quando notou um homem com estranha indumentária, um pouco à margem do grupo principal. Seus movimentos, suas roupas, tudo nele parecia ligeiramente deslocado naquela reunião. Ele não obedecia ao padrão, tal como Alvin, um anacronismo. O homem era, porém, muito mais do que isso. Era real e olhava para Alvin, com um sorriso ligeiramente enigmático. Capítulo V Em sua vida, ainda curta, Alvin havia encontrado menos de um milésimo dos habitantes de Diaspar. Não ficara surpreendido, portanto, com o fato de o homem diante dele ser um estranho. Causava-lhe surpresa, porém, encontrar alguém ali, na torre deserta, tão perto da fronteira do desconhecido. Voltou as costas ao mundo do espelho e encarou o intruso. Antes que dissesse alguma coisa, o outro falou. — Você é Alvin, creio. Quando descobri que alguém estava visitando este lugar, devia ter percebido que se tratava de você. A observação não tinha, evidentemente, intenção de ofensa, era uma simples declaração positiva, e foi assim que Alvin a aceitou. Ser reconhecido não o surpreendeu. Gostasse ou não disso, sua condição de Único, com potencialidades secretas, fizera-o conhecido de todos na cidade. — Sou Khedron — continuou o estranho, como se isso explicasse tudo. — Chamam-me de Bufão. Alvin ficou na mesma, e Khedron deu de ombros, num gesto de resignação zombeteira. — Assim é a fama… Você é jovem, e gracejar ainda não fez parte de sua vida. Sua ignorância está desculpada. Havia alguma coisa em Khedron de agradavelmente inusitado. Alvin rebuscou a mente à procura do significado do estranho nome, «Bufão». Evocava lembranças muito vagas, mas não pôde identificá-las. Havendo tantos títulos na complexa estrutura social da cidade, era preciso toda uma vida para aprendê-los todos. — Você vem sempre a este lugar? — perguntou Alvin, com uma ponta de ciúme. Ele havia crescido considerando a Torre de Loranne como uma propriedade pessoal, e agora sentia-se ligeiramente perturbado ao saber que suas maravilhas eram do conhecimento de outra pessoa. Já teria Khedron, pensou, olhado para o deserto ou contemplado as estrelas caindo em direção ao oeste? — Não — disse Khedron, quase como se estivesse respondendo aos pensamentos silenciosos de Alvin. — Nunca estive aqui antes. Mas é um prazer para mim entrar em contato com acontecimentos invulgares desta cidade, e faz muito tempo que ninguém vinha à Torre de Loranne. Alvin perguntou a si mesmo, rapidamente, como Khedron teria tomado conhecimento de suas visitas anteriores, mas logo afastou a questão. Diaspar estava cheia de olhos e ouvidos, bem como de outros órgãos sensoriais ainda mais sutis, que a mantinham informada de tudo quanto nela acontecia. Alguém suficientemente interessado poderia sem qualquer dúvida descobrir um meio de tirar proveito desses canais. — Mesmo que seja raro alguém vir aqui — disse Alvin, ainda usando as palavras com cautela —, por que alguém deveria interessar-se por isso? — Porque em Diaspar — respondeu Khedron — o inusitado, a raridade, é prerrogativa minha. Eu já marquei você há muito tempo. Sabia que haveríamos de nos encontrar algum dia. Apesar de minha aparência, também sou um Único. Ah, mas não do modo como você é. Esta não é a minha primeira vida. Já saí umas mil vezes da Casa da Criação. Mas em algum ponto, nos começos de minha origem fui escolhido como Bufão e há apenas um Bufão de cada vez em Diaspar. E para muitos, mesmo um já é demais. Havia um quê de ironia nas palavras de Khedron que deixava Alvin ainda sem entender as coisas direito. Não seria cortês fazer perguntas pessoais diretas, mas afinal de contas fora Khedron quem tocara no assunto. — Perdoe minha ignorância — disse Alvin —, mas o que é um Bufão? E o que ele faz? — Você pergunta «o quê» — redargüiu Khedron —, de modo que começarei por lhe dizer «o porquê». É uma história comprida, mas creio que ela lhe interessará. — Tudo me interessa — respondeu Alvin com sinceridade. — Muito bem. Os homens que projetaram Diaspar — se é que eles eram homens, coisa de que às vezes duvido — tiveram de solucionar um problema incrivelmente complicado. Diaspar não é simplesmente uma máquina, você sabe, mas um organismo vivo e mortal. Estamos de tal modo habituados à nossa sociedade que não podemos apreciar em que medida ela pareceu estranha a nossos primeiros antepassados. Temos aqui um mundo pequeno e fechado sobre si mesmo, que nunca muda, a não ser em detalhes mínimos, e, contudo, perfeitamente estável, era após era. É provável que este mundo já tenha durado mais tempo que todo o resto da história humana. Mas naquela história, conforme se acredita, existiam culturas separadas e civilizações em quantidade, que se mantinham em existência durante certo tempo e depois acabavam. Como teria Diaspar conquistado essa extraordinária estabilidade? Alvin surpreendeu-se de que alguém pudesse formular uma pergunta tão elementar, e suas esperanças de aprender alguma coisa nova começaram a terminar. — Por meio dos Bancos de Memória, é claro — respondeu. — A população de Diaspar sempre foi a mesma, embora seus agrupamentos humanos reais sempre mudem, com a criação ou destruição dos corpos. Khedron balançou a cabeça negativamente. — Isso é apenas uma parte da verdade. Com a mesma população se poderia formar muitas sociedades diferentes. Não posso provar isso, não disponho de comprovações claras, mas acredito que isso seja verdade. Os construtores da cidade não determinaram somente a população, fixaram também leis que governassem a sua conduta. Raramente nos apercebemos de que essas leis existem, mas ainda assim nós as obedecemos. Diaspar é uma cultura congelada, incapaz de ultrapassar limites estreitos. Os Bancos de Memória guardam muitas outras coisas além dos modelos de nossos corpos e nossas personalidades. Guardam a imagem da própria cidade, preservando cada átomo de todas as mudanças promovidas pelo tempo. Veja este calçamento. Foi feito há milhares de anos, e um número incontável de pés já caminhou sobre ele. Você pode ver algum sinal de desgaste? Qualquer matéria sem proteção, por mais dura que fosse, já se teria transformado em pó. Mas enquanto houver energia para operar os Bancos de Memória, e enquanto as matrizes que eles contêm puderem controlar os moldes da cidade, a estrutura física de Diaspar jamais mudará. — Mas têm havido algumas mudanças — interpôs Alvin. — Muitos prédios foram demolidos desde que a cidade foi construída, e edificaram-se novos. — Naturalmente… mas apenas descarregando-se as informações contidas nos Bancos de Memória e definindo-se então novos padrões. De qualquer modo, estou me referindo ao fato simplesmente como exemplo da maneira como a cidade se preserva fisicamente. Eis onde quero chegar: há igualmente em Diaspar máquinas que preservam nossa estrutura social. Elas observam qualquer sinal de mudança e o corrigem antes que se torne excessivamente grande. E como fazem isso? Não sei. Talvez através da seleção daqueles que saem da Casa da Criação. Talvez reparando nossos modelos de personalidade. Podemos achar que dispomos de livre arbítrio, mas podemos estar seguros disso? «De qualquer modo, o problema foi resolvido. Diaspar tem sobrevivido e atravessado as eras em segurança, como um imenso navio que carrega como carga tudo aquilo que a raça humana legou. E uma tremenda conquista de engenharia social. Se valeu a pena, é outra questão.» «Contudo, não basta estabilidade. Facilmente, ela gera a estagnação e, depois disso, a decadência. Os planejadores da cidade imaginaram medidas para evitar isso, ainda que esses edifícios vazios constituam prova de que não foram totalmente bem sucedidos. Eu, Khedron, o Bufão, sou parte desse plano. Uma parte pequeníssima, é possível. Gosto de pensar o contrário, mas nunca poderei ter certeza.» — E que parte é essa? — perguntou Alvin, ainda muito confuso e já um tanto exasperado. — Digamos que eu introduzo na cidade quantidades calculadas de desordem. Explicar minhas operações seria destruir a eficiência delas. Julgue-me por meus feitos, embora poucos, e não por minhas palavras, que são muitas. Alvin jamais estivera diante de alguém como Khedron. O Bufão era uma verdadeira personalidade — um personagem que se alteava, da cabeça aos pés, sobre o nível geral de uniformidade típico de Diaspar. Mesmo não havendo, como parecia, possibilidade de descobrir exatamente quais eram os seus deveres e como ele os executava, isso era de menor importância. O importante, sentiu Alvin, era que Khedron era alguém com quem se podia conversar — quando houvesse pausas em seu solilóquio — e que poderia dar a ele, Alvin, resposta a muitos problemas que o intrigavam. Juntos, desceram os corredores da Torre de Loranne, saindo ao lado do caminho móvel, ali vazio. Só quando já percorriam novamente as ruas é que ocorreu a Alvin que Khedron não lhe perguntara o que é que ele estava fazendo na fronteira do desconhecido. Desconfiava de que Khedron soubesse a resposta, e que estivesse interessado, embora não surpreso. Alguma coisa lhe dizia que seria dificílimo encontrar algo que surpreendesse Khedron. Trocaram seus números de identificação, para que pudessem chamar um ao outro quando quisessem. Alvin estava ansioso por ver novamente o Bufão, embora pensasse que sua companhia pudesse acabar mostrando-se cansativa, se muito prolongada. Antes de reencontrá-lo, queria saber o que seus amigos, principalmente Jeserac, tinham a lhe dizer sobre Khedron. — Até nosso próximo encontro — disse Khedron e desapareceu em seguida. Alvin sentiu-se incomodado. Quando se encontrava uma pessoa através de uma mera projeção física, sem que se estivesse presente em carne e osso, era de bom tom deixar isso claro desde o início. Caso contrário, a pessoa não avisada disso podia ficar às vezes em considerável desvantagem. Era provável que Khedron tivesse permanecido tranqüilo em sua casa todo o tempo — onde quer que ele morasse. O número-índice que dera a Alvin assegurava o recebimento de qualquer mensagem, mas não revelava onde vivia. Pelo menos isso estava de acordo com os costumes normais. Em geral uma pessoa distribuía à vontade seu número, mas o endereço real era coisa que só revelava aos amigos mais chegados. Enquanto caminhava de volta para a cidade, Alvin pensava no que Khedron lhe contara sobre Diaspar e sua organização social. Era estranho que ele nunca houvesse encontrado outra pessoa que se mostrasse insatisfeita com seu modo de vida. Diaspar e seus habitantes haviam sido projetados como parte de um plano-mestre, formavam uma simbiose perfeita. Durante suas longas vidas, as pessoas daquela cidade não sofriam nem se angustiavam. Embora aquele mundo pudesse ser pequeno, em comparação com os modelos de eras remotas, sua complexidade era surpreendente, sua riqueza de tesouros e divertimentos superava qualquer cálculo. Ali o Homem havia reunido todos os frutos de seu gênio, tudo quanto havia sido salvo da ruína do passado. Conforme se dizia, todas as cidades um dia existentes tinham dado alguma coisa a Diaspar, antes da chegada dos Invasores, seu nome fora conhecido em todos os mundos que o Homem perdera. Para a edificação de Diaspar haviam sido canalizados todo o talento e toda a arte do Império. Quando os grandes dias aproximavam-se do fim, homens de gênio remodelaram a cidade, dando-lhe as máquinas que a faziam imortal. Por mais que muitas coisas fossem esquecidas, Diaspar viveria para conduzir os descendentes do Homem, com toda segurança, através do Tempo. Nada haviam realizado, exceto sua própria sobrevivência, e estavam satisfeitos com isso. Havia um milhão de coisas em que ocupar as vidas, desde a hora em que vinham à luz, já crescidos, na Casa da Criação, à hora em que, com os corpos só um pouco mais envelhecidos, retornavam aos Bancos de Memória da cidade. Num mundo em que homens e mulheres possuíam uma inteligência que fora, em certa época, a marca do gênio, não existia perigo de enfado. Os deleites da conversação e do debate, as intrincadas formalidades do intercâmbio social — tudo isso bastava para ocupar boa parte da existência. Ademais, havia os grandes debates formais que a cidade inteira escutava extasiada, com suas mentes mais aguçadas entregues ao combate ou dedicadas à tarefa de escalar os picos altaneiros da filosofia, que não são jamais conquistados e por isso mesmo constituem desafio perene. Não havia homem ou mulher que não possuísse um absorvente interesse intelectual. Eriston, por exemplo, passava a maior parte do tempo em longos solilóquios com o Computador Central, que praticamente dirigia a cidade, mas dispunha ainda de tempo para vencer dezenas de discussões simultâneas com quantos se dispusessem a desafiá-lo. Durante trezentos anos Eriston tentara construir paradoxos lógicos que a máquina não conseguisse solucionar. E não tinha esperanças de fazer progressos reais antes de haver usado várias vidas. Os interesses de Etania eram de natureza mais estética. Com ajuda de organizadores de matéria, projetava e construía formas entrelaçadas tridimensionais de tal beleza e complexidade que representavam na verdade problemas extremamente avançados de topologia. Suas obras podiam ser vistas por toda Diaspar, e algumas estavam incorporadas aos pisos dos grandes pavilhões de coreografia, utilizadas como base para novas criações de balé e motivos de dança. Tais ocupações poderiam parecer áridas a quem não possuísse intelecto para lhes apreciar as sutilezas. Entretanto, não havia ninguém em Diaspar incapaz de compreender um pouco do que Eriston e Etania tentavam fazer e que não possuísse um passatempo próprio igualmente absorvente. O atletismo e vários esportes, inclusive muitos só possibilitados pelo controle da gravidade, tornavam agradáveis os cinco primeiros séculos da juventude. No campo da aventura e do exercício da imaginação, as Sagas proporcionavam tudo quanto se desejasse. Eram elas o inevitável produto final daquela busca de realismo que havia começado na reprodução, pelos homens, de imagens móveis e na gravação de sons, chegando à detectação de cenas da vida real ou imaginária. Nas Sagas a ilusão era perfeita porque todas as impressões sensoriais envolvidas eram levadas diretamente ao cérebro e as sensações conflitantes eram desviadas. O espectador arrebatado perdia contato com a realidade enquanto a aventura durasse, era como se vivesse um sonho, embora se acreditasse desperto. Num mundo de ordem e estabilidade, que em suas linhas gerais não haviam mudado em um bilhão de anos, talvez não fosse surpreendente encontrar grande interesse pelos jogos de azar. A Humanidade sempre fora fascinada pelo mistério dos dados que rolam, da carta que se revela, do giro da roleta. No fundo, esse interesse baseava-se na mera cupidez — emoção que não tinha lugar num mundo onde todos possuíam tudo de que pudessem necessitar moderadamente. De qualquer forma, o fascínio puramente intelectual pelo acaso continuava a excitar as mentes mais sofisticadas. Máquinas que funcionavam de maneira puramente aleatória — acontecimentos cujos resultados jamais poderiam ser previstos, por mais informações que se tivesse — podiam dar a filósofos e jogadores igual soma de divertimento. E subsistiam ainda, para gozo dos homens, os mundos entrelaçados do Amor e da Arte. Entrelaçados porque sem Arte o Amor se reduz à satisfação do desejo e a Arte não pode ser usufruída se não abordada com Amor. O Homem havia buscado a beleza em muitas formas — em seqüências de som, em linhas no papel, em superfície de pedra, nos movimentos do corpo humano, em cores que se espalhavam pelo espaço. Esses meios expressivos ainda sobreviviam em Diaspar, e no transcurso dos tempos outros haviam surgido. Contudo, ninguém estava seguro de que todas as possibilidades da arte já houvessem sido esgotadas, ou se ela teria outro significado fora da mente humana. E o mesmo se poderia dizer para o Amor. Capítulo VI Jeserac estava sentado, imóvel, no meio de um remoinho de números. Os primeiros mil números primos, expressos na escala binária que havia sido usada para todas as operações aritméticas desde a invenção dos computadores eletrônicos, marchavam em ordem à sua frente. Desfilavam fileiras intermináveis de 1 e de 0, trazendo aos olhos de Jeserac seqüências completas dos números que não possuíam quaisquer fatores além deles próprios e da unidade. Os números primos encerravam um mistério que sempre havia fascinado o Homem e ainda seduzia sua imaginação. Jeserac não era matemático, embora às vezes gostasse de imaginar que fosse. Tudo quanto podia fazer era procurar, na seqüência infinita dos números primos, relações e regras especiais que homens mais talentosos transformariam em leis gerais. Descobria como os números se comportavam, mas não podia explicar a razão desse comportamento. Dava-lhe prazer abrir caminho por entre a selva aritmética, e de vez em quando descobria maravilhas que a exploradores mais capacitados haviam escapado. Jeserac levantou a matriz de todos os possíveis números inteiros e fez o computador começar a enfíleirar os números primos em sua superfície tal como se dispusesse contas nas interseções de uma malha. Já havia feito isso centenas de vezes, mas nunca havia descoberto nada. No entanto, sentia-se fascinado pela maneira como os números que ele estudava se espalhavam, aparentemente sem obedecer a quaisquer leis, pelo espectro dos números inteiros. Conhecia as leis de distribuição já descobertas, mas sempre esperava descobrir outras. Não poderia, com justiça, ter-se queixado da interrupção. Se tivesse desejado permanecer em tranqüilidade, deveria para tanto ter ajustado o anunciador. Quando o suave som do carrilhão soou em seus ouvidos, a parede de números estremeceu, os algarismos se fundiram numa massa informe e Jeserac retornou ao mundo da mera realidade. Reconheceu Khedron imediatamente, mas não ficou nada satisfeito. Jeserac não se importava de ser perturbado em sua vida ordeira, mas Khedron representava o imprevisível. No entanto, saudou o visitante com polidez e ocultou qualquer sinal de sua ligeira preocupação. Quando duas pessoas se encontravam pela primeira vez — ou até mesmo na centésima vez —, era costume em Diaspar passar uma hora ou mais trocando cortesias, antes de começarem a tratar de coisas mais sérias, se as houvesse. De certa forma, Khedron irritou Jeserac por reduzir essas formalidades a apenas quinze minutos, dizendo então, abruptamente: — Gostaria de falar com você sobre Alvin. Você é o tutor dele, não? — É verdade — respondeu Jeserac. — Ainda vejo Alvin várias vezes por semana… sempre que ele deseja. — Você diria que ele é um aluno capaz? Jeserac pensou na questão. Não era fácil respondê-la. As relações aluno-tutor eram extremamente importantes, representando, na verdade, um dos alicerces da vida em Diaspar. Em média, dez mil mentes novas chegavam anualmente à cidade. Suas memórias anteriores ainda estavam latentes, e durante os vinte primeiros anos de existência, tudo quanto os rodeava parecia novo e estranho. Tinham de aprender a usar a infinidade de máquinas e dispositivos que constituíam o pano de fundo da vida diária e abrir caminho na mais complexa sociedade que o Homem jamais construíra. Parte dessa instrução era dada pelos casais escolhidos como pais dos novos cidadãos. A seleção era feita ao acaso, e os deveres não eram onerosos. Eriston e Etania não haviam dedicado mais que um terço de seu tempo na educação de Alvin, e tinham feito tudo o quanto deles se esperava. Os deveres de Jeserac limitavam-se aos aspectos mais formais dessa educação. Ficara convencionado que os pais ensinariam Alvin a se conduzir na sociedade, apresentando-o a um círculo cada vez mais amplo de amigos. Eram responsáveis por seu caráter, Jeserac, por sua mente. — Acho um pouco difícil responder a sua pergunta — disse Jeserac. — Evidentemente, não existe nada de errado na inteligência de Alvin, mas muitas das coisas que deveriam interessá-lo parecem encontrar da parte dele a mais completa indiferença. Por outro lado, revela uma curiosidade mórbida por assuntos que geralmente não são discutidos. — O mundo fora de Diaspar, por exemplo? — Sim… Mas como sabe disso? Khedron hesitou por um momento, indagando a si mesmo até que ponto deveria confiar em Jeserac. Sabia ser ele pessoa bondosa e bem intencionada, mas não ignorava também que o ancião devia sofrer a influência dos tabus que controlavam a todos em Diaspar — todos, exceto Alvin. — Foi um palpite meu — respondeu finalmente. Jeserac instalou-se mais confortavelmente nas profundezas da poltrona que ele havia acabado de materializar. Tratava-se de uma situação interessante, e ele queria analisá-la da maneira mais completa possível. Contudo, não haveria muito o que ficar sabendo, a menos que Khedron se dispusesse a cooperar. Ele deveria ter imaginado que um dia Alvin viria a conhecer o Bufão, com conseqüências impresíviveis. Khedron era a única outra pessoa na cidade que poderia ser considerada excêntrica — e mesmo essa excentricidade fora planejada pelos idealizadores de Diaspar. Havia-se descoberto, há muito tempo, que sem um pouco de crime e desordem a Utopia logo se tornaria insuportavelmente monótona. Contudo, devido à natureza das coisas, não se poderia garantir que o crime permanecesse no nível ideal exigido pelas equações sociais. Uma vez liberado e regulamentado, deixaria de ser crime. O ofício de Bufão foi a solução — à primeira vista ingênua, mas na realidade profundamente sutil — que os construtores da cidade encontraram. Em toda a história de Diaspar havia menos de duzentas pessoas cuja herança mental as apontava para a execução desse papel. Tinham elas certos privilégios que as protegiam das conseqüências de suas ações, embora no passado alguns Bufões houvessem ultrapassado os limites e pago a única penalidade que Diaspar podia impor — a de ser banido para o futuro antes que se consumasse sua presente encarnação. Em raras e imprevisíveis ocasiões, o Bufão punha a cidade em polvorosa com alguma brincadeira que não passava de uma peça bem pregada ou um ataque calculado contra crenças ou estilos de vida muito estimados. Bem consideradas as coisas, o nome «Bufão» era bastante apropriado. Tinham existido homens com deveres idênticos, e que atuavam com a mesma «liberdade», nos tempos das cortes e dos reis. — Será mais fácil — disse Jeserac — se usarmos de franqueza um com o outro. Sabemos que Alvin é Único, que nunca passou por vida anterior em Diaspar. Talvez você possa prever, melhor do que eu, as implicações disso. Duvido que qualquer coisa que acontece nesta cidade seja inteiramente fora dos planos, de modo que deve haver uma finalidade na criação de Alvin. Se ele cumprirá essa finalidade, qualquer que ela seja, não sei. Nem sei tampouco se é boa ou má. Não posso adivinhar qual seja. — Suponhamos que essa finalidade diga respeito a alguma coisa fora da cidade. Jeserac sorriu pacientemente. O Bufão se divertia, como seria de esperar. — Já contei a Alvin o que ele encontrará lá. Nada, a não ser o deserto. Leve-o lá, se puder. Talvez você saiba como. Quando ele vir a realidade, talvez se cure dessa esquisitice. — Acho que ele já a viu — disse Khedron baixo, falando mais para si mesmo do que para Jeserac. — Não creio que Alvin seja um rapaz feliz — continuou Jeserac. — Não formou afetos verdadeiros, e é duro ver como ainda sofre com essa obsessão. Mas antes de tudo, é muito jovem. Pode perfeitamente escapar dessa fase e tornar-se parte do padrão geral da cidade. Jeserac falava assim para readquirir confiança. Khedron ficou a imaginar se ele realmente acreditava no que dizia. — Diga-me uma coisa, Jeserac — perguntou Khedron, subitamente. — Alvin sabe que não é o primeiro Único? Jeserac mostrou-se um tanto alarmado e depois um pouco hostil. — Eu deveria ter previsto — disse tristemente — que você estaria a par disso. Quantos Únicos já existiram em toda a história de Diaspar? Chegarão a dez? — Quatorze — respondeu Khedron, sem hesitar. — Fora Alvin. — Você dispõe de informações melhores do que as minhas — disse Jeserac. — Talvez possa dizer-me então o que aconteceu a esses Únicos. — Eles desapareceram. — Obrigado, já sabia disso. É por isso que tenho falado pouco com Alvin sobre seus antecessores. No estado em que ele se encontra hoje, isso não o ajudaria muito. Posso contar com sua cooperação? — Por enquanto pode. Quero estudá-lo eu próprio. Os mistérios sempre me intrigaram, e eles são raríssimos em Diaspar. Além disso, acho que o Destino pode estar arquitetando uma Bufonaria perto da qual todos os meus esforços parecerão modestíssimos. Nesse caso, quero ficar certo de que estarei presente em seu clímax. — Você gosta demais de falar por enigmas — queixou-se Jeserac. — O que está prevendo, exatamente? — Duvido que meus palpites possam ser melhores do que os seus. Mas acho que nem eu, nem você, nem ninguém em Diaspar será capaz de deter Alvin quando decidir o que deseja fazer. Temos alguns séculos bem interessantes à nossa frente. Jeserac permaneceu imóvel por muito tempo, esquecido de suas matemáticas, depois da imagem de Khedron ter desaparecido de sua vista. Uma sensação de mau agouro, que nunca havia sentido anteriormente, pairava sobre ele. Por um rápido momento imaginou se não seria conveniente solicitar uma audiência ao Conselho… mas não estaria fazendo um espalhafato ridículo por causa de nada? Talvez tudo aquilo não passasse de um complicado e obscuro gracejo de Khedron, ainda que ele não conseguisse imaginar por que teria sido escolhido como alvo. Pesou o problema cuidadosamente, examinando-o por todos os ângulos. E depois de pouco mais de uma hora, tomou uma decisão característica. Esperaria para ver. Alvin não perdeu tempo para aprender tudo quanto pudesse acerca de Khedron. Como de costume, Jeserac foi sua principal fonte de informações. O velho tutor fez um relato pormenorizado de seu encontro com o Bufão, acrescentando o pouco que sabia a respeito do modo de vida do personagem. Por incrível que pudesse parecer, a verdade era que Khedron era um recluso: ninguém sabia onde morava e ignorava-se tudo quanto a seu estilo de vida. A última brincadeira que imaginara fora um tanto infantil, envolvendo a imobilização geral das vias móveis. Isso acontecera havia cinqüenta anos. Um século antes pusera em liberdade um dragão particularmente revoltante, que vagueara pela cidade devorando os exemplares existentes do escultor mais popular da época. O próprio artista, com toda razão alarmado, quando a singular dieta da fera se tornara óbvia, escondera-se e só aparecera depois que o monstro sumira tão misteriosamente como surgira. Os relatos deixavam claro uma coisa: Khedron devia ter profundo conhecimento das máquinas e dos poderes que governavam a cidade, forçando-os a obedecerem a seus desejos de uma maneira de que ninguém era capaz. Presumivelmente, havia um controle supremo que impedisse que um Bufão superambicioso causasse prejuízo à complexa estrutura de Diaspar. Alvin tomou nota dessas informações, mas não esboçou nenhuma iniciativa para entrar em contato com Khedron. Embora tivesse muitas perguntas para fazer ao Bufão, sua obstinada tendência à independência — talvez a mais verdadeiramente única de todas suas qualidades — levava-o a descobrir tudo que pudesse mediante seus próprios esforços. Havia-se empenhado num projeto que sem dúvida exigiria anos de atenção, mas enquanto se sentisse avançar em direção à meta, estaria feliz. Como um viajante em terra estranha, começou a exploração sistemática de Diaspar. Passava suas semanas e seus dias vasculhando as torres solitárias na periferia da cidade, na esperança de descobrir em algum lugar um caminho para o mundo exterior. Durante essa busca encontrou uma dúzia de grandes saídas de ar, bastante elevadas, que davam para o deserto, mas todas barradas. E mesmo que as barras não existissem, a simples queda de mil e quinhentos metros era obstáculo suficiente. Não descobriu outras saídas, embora explorasse mil corredores e dez mil câmaras vazias. Todos esses edifícios se encontravam naquela condição perfeita e impecável que os habitantes de Diaspar consideravam como parte da ordem natural das coisas. Às vezes Alvin encontrava um robô errante, obviamente num giro de inspeção, e não perdia oportunidade de interrogá-lo. Mas suas tentativas eram vãs, porque as máquinas que encontrava não tinham sido preparadas para responder à fala ou aos pensamentos humanos. Embora conscientes da presença de Alvin, pois abriam caminho polidamente para deixá-lo passar, recusavam-se à travar conversa. Havia ocasiões em que Alvin não via outro ser humano durante dias. Quando sentia fome, entrava num aposento de moradia e ordenava uma refeição. Máquinas miraculosas, a cuja existência ele raramente havia dedicado um pensamento, acordavam para a vida após eras sem fim de sono. Os padrões que tinham estocados em suas memórias estremeciam à beira da realidade, organizando e dirigindo a matéria que controlavam. E assim, uma refeição preparada por um mestre-cuca cem milhões de anos antes ganhava novamente existência para deliciar o paladar ou apenas para satisfazer o apetite. A solidão desse mundo deserto — a casca vazia que cercava o coração vivo da cidade — não deprimia Alvin. Estava habituado à solidão, mesmo quando na companhia de pessoas que considerava amigas. Essa ardente exploração, que absorvia toda sua energia e sua atenção, fez com que ele se esquecesse por algum tempo do mistério de sua herança e a anomalia que o apartava de seus camaradas. Explorara menos de um milésimo de periferia da cidade quando chegou à conclusão de que estava perdendo tempo. Essa decisão não foi fruto de impaciência, mas de profundo bom senso. Se necessário, Alvin estaria disposto a voltar atrás e terminar a tarefa, mesmo que nela tivesse de empregar o resto da vida. No entanto, já vira o suficiente para constatar que, se existia um caminho para fora de Diaspar, não seria encontrado dessa forma. Poderia gastar séculos em buscas infrutíferas, a menos que pedisse a ajuda de homens mais sábios. Jeserac lhe dissera taxativamente que não conhecia qualquer caminho de saída de Diaspar, na verdade, duvidava que existisse. As máquinas de informação, quando interrogadas por Alvin, pesquisavam em vão suas memórias quase infinitas. Podiam contar-lhe detalhadamente a história da cidade desde o começo das eras remotas até a barreira além da qual as Eras do Alvorecer jaziam para sempre ocultas. Mas não eram capazes de responder à pergunta simples de Alvin — ou então um poder superior as havia impedido de fazê-lo. Alvin teria de ver Khedron outra vez. Capítulo VII — Você demorou — disse Khedron —, mas eu sabia que viria, mais cedo ou mais tarde. Essa segurança aborreceu Alvin, não lhe era agradável pensar que sua conduta pudesse ser prevista com tanto acerto. Imaginou se o Bufão teria acompanhado suas buscas infrutíferas e se saberia exatamente o que ele andara fazendo. — Estou tentando achar uma saída para fora da cidade — disse Alvin abruptamente. — Deve haver uma saída, e acho que você poderia ajudar-me a encontrá-la. Khedron ficou em silêncio por um momento. Ainda havia tempo, se assim o desejasse, de virar as costas ao caminho que a partir dali se estendia diante dele e que levava a um futuro além de todos seus poderes de profecia. Nenhuma outra pessoa teria hesitado, qualquer outro homem da cidade, mesmo dispondo de poder para tanto, jamais teria ousado perturbar os fantasmas de uma era morta há milhões de séculos. Talvez não houvesse perigo, talvez nada conseguisse alterar a perpétua imutabilidade de Diaspar. Mas se existisse o risco de algo estranho e novo invadir aquele mundo, ali estava a última oportunidade para repeli-lo. Khedron sentia-se satisfeito com a ordem das coisas. Na verdade, podia agitar essa ordem de vez em quando… mas só um pouco. Era um crítico, não um revolucionário. No rio do tempo, que fluía placidamente, ele desejava apenas provocar algumas marolas, mas evitava desviar-lhe o curso. O desejo de aventura — com exceção das aventuras do espírito — fora eliminado dele, cuidadosa e completamente, como de todos os demais cidadãos de Diaspar. No entanto, ainda possuía, conquanto já quase extinta, aquela centelha de curiosidade que havia constituído o maior bem do Homem. Ele ainda estava disposto a correr um ou outro risco. Olhando para Alvin, tentou relembrar sua própria juventude, seus sonhos de meio milênio. Qualquer momento de seu passado que ele desejasse recordar ainda aparecia claro e nítido. Como contas num colar, sua vida atual e todas as anteriores estendiam-se rumo ao passado, ele podia separar e reexaminar qualquer uma que desejasse. Na maioria, esses antigos Khedrons eram-lhe agora estranhos, os modelos básicos podiam ser os mesmos, mas o peso da experiência separava-o deles para sempre. Se lhe aprouvesse, poderia varrer da mente todas as suas encarnações anteriores, quando retornasse à Casa da Criação para dormir até o momento em que a cidade o convocasse de novo — mas isso seria uma espécie de morte, e ele ainda não se sentia disposto a tanto. Ainda tinha desejo de prosseguir e recolher tudo quanto a vida tivesse a oferecer, como um náutico encerrado em sua concha, a adicionar pacientemente novas células à sua espiral em lenta expansão. Na juventude, não tinha sido diferente dos companheiros. Somente ao atingir a idade em que as lembranças latentes da vida pregressa despertavam, começou a desempenhar o papel a que fora sido destinado havia tanto tempo. Vez por outra ressentia-se com o fato de que a inteligência que concebera Diaspar com uma habilidade tão grande pudesse, mesmo agora, após tantas eras, fazer com que ele se movesse como um títere. Agora, talvez, surgia a oportunidade de obter a vingança tão longamente adiada. Acabava de aparecer um novo ator, capaz de baixar a cortina pela última vez, encerrando uma peça que já se fazia longa demais. Compaixão por uma pessoa cuja solidão devia ser ainda maior do que a dele, o tédio causado por eras de repetição, e um travesso senso de humor — esses foram os fatores discordantes que incitaram Khedron a agir. — Talvez eu possa ajudá-lo, talvez não. Alvin, não quero despertar falsas esperanças. Encontre-me dentro de meia hora na interseção do Raio 3 e do Anel 2. Se não puder fazer grande coisa, prometo-lhe pelo menos uma viagem interessante. Alvin chegou ao ponto de encontro dez minutos adiantado, muito embora ele ficasse do outro lado da cidade. Esperou impacientemente, enquanto as vias móveis deslizavam eternamente por ele, conduzindo os plácidos e contentes habitantes da cidade para seus negócios sem importância. Por fim, avistou a figura alta de Khedron aparecer a distância e daí a alguns instantes estava pela primeira vez na presença física do Bufão. Não se tratava de uma imagem projetada, ao se tocarem as palmas das mãos, no cumprimento antigo, percebeu que Khedron estava ali em carne e osso. O Bufão sentou-se numa das balaustradas de mármore e olhou para Alvin com curiosidade. — Estou imaginando — ele disse — se você sabe o que está pedindo, e o que faria se obtivesse o que quer. Você imagina realmente que poderia deixar a cidade, mesmo que encontrasse uma saída? — Tenho certeza de que sim — respondeu Alvin corajosamente, embora Khedron pudesse perceber a incerteza em sua voz. — Permita-me então que lhe diga uma coisa que você talvez ignore. Está vendo aquelas torres? — Khedron apontou os picos gêmeos da Central de Força e do Palácio do Conselho, dispostos frontalmente um ao outro, separados por um canyon de mil e quinhentos metros de altura. — Suponhamos que eu estendesse uma prancha perfeitamente firme entre as duas torres, uma prancha com apenas quinze centímetros de largura. Você seria capaz de atravessá-la? Alvin hesitou. — Não sei — respondeu. — Não gostaria de tentar. — Tenho absoluta certeza de que não seria capaz de fazer isso. Teria vertigens e cairia antes de dar doze passos. Mas se a mesma prancha fosse colocada no chão, você poderia caminhar sobre ela sem a menor dificuldade. — E o que é que isso prova? — Uma coisa simples, a que estou tentando chegar. Nas duas experiências que descrevi, a prancha seria exatamente a mesma. Um desses robôs montados sobre rodas, que às vezes encontramos por aí, poderia rolar facilmente sobre a prancha, quer no chão, quer no alto das torres. Nós não podemos fazer isso, porque temos medo da altura. Pode ser uma coisa irracional, mas é forte o suficiente para a ignorarmos. Está dentro de nós. Nascemos com ela. Do mesmo modo, temos medo do espaço aberto. Mostre a qualquer homem de Diaspar um caminho para fora da cidade, um caminho que poderia ser exatamente igual a esse aí, diante de nós, e ele não conseguiria ir muito longe. Ele teria de voltar, da mesma forma que você voltaria se começasse a caminhar sobre a prancha no alto daquelas torres. — Mas por quê? — perguntou Alvin. — Deve ter havido uma época… — Eu sei, eu sei — disse Khedron. — Os homens no passado andaram por todo o mundo, chegaram até às estrelas. Alguma coisa os transformou, inoculou neles esse medo com que nascem agora. Apenas você imagina que não o possui. Bem, veremos. Vou levá-lo ao Palácio do Conselho. O Palácio era um dos maiores edifícios da cidade, e estava quase inteiramente entregue às máquinas, que eram as verdadeiras administradoras de Diaspar. Perto do alto, ficava a sala onde o Conselho se reunia nas raras ocasiões em que havia algum assunto a debater. O largo pórtico os tragou e Khedron penetrou na obscuridade dourada. Alvin nunca entrara no Palácio do Conselho, não porque fosse proibido — havia poucas proibições em Diaspar —, mas porque, tal como os demais, sentia em relação àquele lugar um temor quase religioso. Naquele mundo sem deuses, o Palácio do Conselho era a coisa que mais se parecia com um templo. Sem hesitações, Khedron conduziu Alvin por corredores e rampas que obviamente haviam sido feitos para máquinas montadas sobre rodas, e não para seres humanos. Algumas dessas rampas desciam em ziguezague, em ângulos tão agudos que seria impossível a uma pessoa ficar em pé, se a gravidade não tivesse sido invertida a fim de compensar a inclinação. Chegaram finalmente a uma porta que deslizou silenciosamente, abrindo-se assim que se aproximaram, e que depois se fechou por trás deles. Adiante, havia outra porta, que não se abriu. Khedron não fez nenhum gesto para abri-la, limitando-se a parar diante dela. Após um momento, uma voz tranqüila disse: — Por favor, queiram declarar seus nomes. — Eu sou Khedron, o Bufão. Meu companheiro é Alvin. — E o que desejam? — Pura curiosidade. Para surpresa de Alvin, a porta abriu-se imediatamente. A experiência lhe ensinara que respostas jocosas a máquinas sempre levavam a confusão e que se tinha de voltar ao começo. A máquina que interrogou Khedron devia ser muito sofisticada — uma das mais altas na hierarquia do Computador Central. Não encontraram novas barreiras, mas Alvin suspeitou que haviam passado por muitos testes de que ele não tinha nenhum conhecimento. Um corredor curto levou-os subitamente a uma grande sala circular com o piso rebaixado, e nesse piso havia uma coisa tão surpreendente que por um momento Alvin foi tomado de espanto. Ele estava olhando para toda a cidade de Diaspar, espalhada diante dele com seus edifícios mais altos quase tocando seus ombros. Levou tanto tempo identificando lugares familiares e observando panoramas inesperados que só muito depois prestou atenção ao resto do aposento. As paredes estavam recobertas com um desenho microscopicamente detalhado de quadrados brancos e negros. O desenho propriamente dito era completamente irregular, e quando movia os olhos rapidamente Alvin tinha a impressão de que tremeluzia também rapidamente, embora nunca mudasse. Em torno da sala, a intervalos freqüentes, havia máquinas com teclados, cada uma delas com vídeo e uma poltrona para o operador. Khedron deixou que Alvin olhasse tudo, pelo tempo que desejasse. Depois disse, apontando para a cidade em miniatura: — Sabe o que é isso? Alvin esteve tentado a responder «uma maquete, suponho», mas a resposta era tão óbvia que ele teve a certeza de estar errada. Por isso, sacudiu a cabeça e esperou as explicações de Khedron. — Lembra-se de que lhe expliquei como era feita a manutenção da cidade, a maneira como os Bancos de Memória estocam os modelos congelados? Esses Bancos estão aí, à nossa volta, com seu imensurável estoque de informações, definindo completamente a cidade como ela é hoje. Cada um dos átomos de Diaspar está de certa forma controlado por forças que já esquecemos, pelas matrizes sepultadas nessas paredes. Khedron apontou a réplica em miniatura, perfeita e infinitamente pormenorizada de Diaspar. — Isso não é uma maquete, não existe na realidade. Trata-se simplesmente de uma imagem projetada do modelo estocado nos Bancos de Memória e que, portanto, é absolutamente idêntico à cidade. Essas máquinas nos permitem ampliar qualquer trecho desejado e examiná-lo em tamanho natural ou maior. São usadas quando se torna necessário fazer alguma alteração no projeto, ainda que já se tenha passado muito tempo desde que isso foi feito pela última vez. Se você quer saber como é Diaspar, este é o lugar adequado. Poderá aprender mais aqui, em poucos dias, do que passando a vida inteira em explorações reais. — Isso é maravilhoso — disse Alvin. — Quantas pessoas sabem de sua existência? — Ah, muitas, mas raramente elas se interessam. O Conselho vem aqui de vez em quando. Nenhuma alteração na cidade pode ser feita sem que seus membros estejam todos reunidos aqui. E ainda assim, o Computador Central terá de aprovar a modificação proposta. Duvido que esta sala seja visitada mais de duas ou três vezes por ano. Alvin imaginou como Khedron teria acesso a ela, e depois lembrou-se de que muitos de seus chistes mais complicados exigiam sem dúvida um conhecimento íntimo de todos os mecanismos da cidade, que só teria sido possível com estudo profundo. Um dos privilégios do Bufão devia ser poder ir onde quisesse e aprender qualquer coisa. Portanto, Alvin não poderia dispor de melhor guia para os segredos de Diaspar. — O que você está procurando pode não existir — disse Khedron. — Mas se existir, você o encontrará aqui. Vou mostrar-lhe como se usam os monitores. Alvin passou a hora seguinte sentado diante de um dos vídeos, aprendendo a comandar os controles. Podia selecionar, a seu talante, qualquer ponto da cidade e examiná-lo sob qualquer grau de ampliação. Ruas, torres, paredes e vias móveis passavam pela tela, enquanto ele mudava as coordenadas. Alvin tinha a impressão de ser um espírito onipresente, incorpóreo, a mover-se por Diaspar sem esforço, livre de toda peia física. No entanto, não era Diaspar, na realidade, que ele estava examinando. Ele estava movendo-se pelas células de memória, olhando a imagem onírica da cidade — o sonho que tivera o poder de manter a verdadeira Diaspar protegida da ação do tempo durante um bilhão de anos. Ele só podia ver a parte permanente da cidade, as pessoas que caminhavam pelas ruas não faziam parte da imagem congelada. Para seus objetivos, isso não fazia qualquer diferença. Alvin estava interessado apenas na criação de pedra e metal na qual se encontrava aprisionado, e não naqueles que compartilhavam — ainda que voluntariamente — desse confinamento. Procurou a Torre de Loranne e encontrou-a dentro em pouco, movendo-se rapidamente pelos corredores e passagens que já explorara na realidade. Quando a imagem da treliça de pedra expandiu-se diante de seus olhos, ele quase sentiu o vento frio que havia soprado incessantemente através dela, durante talvez metade da história da humanidade, e que estava soprando naquele exato momento. Alvin aproximou-se da grade, olhou para fora — e não viu nada. Por um momento o choque foi tão grande que quase duvidou de sua própria memória. Então sua visão do deserto não teria passado de sonho? Então ele se lembrou da verdade. O deserto não fazia parte de Diaspar, não existia, portanto, nenhuma imagem dele no mundo fantasmagórico que estava explorando. Para além da treliça havia, na realidade, um mundo que a tela do monitor jamais poderia mostrar. No entanto, ela lhe poderia mostrar uma coisa que nenhum homem vivo jamais vira. Alvin passou seu ponto de observação para além da treliça, para o vazio que jazia fora da cidade. Girou o controle que comandava a direção de sua visão, de forma a olhar inversamente o caminho que ele havia percorrido. E atrás dele estava Diaspar — vista do lado de fora. Para os computadores, os circuitos de memória e a multidão de mecanismos que criavam a imagem, tratava-se simplesmente de um problema de perspectiva. «Conheciam» a forma da cidade, por isso, podiam mostrá-la como ela estava aparecendo agora, isto é, vista do exterior. Muito embora fosse capaz de compreender a maneira pela qual se produzia, o efeito sobre Alvin foi de assombro. Em espírito, senão na realidade, ele havia saído de Diaspar, Parecia estar pairando no espaço, a alguns metros da muralha da Torre de Loranne. Por um momento, examinou a superfície lisa e cinzenta que tinha diante de seus olhos, depois tocou o botão de controle e fez seu ponto de vista cair para o chão. Agora, conhecendo as possibilidades daquele aparelho maravilhoso, seu plano de ação tornou-se claro. Não havia necessidade de passar meses e anos explorando Diaspar de dentro para fora, sala após sala, corredor após corredor. Daquele ângulo novo, muito melhor, poderia percorrer o exterior da cidade e ver imediatamente qualquer abertura que pudesse conduzir para o deserto e o mundo além. A sensação de vitória, de conquista, encheu-o de felicidade e tornou-o ansioso por compartilhar sua alegria com alguém. Virou-se para Khedron, desejando agradecer ao Bufão por haver possibilitado isso. Mas Khedron fora embora, e após um momento de reflexão Alvin entendeu por quê. Alvin era talvez o único homem em Diaspar capaz de não ser afetado pelas imagens que estavam desfilando na tela. Khedron podia ajudá-lo na pesquisa, mas até mesmo o Bufão era sensível ao estranho horror do universo que já há tanto tempo imobilizava a humanidade dentro daquele pequeno mundo. Por isso deixara Alvin sozinho. A sensação de solidão, que por algum tempo abandonara a alma de Alvin, baixou uma vez mais sobre ele. Mas não havia tempo para melancolia, havia muito o que fazer. Alvin debruçou-se sobre a tela, pôs a imagem da cidade a correr lentamente por ela e começou sua busca. Diaspar pouco soube de Alvin nas semanas seguintes. Embora raras pessoas percebessem sua ausência. Jeserec, ao descobrir que seu ex-pupilo estava passando todo o tempo no Palácio do Conselho, ao invés de vaguear pelas fronteiras da cidade, sentiu-se ligeiramente aliviado, supondo que Alvin não causaria nenhum problema. Eriston e Etania chamaram o quarto dele uma ou duas vezes e, verificando que ele se encontrava ausente, não se preocuparam com isso. Alystra foi um pouco mais persistente. Para sua própria paz de espírito, era uma pena que ela se houvesse apaixonado por Alvin, quando havia tantas escolhas mais apropriadas. Alystra nunca tivera dificuldade para encontrar companheiros, mas em comparação com Alvin os homens que ela conhecia eram pessoas apagadas, fabricadas segundo o mesmo modelo sem personalidade. Ela não o perderia sem luta, o desinteresse e o alheamento dele representavam um desafio a que ela não podia resistir. No entanto, talvez seus motivos não fossem inteiramente egoístas, seriam antes maternais do que sexuais. Embora tivesse sido esquecido o nascimento, ainda perduravam os instintos femininos de proteção e compaixão. Por mais que Alvin se mostrasse obstinado, auto-suficiente e determinado a viver sua própria vida, Alystra era capaz de pressentir sua solidão interior. Ao descobrir que Alvin desaparecera, interrogou Jeserac que, após hesitar um momento, lhe contou o que sabia. Se Alvin não desejava companhia, a resposta estava em suas próprias mãos. O tutor nem aprovava nem desaprovava aquela ligação. De maneira geral, gostava de Alystra e esperava que a influência dela ajudasse Alvin a se ajustar à vida em Diaspar. O fato de Alvin estar passando todo o tempo no Palácio do Conselho só podia significar que ele estava empenhado em algum projeto de pesquisa — o que servia, pelo menos, para afastar suspeitas de Alystra com relação a possíveis rivais. Embora seu ciúme não fosse com isso despertado, o mesmo não aconteceu à sua curiosidade. Vez por outra censurava-se por haver abandonando Alvin na Torre de Loranne. Entretanto, sabia que, se as circunstâncias se repetissem, faria exatamente a mesma coisa outra vez. Não havia meio de compreender o que se passava na mente de Alvin, disse a si mesma, a não ser descobrindo o que ele estava tentando fazer. Entrou resolutamente no pavilhão principal, impressionada mas não intimidada pelo silêncio que caiu mal terminara de cruzar o pórtico. As máquinas de informação estavam alinhadas, lado a lado, junto à parede mais distante, e ela escolheu uma delas ao acaso. Assim que o sinal de reconhecimento acendeu, ela disse: — Estou procurando Alvin. Ele está em algum lugar deste edifício. Onde posso encontrá-lo? Nem mesmo depois de toda uma vida, as pessoas se acostumavam inteiramente à completa ausência de intervalo quando uma máquina de informação respondia a uma pergunta comum. Havia pessoas que sabiam — ou afirmavam saber — como isso era feito e falavam professoralmente de «tempo de acesso» e «espaço de armazenamento», mas isso não tornava o resultado final menos maravilhoso. Qualquer pergunta de natureza puramente factual, dentro do enorme volume de informações disponíveis sobre a cidade, poderia ser respondida imediatamente. Apenas se cálculos complexos fossem necessários é que a resposta sofreria algum retardo apreciável. — Ele está com os Monitores — veio a resposta. Isso não ajudava muito, pois a palavra não significava nada para Alystra. Nenhuma máquina fornecia voluntariamente informações suplementares. Formular perguntas corretas constituía uma arte só dominada depois de longo aprendizado. — Como posso chegar onde ele está? — perguntou Alystra. Descobriria o que eram os Monitores quando chegasse lá. — Não posso dizer-lhe, a menos que você tenha permissão do Conselho. Foi uma resposta inesperada, até mesmo desconcertante. Eram pouquíssimos os lugares em Diaspar que não podiam ser livremente visitados. Alystra estava certa de que Alvin não obtivera permissão do Conselho. Isso só podia significar que uma autoridade mais alta ajudava-o. O Conselho governava Diaspar, mas o próprio Conselho podia ser sobrepujado por um poder superior — o intelecto infinito do Computador Central. Era difícil pensar no Computador como entidade viva, localizada num lugar específico, embora na verdade ele fosse a soma total de todas as máquinas de Diaspar. Mesmo não sendo vivo, em sentido biológico, sem dúvida possuía pelo menos a consciência e a racionalidade de um ser humano. Devia saber o que Alvin estava fazendo — e, portanto, aprovava, pois de outra forma já o teria detido ou remetido ao Conselho, como a máquina de informação fizera com Alystra. De nada lhe valeria permanecer ali. Alystra sabia que qualquer tentativa para encontrar Alvin — mesmo que soubesse exatamente onde ele se encontrava naquele edifício colossal — estava fadada ao fracasso. As portas se recusariam a abrir, as vias móveis se inverteriam quando ela pisasse nelas, levando-a para trás, e não para a frente, os elevadores permaneceriam misteriosamente inertes. Se insistisse, seria conduzida para a rua por um polido mas firme robô, ou então vaguearia às tontas pelo Palácio do Conselho, até cansar-se e sair dali por sua livre e espontânea vontade. Estava de mau humor ao sair para a rua. Um tanto intrigada, sentia pela primeira vez que havia um mistério perto do qual seus desejos e interesses pessoais pareciam banais. Isso não significava, porém, que se lhe tornassem menos importantes. Alystra não sabia absolutamente o que fazer em seguida, mas de uma coisa estava certa: Alvin não era a única pessoa em Diaspar capaz de teimosia e obstinação. Capítulo VIII A imagem no vídeo desvaneceu-se quando Alvin levantou as mãos do painel e desimpediu os circuitos. Por um momento permaneceu sentado, imóvel, olhando para o retângulo negro que ocupara sua mente consciente durante semanas a fio. Ele circunavegara seu mundo, pela tela passara cada centímetro quadrado das paredes exteriores de Diaspar. Conhecia a cidade melhor do que qualquer outra pessoa, com a possível exceção de Khedron. Sabia agora que não existia saída através dos muros. O sentimento que o tomava todo não era de simples desapontamento. Na verdade, não esperara encontrar o que procurava logo na primeira tentativa. O importante era que eliminara uma possibilidade. Agora, deveria atacar as outras. Levantou-se e caminhou até a imagem da cidade que quase enchia a sala. Era difícil não pensar nela como um modelo real, embora soubesse que não passava de uma projeção óptica da matriz das células de memória que estivera a explorar. Quando ele modificava os controles do Monitor e fazia o ponto de vista mover-se por Diaspar, um ponto de luz deslizava pela superfície da réplica, de modo que ele pudesse ver exatamente para onde estava indo. Esse ponto de luz fora excelente guia nos primeiros dias, mas ele passara a dominar de tal modo o manejo das coordenadas que agora podia dispensar esse auxílio. A cidade estendia-se à sua frente, olhava-a como um deus. No entanto, mal a via, enquanto pensava, um a um, nos passos que teria de dar agora. Se tudo mais falhasse, havia uma solução para o problema. Diaspar podia ser mantida em perpétua imobilidade por seus circuitos de eternidade, congelada para todo sempre de acordo com os modelos nas células de memória. Mas até mesmo esse modelo podia ser alterado e, nesse caso, a cidade mudaria com ele. Seria possível reprojetar uma seção do muro exterior, dando-lhe uma passagem, colocar esse modelo nos Monitores e deixar a cidade dar a si mesma uma nova concepção. Alvin suspeitava que as grandes áreas no painel de controle do Monitor, cuja finalidade Khedron não lhe explicara, estivessem relacionadas com essas alterações. Seria inútil experimentá-los. Os controles capazes de modificar a própria estrutura da cidade estavam firmemente travados, e só poderiam ser operados com autorização do Conselho e aprovação do Computador Central. Havia pouquíssima possibilidade de o Conselho conceder-lhe o que pedia, mesmo que estivesse disposto a solicitação paciente, durante décadas, ou mesmo séculos. Era uma perspectiva que não o atraía absolutamente. Alvin dirigiu seu raciocínio em direção ao céu. Às vezes havia imaginado, em fantasias de que se envergonhava um pouco de recordar, ter reconquistado a liberdade do ar, a que o homem renunciara havia tanto tempo. No passado, ele sabia, os céus da Terra tinham estado apinhados de formas estranhas. Do espaço exterior chegavam enormes naves, trazendo tesouros desconhecidos, e ancoravam no lendário Porto de Diaspar. Mas o Porto se tinha localizado além dos limites da cidade, há eras havia sido soterrado pela areia. Alvin sonhava que em algum lugar, nos labirintos de Diaspar, ainda haveria uma máquina voadora oculta, mas não acreditava realmente nisso. Mesmo nos dias em que máquinas voadoras pequenas e pessoais tinham sido de uso comum, era muito improvável que fosse permitido sua utilização, mesmo dentro dos limites da cidade. Durante um momento, perdeu-se no velho sonho. Imaginou-se senhor dos céus, viu o mundo a seus pés, convidando-o a viajar onde lhe aprouvesse. O que via não era o mundo de seu próprio tempo, e sim o mundo perdido do Alvorecer — um panorama rico e vívido de montanhas, lagos e florestas. Sentiu uma inveja amarga de seus desconhecidos ancestrais, que haviam voado com tamanha liberdade sobre a Terra e deixado sua beleza fanar-se. Esse devaneio entorpecedor era inútil. Alvin libertou-se dele e retornou ao presente e ao problema que tinha diante de si. Se o céu era inatingível e se o caminho terrestre se achava bloqueado, o que lhe restava fazer? Mais uma vez chegara ao ponto em que necessitava de ajuda, em que não podia progredir mediante seus próprios esforços. Não lhe agradava admitir isso, mas era suficientemente honesto para não negá-lo. Inevitavelmente, seus pensamentos voltaram a Khedron. Alvin jamais seria capaz de concluir se gostava ou não do Bufão. Estava satisfeito por se terem encontrado, e grato a Khedron pela ajuda e simpatia implícita que lhe dera em sua procura. Não existia em Diaspar outra pessoa com quem ele tivesse tantas coisas em comum, mas havia alguma coisa na personalidade do outro que lhe desagradava. Talvez fosse o ar de irônico desinteresse, que às vezes dava a Alvin a impressão de que o Bufão estava se divertindo, secretamente, com todos os seus esforços, mesmo se parecia fazer todo o possível para ajudá-lo. Por isso, e também por causa de sua teimosia e independência naturais, Alvin hesitava em aproximar-se do Bufão, exceto como último recurso. Combinaram encontrar-se num pequeno pátio circular, não distante do Palácio do Conselho. Havia na cidade muitos lugares isolados como esse, às vezes a poucos metros de uma rua movimentada, mas inteiramente apartados. Em geral só se tinha acesso a eles a pé, após uma caminhada cheia de rodeios. Outras vezes, ficavam no centro de labirintos habilmente traçados, o que realçava seu isolamento. Era característico de Khedron escolher um local desses para um encontro. O pátio não tinha mais de cinqüenta passos de um lado a outro e estava localizado no interior de algum grande edifício. Entretanto, não aparentava ter limites físicos definidos, sendo rodeado por um material verde-azulado e translúcido, que brilhava com uma espécie de leve luz interna. E embora não se observassem limites visíveis, o pátio tinha sido disposto de forma a não haver perigo de uma pessoa sentir-se perdida no espaço infinito. Paredes baixas, que mal davam na cintura, e interrompidas a intervalos para que se pudesse passar por elas, deixavam uma impressão de seguro confinamento, sem o qual nenhum habitante de Diaspar poderia sentir-se inteiramente feliz. Khedron estava examinando uma dessas paredes quando Alvin chegou. Era uma parede coberta por um intrincado mosaico de azulejos coloridos, tão fantasticamente emaranhados que Alvin nem sequer tentou compreender seu desenho. — Veja esse mosaico, Alvin — disse o Bufão. — Você nota alguma coisa de estranho nele? — Não — confessou Alvin, após um breve exame. — Não o entendo… mas não há nada de estranho nele. Khedron correu os dedos pelo mosaico. — Você não é muito observador — disse. — Veja essas bordas aqui, observe como Ficaram arredondadas e moles. Isso é uma coisa que só raramente se vê em Diaspar, Alvin. O desgaste, a desintegração da matéria sob a ação do tempo. Lembro-me de quando esse padrão era novo, há apenas oitenta mil anos, em minha última vida. Se eu voltar a este pátio daqui a doze vidas, os azulejos estarão completamente gastos. — Não vejo nada de surpreendente nisso — comentou Alvin. — Há na cidade outras obras de arte que não são suficientemente boas para serem preservadas nos circuitos de memória, nem bastante ruins para serem destruídas totalmente. Um dia, acho, outro artista virá aqui e fará obra melhor. E talvez essa nova obra seja destinada a durar. — Conheci o homem que desenhou essa parede — disse Khedron, explorando ainda as fendas do mosaico com os dedos. — É estranho que eu possa me recordar disso, já que não consigo me lembrar quem era o homem. Talvez eu não gostasse dele e por isso o apaguei da mente. — Deu uma risada. — Talvez eu próprio a tenha desenhado, numa de minhas fases artísticas, e tenha ficado de tal modo aborrecido, quando a cidade se recusou a torná-la eterna, que decidi esquecer completamente o assunto. Ali… eu sabia que essa peça estava se desfazendo!… Khedron conseguiu soltar um floco do mosaico dourado, mostrando-se quase feliz com essa pequena sabotagem. Atirou o fragmento ao chão, dizendo: — Agora os robôs encarregados de manutenção terão alguma coisa que fazer! Aquilo encerrava uma lição, pensou Alvin. Aquele estranho instinto conhecido como intuição, que parecia traçar atalhos não acessíveis à mera lógica, disse-lhe isso. Olhou para o fragmento dourado no chão, tentando vinculá-lo de alguma forma ao problema que dominava seu espírito. Não foi difícil encontrar a resposta, assim que compreendeu que ela existia. — Entendo o que você quer dizer — disse ele a Khedron. — Há em Diaspar objetos que não estão preservados nos circuitos de memória, de modo que nunca poderei encontrá-los através dos Monitores do Palácio do Conselho. Se eu for lá e focalizar este pátio, não vou encontrar nenhum sinal da parede sobre a qual estamos sentados. — Creio que você encontraria a parede. Mas não haveria nenhum mosaico sobre ela. — Entendo — disse Alvin, agora impaciente demais para se preocupar com sutilezas. — Da mesma forma, podem haver partes da cidade que nunca foram preservadas nos circuitos de eternidade, mas que ainda não se desgastaram. Entretanto, ainda não compreendo em que isso me ajuda. Eu sei que as paredes externas existem… e que não há aberturas nelas. — Talvez não exista saída alguma — respondeu Khedron. — Não posso prometer-lhe nada. Mas creio que os Monitores ainda tenham muito o que nos dizer, se o Computador Central permitir. E ao que parece ele sente queda por você. Alvin ficou pensando a respeito dessa observação, a caminho do Palácio do Conselho. Até agora, julgara que só lhe fora permitido acesso aos Monitores exclusivamente devido à influência de Khedron. Não lhe ocorrera que poderia ser devido a alguma qualidade intrínseca dele próprio. Ser Único tinha suas desvantagens, era justo, então, que houvesse certas recompensas… A imagem imutável da cidade ainda dominava a câmara onde Alvin passara tantas horas. Ele a olhou com uma nova compreensão. Tudo o que via ali existia realmente — mas nem tudo que havia em Diaspar aparecia ali. Decerto, as discrepâncias deveriam ser de pequena monta — e, até onde ele podia ver, imperceptíveis. — Tentei fazer isso há muitos anos — disse Khedron, sentando-se diante do Monitor —, mas os controles estavam fechados para mim. Talvez me obedeçam agora. Primeiro, devagar, e depois com mais confiança, à medida que recuperava acesso a técnicas havia muito esquecidas, os dedos de Khedron moveram-se sobre os controles, descansando por um momento nos pontos nodais na placa sensível, enterrada no painel à sua frente. — Parece que está certo — disse, finalmente. — De qualquer forma, veremos logo. A tela ganhou vida, mas ao invés da imagem que Alvin tinha esperado, apareceu uma mensagem um tanto desconcertante: A REGRESSÃO TERÁ INÍCIO ASSIM QUE FOR RESTABELECIDO O CONTROLE DE VELOCIDADE — Cometi uma tolice — murmurou Khedron. — Fiz o resto todo certo, mas esqueci o mais importante. — Seus dedos moviam-se agora com segurança sobre o painel e assim que a mensagem apagou-se no vídeo, ele girou no assento, a fim de examinar a réplica da cidade. — Veja isso, Alvin — disse ele. — Creio que vamos aprender alguma coisa nova a respeito de Diaspar. Alvin esperou pacientemente, mas nada aconteceu. A imagem da cidade flutuou ali, diante de seus olhos, com todas as suas belezas e maravilhas familiares — muito embora ele não tomasse consciência delas agora. Estava para perguntar a Khedron o que devia procurar ver quando um movimento súbito chamou sua atenção e ele voltou rapidamente a cabeça a fim de acompanhá-lo. Não tinha sido nada mais que um clarão ou brilho fugaz, e já era tarde demais para ver o que é que o tinha provocado. Nada havia mudado, Diaspar estava como ele sempre a conhecera. Então, percebeu que Khedron observava-o com um sorriso sardônico, e voltou a olhar para a cidade. Dessa vez, a coisa aconteceu diante de seus olhos. Um dos edifícios à beira do Parque desvaneceu-se subitamente, sendo substituído por um outro, de forma inteiramente diferente. A transformação tinha sido tão rápida que se Alvin estivesse piscando o olho ele a teria perdido. Olhou, tomado de pasmo, a cidade sutilmente modificada, mas mesmo durante o primeiro choque de assombro sua mente estava procurando a resposta para aquilo. Lembrou-se das palavras que haviam aparecido na tela do Monitor —: A REGRESSÃO TERÁ INÍCIO… — e percebeu, imediatamente, o que estava acontecendo. — Essa é a imagem da cidade há milhares de anos — ele disse a Khedron. — Estamos voltando no tempo. — Essa é uma maneira pitoresca, mas pouco exata, de colocar a questão — disse o Bufão. — O que acontece na verdade é que o Monitor está se lembrando das primeiras versões da cidade. Quando se fizeram modificações, os circuitos de memória não foram simplesmente esvaziados. A informação que continham foi levada para unidades subsidiárias de armazenamento, de modo que pudessem ser recuperadas, sempre que necessário. Fiz com que o Monitor regressasse através dessas unidades, a uma velocidade de mil anos por segundo. Já estamos olhando para Diaspar de meio milhão de anos atrás. Teremos de ir muito além para vermos qualquer mudança importante… Vou aumentar a velocidade. Khedron virou-se novamente para o painel de controle, e mesmo enquanto o fazia, não apenas um edifício, mas todo um quarteirão desapareceu e foi substituído por um grande anfiteatro ovalado. — Ah, a Arena! — disse Khedron. — Lembro-me da controvérsia que houve quando decidimos dar-lhe fim. Raramente era utilizada, mas muita gente sentia amor por ela. O Monitor estava agora despertando suas lembranças a uma velocidade muito maior. A imagem de Diaspar retrocedia no vídeo a milhões de anos por minuto, e as mudanças estavam acontecendo com tanta rapidez que o olho humano não conseguia acompanhá-las. Alvin notou que as modificações na cidade pareciam ocorrer em ciclos, havia um longo período de imutabilidade, logo após uma febre de reconstrução, seguida por nova pausa. Era quase como se Diaspar fosse um organismo vivo que tivesse de recuperar suas energias vitais após cada explosão de crescimento. No decorrer de todas essas modificações, o projeto básico da cidade não havia mudado. Os edifícios surgiam e desapareciam, mas o traçado das ruas parecia eterno, e o Parque continuava sendo o coração verde de Diaspar. Alvin imaginou até onde o Monitor poderia recuar. Seria capaz de chegar até a fundação da cidade, e passar através do véu que separava a história conhecida dos mitos e das lendas do Alvorecer? Já haviam retrocedido quinhentos milhões de anos no passado. Fora dos muros de Diaspar, além do conhecimento dos Monitores, haveria uma Terra diferente. Talvez existissem oceanos e florestas, ou até mesmo outras cidades que o homem ainda não houvesse abandonado na longa fuga para sua morada final. Os minutos passavam rapidamente, representando cada um deles toda uma era no pequeno universo dos Monitores. Dentro em pouco, pensou Alvin, chegariam às mais remotas memórias estocadas e o regresso se completaria. Por mais fascinante que fosse a lição, ele não percebia como aquilo o ajudaria a sair da cidade como ela era atualmente. Numa implosão súbita e silenciosa, Diaspar contraiu-se a uma fração de seu antigo tamanho. O Parque desvaneceu-se, os muros sumiram, torres titânicas esvaíram-se num átimo. A cidade estava aberta ao mundo, pois as estradas radicais prolongavam-se, sem obstrução, até os limites da imagem no Monitor. Ali estava a Diaspar antes da grande mudança que sobreviera à humanidade. — Não podemos ir além — disse Khedron, apontando o vídeo. Nele haviam aparecido as palavras REGRESSÃO CONCLUÍDA. — Esta deve ser a mais antiga versão da cidade preservada nas células de memória. Antes disso, duvido que as unidades de eternidade fossem usadas e que os edifícios durassem eternamente. Por muito tempo, Alvin fitou o modelo da cidade antiga. Pensou no tráfego que havia rolado por aqueles caminhos, nos homens que teriam andado livremente por todos os cantos do mundo — e também de outros mundos. Esses homens eram seus antepassados, sentia-se mais próximo deles, por afinidade, do que das pessoas que agora compartilhavam de sua vida. Desejou poder vê-los e partilhar de seus pensamentos nas ruas daquela Diaspar de um bilhão de anos atrás. Mas esses pensamentos não teriam sido felizes, pois nessa época os homens deviam viver sob a sombra dos Invasores. Dentro de mais alguns séculos voltariam o rosto à glória que haviam conquistado e construiriam um muro contra o universo. Khedron dirigiu o monitor para trás e para frente umas doze vezes, pelo breve período histórico em que se dera a transformação. A mudança — de uma pequena cidade aberta para uma outra muito maior e fechada — tinha-se efetuado em pouco mais de mil anos. Nesse ínterim deviam ter sido projetadas e construídas as máquinas que ainda agora serviam a Diaspar com eficiência, e havia sido armazenado nos circuitos de memória o conhecimento que permitia àquelas máquinas desempenhar suas tarefas. Também para os circuitos de memória deviam ter tido as características essenciais de todos os homens que viviam agora, de modo que, quando o impulso adequado os chamasse de novo à vida, pudessem ser revestidos de matéria e emergissem renascidos na Casa da Criação. Em certo sentido, pensou Alvin, ele devia ter existido naquele mundo remoto. Era possível, naturalmente, que ele fosse inteiramente de homens que no passado haviam vivido e caminhado sobre a Terra. Muito pouco da antiga Diaspar havia permanecido quando fora criada a nova cidade, o Parque a havia obliterado quase completamente. Mesmo antes da transformação tinha havido uma pequena clareira, recoberta de relva, no centro de Diaspar, cercando a junção de todas as ruas radiais. Depois essa clareira havia se expandido enormemente, tragando ruas e edifícios. Havia surgido então o Túmulo de Yarlan Zey, substituindo uma ampla estrutura circular erguida anteriormente no ponto de encontro de todas as ruas. Alvin jamais acreditara nas lendas que cercavam a antigüidade do Túmulo, mas agora elas lhe pareciam autênticas. — Será que podemos explorar essa imagem como exploramos a imagem da Diaspar atual? — perguntou Alvin, tomado por uma idéia repentina. Os dedos de Khedron deslizaram sobre o painel do Monitor, e a tela respondeu à pergunta de Alvin. A cidade há tanto tempo desaparecida começou a ampliar-se diante de seus olhos, enquanto o ponto de vista movia-se através de ruas curiosamente estreitas. Essa memória da Diaspar que existira no passado era ainda tão nítida e clara quanto a imagem da cidade contemporânea. Durante um bilhão de anos, os circuitos de memória haviam-na conservado numa pseudo-existência espectral, à espera do instante em que alguém a invocasse. E não se tratava, pensou Alvin, de simples memória o que ele estava vendo agora. Era alguma coisa mais complexa — era a memória de uma memória… Não sabia o que podia aprender com isso, nem se o ajudaria em suas buscas. Não importava. Era fascinante observar aquele passado, ver um mundo que existira nos tempos em que os homens ainda viajavam entre as estrelas. Apontou um edifício baixo e circular no centro da cidade. — Vamos começar ali — ele disse a Khedron. — Parece um lugar tão comum como qualquer outro para começar. Talvez tenha sido pura sorte. Talvez alguma memória remota, talvez fosse lógica elementar. Não fazia diferença, uma vez que ele teria chegado àquele ponto mais cedo ou mais tarde — aquele lugar para onde convergiam todas as ruas radiais da cidade. Alvin levou dez minutos para descobrir que elas não se encontravam ali apenas por questões de simetria — dez minutos para descobrir que sua longa busca fora recompensada. Capítulo IX Alystra havia descoberto ser muito fácil seguir Alvin e Khedron sem que dessem por isso. Eles pareciam apressados — coisa por si só muito esquisita — e nunca olhavam para trás. Tinha sido divertido persegui-los ao longo das vias móveis, ocultando-se entre a multidão, mas sem perdê-los de vista. Daí a pouco o destino deles havia-se tornado óbvio, quando deixaram as ruas e entraram no Parque, só podiam estar se dirigindo para o Túmulo de Yarlan Zey. O Parque não tinha outros edifícios, e pessoas apressadas como Alvin e Khedron não estariam interessadas em desfrutar tão somente do cenário. Como não havia meio de ocultar-se nas últimas centenas de metros que a separavam do Túmulo, Alystra esperou até que Khedron e Alvin tivessem desaparecido na escuridão marmórea. Depois, assim que desapareceram de vista, subiu correndo a elevação gramada. Tinha certeza de que poderia esconder-se atrás de um dos grandes pilares e descobrir o que Alvin e Khedron estavam fazendo. Não importava que eles a detectassem depois disso. O Túmulo consistia em duas colunatas concêntricas, encerrando um pátio circular. Exceto num setor, as colunas encobriam completamente o interior e Alystra evitou entrar pelo lado aberto. Cautelosamente, transpôs a primeira colunata, viu que não havia ninguém ali e caminhou na ponta dos pés para a segunda. Através das aberturas, podia ver Yarlan Zey olhando através da entrada para o Parque que ele construíra, bem como para a cidade que ele contemplava havia tantas eras. E não havia mais ninguém nessa solidão marmórea. O Túmulo estava vazio. Naquele momento, Alvin e Khedron achavam-se a uma profundidade de trinta metros, numa sala pequena em forma de caixa, cujas paredes pareciam subir verticalmente e com firmeza. Essa era a única indicação de movimento, não havia sinal de qualquer vibração que mostrasse que estavam penetrando rapidamente na terra, descendo para uma meta que ainda agora nenhum deles entendia perfeitamente. Tudo fora absurdamente fácil, pois o caminho havia sido preparado para eles. (Por quem? — pensava Alvin. Pelo Computador Central? Ou pelo próprio Yarlan Zey, quando transformara a cidade?) A tela do Monitor lhes havia mostrado um longo poço vertical que mergulhava nas profundezas, mas haviam acompanhado seu curso apenas por um momento, antes da imagem se desvanecer. Isso significava, pensou Alvin, que estavam pedindo informações que o Monitor não possuía e que talvez nunca tivesse possuído. Mal acabou de formular esse pensamento, a tela ganhou vida outra vez. Nela apareceu uma breve mensagem, redigida na linguagem simplificada que as máquinas utilizavam para comunicar-se com o Homem desde que haviam conquistado paridade intelectual. FIQUE ONDE OLHA A ESTÁTUA — E LEMBRE-SE: DIASPAR NEM SEMPRE FOI ASSIM As últimas cinco palavras estavam impressas em tipo maior e o significado da mensagem tornou-se óbvio para Alvin imediatamente. Mensagens em código, formuladas mentalmente, tinham sido usadas imemorialmente para abrir portas ou acionar máquinas. Quanto a «Fique onde está a estátua», isso era simples demais. — Quantas pessoas já terão lido essa mensagem? — disse Alvin, pensativo. — Ao que eu saiba, quatorze — respondeu Khedron. — E pode ter havido outras. — Não fez maiores comentários que elucidassem essa observação um tanto enigmática, e Alvin tinha pressa demais em ir ao Parque para interrogá-lo mais detidamente. Não podiam ter certeza de que os mecanismos ainda responderiam ao impulso. Ao chegarem ao Túmulo, um instante havia sido suficiente para localizar, entre tantas que calçavam o piso, a única laje sobre a qual incidia fixamente o olhar de Yarlan Zey. A primeira vista, a estátua dava a impressão de estar olhando para a cidade. Mas se o observador se colocasse diretamente à sua frente, poderia ver que os olhos estavam baixos e que o sorriso misterioso se dirigia para um lugar logo à entrada do Túmulo. Uma vez descoberto o segredo, não havia dúvida com relação a ele. Alvin pisou na laje ao lado e verificou que Yarlan Zey já não olhava em sua direção. Voltou-se para Khedron e mentalmente repetiu as palavras que o Bufão havia pronunciado em voz alta: DIASPAR NEM SEMPRE FOI ASSIM. Instantaneamente, como se os milhões de anos que se haviam escoado desde sua última operação nunca tivessem existido, as máquinas responderam. A grande laje sobre a qual pisavam começou a conduzi-los rumo às profundezas. Em cima, a nesga de azul deixou subitamente de existir. O poço já não era aberto, não havia perigo de alguém cair nele por acidente. Alvin imaginou por um instante se outra laje de pedra não teria sido materializada a fim de substituir aquela que agora suportava a ele e a Khedron, e depois mudou de idéia. A laje original provavelmente ainda pavimentava o Túmulo. Aquela sobre a qual estavam de pé podia existir apenas por frações infinitesimais de segundo, sendo continuamente recriada a profundidades cada vez maiores, a fim de dar a ilusão de contínuo movimento descendente. Nem Alvin nem Khedron falavam enquanto as paredes corriam silenciosamente por eles. Khedron mais uma vez lutava com sua consciência, indagando se dessa vez não teria ultrapassado os limites. Não podia imaginar onde aquele caminho os conduziria, se é que levava mesmo a alguma parte. Pela primeira vez, começava a compreender o que era o medo. Alvin nada receava, mas estava excitado. Era a mesma sensação que havia experimentado na Torre de Loranne, ao se debruçar sobre o deserto virgem e ver as estrelas conquistando o céu noturno. Havia então apenas fitado o desconhecido, agora estava sendo levado para ele. As paredes deixaram de fluir por eles. Um ponto luminoso surgiu numa das extremidades da misteriosa câmara móvel, cresceu e transformou-se subitamente numa porta. Atravessaram-na, deram alguns passos por um curto corredor — e viram-se de pé numa grande caverna circular, cujas paredes se uniam numa curva ampla noventa metros acima de suas cabeças. A coluna por cujo interior haviam descido parecia demasiado delgada para suportar os milhões de toneladas de rocha, na verdade, parecia não ser parte integrante da caverna, dando a impressão de ser um acréscimo posterior. Khedron, que acompanhara o olhar de Alvin, chegou à mesma conclusão. — Essa coluna — disse ele, falando aos solavancos, como se estivesse ansioso por encontrar algo que dizer — foi construída simplesmente para alojar o poço por onde descemos. Jamais poderia suportar o tráfego que deve ter passado por aqui quando Diaspar se comunicava com o mundo. O tráfego era feito através daqueles túneis lá… Será que você os reconhece? Alvin olhou para as paredes da sala, a mais de trinta metros de distância. Furando-as a intervalos regulares, viam-se grandes túneis, doze no total, que irradiavam em várias direções, exatamente como as vias móveis do presente. Alvin percebia que eles adquiriam uma leve inclinação para o alto e reconhecia agora a familiar superfície cinzenta das vias móveis. Eram apenas os tocos seccionados de grandes estradas, o estranho material que uma vez lhes dera vida estava agora imobilizado. Quando o Parque fora reconstruído, o centro do sistema de caminhos móveis tinha sido soterrado. Mas nunca havia sido destruído. Alvin encaminhou-se para os túneis mais próximos. Dera apenas alguns passos quando percebeu que alguma coisa estava acontecendo ao chão onde ele pisava. O chão estava-se tornando transparente. Alguns metros mais adiante, teve a impressão de estar suspenso no ar sem apoio visível. Parou e olhou para o vazio embaixo. — Khedron! Venha cá e olhe isso! O outro chegou e juntos fitaram a maravilha que se descortinava sob os pés. Claramente visível, a uma profundidade indefinida, havia um enorme mapa — uma imensa rede de linhas que convergiam para um ponto central debaixo do poço central. Por um momento, olharam-no em silêncio. Khedron perguntou tranqüilamente: — Compreende o que é isso? — Acho que sim — respondeu Alvin. — É um mapa do sistema de transportes. Aqueles círculos pequenos devem indicar as outras cidades da Terra. Posso ver nomes ao lado deles, mas estão apagados demais para lê-los. — Deve ter havido alguma forma de iluminação interna no passado — disse Khedron com ar ausente. Estava traçando as linhas debaixo de seus pés, acompanhando-as com os olhos até as paredes da caverna. — Bem como pensei! — exclamou de repente. — Está vendo todas essas linhas radiantes que convergem para os pequenos túneis? Alvin havia percebido, ao lado dos grandes arcos dos caminhos móveis, inumeráveis túneis menores que saíam da caverna. Eram túneis que, ao invés de subirem, desciam. Khedron prosseguiu, sem esperar resposta. — É difícil imaginar um sistema mais simples. As pessoas desciam pelas vias móveis, escolhiam o lugar que desejavam visitar e então seguiam a linha apropriada no mapa. — E o que acontecia depois disso? — perguntou Alvin. Khedron estava em silêncio, buscando com os olhos o mistério daqueles túneis descendentes. Eram trinta ou quarenta, parecendo todos exatamente iguais. Somente os nomes no mapa poderiam distingui-los, mas esses nomes estavam agora indecifráveis. Tendo-se afastado, Alvin rodeara a coluna central. Sua voz chegou a Khedron ligeiramente abafada pelos ecos das paredes da sala. — O que é? — perguntou Khedron, sem querer mover-se, pois quase conseguira ler um dos grupos de letras, quase apagados. Mas como Alvin chamava com insistência, atendeu-o. Tratava-se da outra metade do grande mapa, com sua tênue rede de linhas radiando para os pontos cardeais. Dessa vez, porém, nem todo ele estava escuro demais para ser visto com clareza, pois uma das linhas, e somente uma, estava brilhantemente iluminada. Era como se ela não tivesse conexão com o resto do sistema, e apontava, como uma flecha de luz, um dos túneis ascendentes. Pouco antes de seu fim, a linha transfixava um círculo de luz dourada, e contra esse círculo havia uma única palavra: LYS. ISSO era tudo. Por muito tempo, Alvin e Khedron fitaram aquele símbolo silencioso. Para Khedron, era um desafio que ele sabia não poder aceitar jamais, e que, na verdade, ele preferia que não existisse. Mas para Alvin aquilo representava como que o prenuncio da realização de todos os seus sonhos. Embora o nome Lys não significasse nada para ele, deixou-o rolar pela boca, provando-lhe a sibilância como se fosse uma especiaria exótica. O sangue disparava em suas veias, as maçãs de seu rosto queimavam febricitantes. Alvin olhou em volta do imenso recinto, tentando imaginar como teria sido nos dias remotos, quando o transporte aéreo havia chegado ao fim, mas as cidades da Terra ainda mantinham contato entre si. Pensou nos incontáveis milhões de anos em que o tráfego havia minguado gradualmente e imaginou as luzes do grande mapa apagando-se uma a uma, até só restar aquela única linha. Por quanto tempo, pensou, ela havia brilhado ali, entre suas companheiras apagadas, esperando para guiar passos que nunca vinham, até Yarlan Zey ter lacrado os caminhos móveis e fechado Diaspar para o mundo. Isso acontecera havia um bilhão de anos. Ainda então, Lys devia estar em contato com Diaspar. Parecia impossível que ela pudesse ter sobrevivido, era possível que, afinal de contas, o mapa nada significasse agora. Khedron interrompeu finalmente seu devaneio. Dava sinais de nervosismo e impaciência. Não era a mesma pessoa segura e confiante que sempre fora na cidade lá em cima. — Não creio que devamos ir adiante agora — disse. — Pode não ser seguro até… até estarmos mais preparados. Havia verdade nisso, mas Alvin percebeu o tom de medo na voz de Khedron. Não fora esse fato, Alvin talvez se deixasse influenciar, mas uma aguda consciência de sua própria coragem, combinada por desdém pela timidez do companheiro, impulsionou-o para a frente. Parecia tolice ter chegado tão longe e retornar quando a meta parecia estar à vista. — Vou descer por aquele túnel — disse obstinadamente, como se desafiasse Khedron a detê-lo. — Quero saber até onde vai. — Partiu com resolução e após um instante de hesitação o Bufão acompanhou-o pela flecha luminosa. Ao entrarem no túnel, sentiram o repuxão familiar do campo peristáltico, e daí a pouco deslizavam sem esforço para baixo. A viagem não chegou a durar um minuto, quando o campo os libertou, estavam de pé numa extremidade de uma longa câmara em forma de semicilindro. Na outra extremidade, dois túneis pequenos e escuros seguiam para o infinito. Homens de quase todas as civilizações que haviam existido desde o Alvorecer teriam achado o ambiente inteiramente familiar, mas para Alvin e Khedron tratava-se de uma visão de outro mundo. A finalidade da longa máquina aerodinâmica que esperava, como um projétil, no túnel, era óbvia, mas isso não tornava o ambiente menos insólito. Sua parte superior era transparente e, olhando através das paredes, Alvin viu filas de poltronas luxuosas. Não havia nenhum sinal de entrada, a máquina flutuava a pouco mais de um palmo acima de uma única barra metálica que sumia na distância, desaparecendo por um dos túneis. Alguns metros mais adiante, outra barra conduzia ao segundo túnel, mas sobre ela nenhuma máquina flutuava. Alvin sabia, como se lhe tivesse sido dito, que em algum lugar, sob a desconhecida e distante Lys, a segunda máquina estaria à espera em outra câmara semelhante àquela. Khedron começou a falar, um pouco depressa demais. — Que estranho sistema de transporte! Só pode transportar cem pessoas de cada vez, e isso mostra que o tráfego não era intenso. E por que subterrâneo, se os céus ainda estavam abertos? Talvez os Invasores nem mesmo permitissem que voassem, ainda que eu ache difícil acreditar nisso. Ou teria isso sido construído no período de transição, enquanto os homens ainda viajavam, mas não queriam lembrar-se do espaço? Podiam ir de cidade a cidade e nunca ver o céu e as estrelas. — Sorriu nervosamente. — De uma coisa tenho certeza, Alvin. Quando Lys existiu, era muito parecida com Diaspar. Todas as cidades deviam ser essencialmente idênticas. Não é de admirar que todas terminassem por ser abandonadas e se reduzissem a Diaspar. De que adiantaria haver mais de uma? Alvin mal o escutava. Estava ocupado em examinar o longo projétil, tentando encontrar a entrada. Se a máquina era controlada por alguma ordem mental ou verbal, talvez jamais fosse capaz de fazer com que ela o obedecesse, e aquilo se reduziria a um enigma enlouquecedor para o resto de sua vida. Quando a porta se abriu silenciosamente, foi tomado de surpresa. Não houve som nem aviso, uma parte da parede simplesmente desapareceu de vista e o interior lindamente decorado surgiu diante de seus olhos. Aquele era o momento de opção. Até então ele sempre tinha sido capaz de voltar, se assim desejasse. Mas se transpusesse aquela porta, sabia o que ia acontecer, embora não soubesse para onde iria. Já não exercia controle sobre seu próprio destino, estaria entregue a forças desconhecidas. Mal hesitou. Estava com medo de demorar-se, pois aquele momento ansiosamente esperado talvez jamais se repetisse — e mesmo que isso acontecesse, talvez sua coragem não correspondesse a seu desejo de conhecimento. Khedron abriu a boca, num protesto ansioso, mas antes que pudesse dizer alguma coisa Alvin já entrara na máquina. Voltou-se para encarar Khedron, que permanecia de pé, emoldurado pelo retângulo da porta de entrada, por um instante houve um silêncio intenso, enquanto cada um deles esperava que o outro dissesse alguma coisa. A decisão foi tomada à revelia deles. Houve um leve bruxuleio de translucidez, e a máquina novamente se fechou. Enquanto Alvin levantava a mão num adeus, o longo cilindro já entrava em movimento. Antes de penetrar no túnel, já se movia mais depressa do que um homem correndo. Houvera um tempo em que, diariamente, milhões de homens realizavam tais jornadas, em máquinas semelhantes àquela, entre seus lares e seus empregos rotineiros. Desde aquela época, o Homem havia explorado o Universo e retornado à Terra, havia fundado um Império e deixara que ele escapasse a seu controle. Agora uma viagem semelhante estava sendo feita mais uma vez, numa máquina em que milhões de homens desconhecidos e sedentários se tinham sentido inteiramente à vontade. E aquela haveria de ser a viagem mais momentosa que qualquer ser humano empreendera em um bilhão de anos. Alystra já havia percorrido o Túmulo uma dezena de vezes, ainda que uma só tivesse sido suficiente, pois não havia ali lugar algum em que uma pessoa pudesse ocultar-se. Depois do primeiro choque de surpresa, perguntou a si mesma se o que tinha seguido pelo Parque não teria sido, por acaso, projeções de Alvin e Khedron. Mas não fazia sentido, as projeções eram materializadas no lugar que se queria visitar, sem o inconveniente de se ter de ir lá fisicamente. Uma pessoa normal não faria sua imagem projetada «andar» três quilômetros, levando meia hora para chegar ao destino, quando podia estar lá instantaneamente. Não, o que ela seguira até o Túmulo fora o Alvin real, o Khedron real. Por conseguinte, em algum lugar haveria uma entrada secreta. Então, ficaria à procura dela, enquanto esperava que retornassem. Sucedeu, porém, que ela não deu pelo reaparecimento de Khedron, pois estava examinando uma coluna atrás da estátua quando ele ressurgiu do outro lado. Mas escutou seus passos, voltou-se e viu que estava sozinho. — Onde está Alvin? — gritou. Passou-se algum tempo antes que o Bufão respondesse. Ele parecia perturbado e sem saber o que dizer, e Alystra teve de repetir a pergunta antes que ele a notasse. Não pareceu absolutamente surpreso por encontrá-la ali. — Não sei onde ele está — respondeu por fim. — Tudo que posso dizer é que está a caminho de Lys. Agora você sabe tanto quanto eu. Nunca era sensato aceitar as informações de Khedron ao pé da letra. Mas Alystra não precisava de maior garantia de que o Bufão não estava representando seu papel aquele dia. Capítulo X Quando a porta se fechou, Alvin deixou-se cair na poltrona mais próxima. Toda a energia parecia ter abandonado de repente suas pernas, finalmente conhecia, como nunca antes, aquele medo do desconhecido que oprimia seus companheiros. Sentiu que tremia dos pés à cabeça, e sua visão tornou-se turva e incerta. Se pudesse, teria escapado, sem vacilar, da máquina veloz, mesmo que isso significasse a renúncia a seus sonhos. Não era só o medo que o assaltava, mas também uma sensação de indizível solidão. Tudo quanto conhecia e amava estava em Diaspar, mesmo que a viagem não o conduzisse a perigos, era possível que nunca mais voltasse a seu mundo. Sabia, como nenhum homem tinha sabido, durante eras, o que significava deixar o lar para sempre. Naquele momento de desolação, não lhe parecia ter qualquer importância o que o aguardava, perigo ou segurança. Tudo que lhe importava agora era que a viagem o conduzia para fora de seu mundo. Esse estado de espírito cedeu aos poucos, e as sombras deixaram sua mente. Começou a prestar atenção às coisas que o rodeavam, a ver o que podia aprender no veículo inacreditavelmente antigo em que estava viajando. Não lhe parecia particularmente estranho ou maravilhoso que aquele soterrado sistema de transporte ainda funcionasse perfeitamente após tantas eras. Não fora preservado nos circuitos de memória da cidade, mas em algum lugar deviam existir semelhantes preservando-o da ação do tempo e das mutações. Pela primeira vez, notou o quadro indicador que fazia parte da parede anterior. Havia ali uma mensagem breve, mas tranqüilizadora: LYS 35 MINUTOS Enquanto a observava, o número mudou para «34». Isso pelo menos era uma informação útil, ainda que, como não dispunha de nenhuma informação sobre a velocidade da máquina, nada lhe dissesse sobre a extensão da viagem. As paredes do túnel eram contínuas manchas cinzentas, e a única sensação de movimento era fornecida por uma levíssima vibração que jamais teria observado se não a procurasse detectar. Diaspar devia estar agora a muitos quilômetros dali, acima dele estaria o deserto com suas dunas ao sabor dos ventos. Talvez naquele exato momento Alvin estivesse a correr sob as colinas erodidas que havia observado tantas vezes da Torre de Loranne. Sua imaginação disparou em direção a Lys, como se ansiosa por chegar lá antes do corpo. Que espécie de cidade seria? Por mais que tentasse, só conseguia concebê-la como uma versão menor de Diaspar. Imaginou se ainda existiria, depois, porém, deu-se conta de que, se não existisse, aquela máquina não estaria a levá-lo celeremente através da terra. De repente, houve uma clara modificação na vibração. O veículo começou a diminuir sua velocidade — não havia dúvida quanto a isso. O tempo passara mais depressa do que ele havia imaginado. Um tanto surpreso, Alvin olhou para o indicador: LYS 23 MINUTOS Intrigado, e um tanto preocupado, colocou o rosto na parede da máquina. A velocidade ainda fazia com que as paredes do túnel fossem um cinzento sem maiores detalhes, embora agora, de vez em quando, ele conseguisse colher um lampejo de marcas que desapareciam quase tão depressa quanto eram percebidas. E a cada desaparecimento, pareciam persistir um pouquinho mais em seu campo de visão. Então, sem qualquer aviso, as paredes do túnel reapareceram de ambos os lados. A máquina passava, ainda a grande velocidade, por um espaço enormemente vazio, até mesmo maior do que a sala das vias móveis. Olhando pasmado através das paredes transparentes, Alvin podia perceber debaixo dele uma complexa rede de barras e canos que se cruzavam e recruzavam até desaparecerem num emaranhado de túneis laterais. Um jorro de luz azulada despenhava-se da cúpula arqueada do teto e, silhuetas contra o clarão, ele percebia os contornos de grandes máquinas. A luz era tão brilhante que ofuscava a vista, aquele lugar, pensou Alvin, não havia sido destinado a homens. Um momento depois, o veículo que o transportava passou velozmente por filas após filas de cilindros, inteiramente imóveis acima de seus carris. Eram maiores do que o seu, e Alvin supôs que se destinassem ao transporte de carga. Em torno deles agrupavam-se mecanismos incompreensíveis, imóveis e silenciosos, com inúmeras articulações. Quase tão depressa como havia aparecido, a vasta e solitária câmara desapareceu atrás dele. Sua passagem deixou uma sensação de medo na mente de Alvin, pois pela primeira vez compreendia realmente o significado daquele grande mapa obscurecido debaixo de Diaspar. O mundo estava mais cheio de maravilhas do que ele jamais sonhara. Alvin relanceou os olhos novamente pelo indicador. Não mudara. A passagem pela grande caverna levara menos de um minuto. A máquina estava acelerando novamente, embora a sensação de movimento fosse mínima, as paredes do túnel passavam a uma velocidade, de ambos os lados, que ele não podia sequer estimar. Após um tempo que pareceu um século, ocorreu novamente a indefinível modificação da vibração. Agora o indicador dizia: LYS 1 MINUTO e esse minuto foi o mais longo que Alvin já havia experimentado. A máquina diminuía de velocidade. Ela estava chegando a seu destino. Sem solavancos e silenciosamente, o longo cilindro emergiu do túnel e entrou numa caverna que era a réplica da que havia em Diaspar. Por um momento, Alvin sentiu-se excitado demais para ver qualquer coisa com clareza, a porta permaneceu aberta por um tempo considerável antes que ele compreendesse que poderia deixar o veículo. Enquanto saía apressadamente, teve um último relance do indicador. A mensagem mudara e era infinitamente tranqüilizadora: DIASPAR 35 MINUTOS Enquanto se punha a procurar uma saída da caverna, Alvin teve o primeiro indício de que talvez estivesse numa civilização diferente da sua. O caminho para a superfície estendia-se claramente através de um túnel baixo e largo, numa das extremidades da caverna — e dele saía um lance de escadas. Escadas eram coisas extremamente raras em Diaspar. Os arquitetos da cidade haviam construído rampas ou corredores inclinados sempre que havia uma mudança de nível. Isso era um resquício dos tempos em que, em sua maioria, os robôs eram montados sobre rodas e por isso encontravam nos degraus uma barreira intransponível. A escadaria era curta e terminava diante de portas que se abriram automaticamente ante a aproximação de Alvin. Entrou numa pequena câmara, semelhante à que o transportara pelo poço sob o Túmulo de Yarlan Zey, e não se surpreendeu quando, minutos depois, as portas se abriram de novo para revelar um corredor abobadado que subia até uma arcada que emoldurava um semicírculo de céu. Não havia nenhuma sensação de movimento, mas Alvin sabia que devia ter subido uma longa distância. Subiu correndo a rampa até a abertura ensolarada, esquecido de todos os temores na ânsia de verificar o que havia para ser visto. Ele estava de pé no alto de uma colina baixa, e por um instante teve a impressão de que estava novamente no parque central de Diaspar. No entanto, se aquilo era um parque, era demasiado colossal para que sua mente o abarcasse. A cidade que ele tinha esperado ver não era visível em parte alguma. Até onde a vista alcançava, só havia florestas e planícies relvadas. Então Alvin ergueu os olhos para o horizonte, e lá, acima das árvores, estendendo-se da direita para a esquerda num grande arco que abarcava o mundo, havia uma linha de pedra que teria reduzido a um nada os mais pujantes gigantes de Diaspar. Estava tão distante que seus detalhes confundiam-se numa mancha indistinta, mas alguma coisa em sua conformação intrigou Alvin. Por fim seus olhos se habituaram à escala daquela paisagem colossal, e ele percebeu que aquelas muralhas longínquas não eram construção humana. O Tempo não havia conquistado tudo, a Terra ainda possuía montanhas de que se orgulhar. Por muito tempo Alvin permaneceu à boca do túnel, procurando adaptar-se àquele mundo estranho. Sentia-se um tanto atônito pelo impacto das dimensões e do espaço, aquele anel de montanhas nevoentas poderia conter cerca de uma dezena de cidades do tamanho de Diaspar e, no entanto, Alvin não percebia nenhum vestígio de vida humana, muito embora a estrada que descia a colina parecesse bem conservada. Não havia coisa melhor a fazer senão seguir por ela. Ao pé do outeiro, a estrada desaparecia entre grandes árvores, que quase ocultavam o sol. Quando penetrou na sombra, foi saudado por uma estranha mistura de aromas e sons. Alvin já conhecia o rumorejar do vento nas folhas, mas não daquele jeito, sublinhado por um milhão de vagos ruídos que nada significavam para ele. Assaltavam-no cores desconhecidas, bem como odores há muito perdidos na memória de sua raça. O calor, a profusão de perfumes e cores, bem como a presença invisível de um milhão de seres vivos o atingiam com uma violência quase física. Alvin deu com o lago sem qualquer aviso. A direita, as árvores terminaram de repente, e diante dele surgiu uma enorme massa de água interrompida por ilhotas. Jamais em sua vida vira tanta água, as maiores piscinas de Diaspar não passavam de poças, comparadas com aquela massa de água. Alvin caminhou devagar até a margem do lago e colheu a água morna entre as mãos, deixando que ela lhe escorresse entre os dedos. O grande peixe prateado que repentinamente forçou passagem entre os juncos aquáticos foi a primeira criatura não humana que Alvin viu. O peixe deveria ter-lhe parecido inteiramente estranho, mas no entanto sua forma feriu-lhe a mente com uma singular familiaridade. Pairando ali, no pálido vazio verde, onde suas nadadeiras formavam uma esmaecida mancha de movimento, o peixe parecia a verdadeira corporificação de força e velocidade. Ali, incorporadas em carne viva, estavam as linhas graciosas das poderosas naves que um dia haviam dominado os céus da Terra. A evolução e a ciência tinham chegado às mesmas respostas. E o trabalho da natureza durara mais. Por fim, Alvin quebrou o encantamento que lhe provocava o lago e continuou a caminhar pela estrada batida pelo vento. Mais uma vez a floresta fechou-se a seu redor, mas apenas por um curto espaço, pois a estrada não demorou a desembocar numa grande clareira de quase um quilômetro de largura e cerca de dois quilômetros de comprimento — e Alvin compreendeu por que não havia percebido até então nenhum vestígio humano. A clareira estava repleta de edifícios baixos, de dois pavimentos, pintados com cores suaves, que descansavam a vista mesmo ao clarão do sol. A maioria era de arquitetura simples, porém muitos apresentavam um complexo estilo arquitetônico, que envolvia a utilização de colunas esfriadas e pedras graciosamente engastadas. Naqueles edifícios, que pareciam muito antigos, repetia-se o invento incomensuravelmente remoto da ogiva. Enquanto se aproximava da vila, Alvin ainda lutava por compreender aquele novo ambiente. Nada lhe era familiar. Até mesmo o ar mudara, com sua insinuação de vida palpitante e desconhecida. E as pessoas altas que passavam entre os prédios, com graça inconsciente, eram obviamente de uma raça diferente da dos homens de Diaspar. Não tomaram conhecimento de Alvin, o que não deixava de ser estranho, pois as roupas que ele usava eram completamente diferentes das deles. A temperatura em Diaspar jamais se modificava e por isso as roupas eram puramente ornamentais e muitas vezes extremamente complicadas. Ali, os trajes pareciam sobretudo funcionais, projetados mais para serem usados do que exibidos, e freqüentemente consistiam, por isso, em um único pedaço de pano envolvendo o corpo. Só quando Alvin já se encontrava dentro da vila é que a população de Lys reagiu à sua presença. E então a reação assumiu uma forma um tanto inesperada. De dentro de uma das casas saiu um grupo de cinco homens, que se puseram a caminhar diretamente para ele — como se, na verdade, o estivessem esperando: Alvin sentiu uma excitação súbita e violenta. O sangue quase se congelou em suas veias. Pensou em todos os encontros fatídicos que os homens deviam ter tido com raças diferentes em mundos distantes. Aqueles seres que se aproximavam dele agora eram obviamente de sua própria espécie, mas até que ponto teriam divergido nas eternidades que os separavam de Diaspar? A delegação deteve-se a alguns passos de Alvin. O líder do grupo sorriu, estendendo a mão no remoto gesto de amizade. — Achamos melhor recebê-lo aqui — disse. — Nossas moradias são muito diferentes das de Diaspar e a caminhada desde a estação dá aos visitantes oportunidade de… se aclimatarem. Alvin aceitou a mão estendida, mas por um instante não pôde responder, tomado de surpresa. Agora compreendia por que todos os outros aldeões o haviam ignorado tão completamente.. — Sabiam que eu estava vindo? — perguntou por fim. — Claro. Sempre sabemos quando os veículos se põem em movimento. Diga… Como foi que descobriu o caminho? Tanto tempo já passou desde a última visita, que tínhamos medo de que o segredo se houvesse perdido. O orador foi interrompido por um de seus companheiros. — Creio que seria melhor refrear nossa curiosidade, Gerane. Seranis está esperando. O nome «Seranis» foi precedido de uma palavra desconhecida que Alvin supôs ser alguma espécie de título. Não teve dificuldade para compreender as outras, e em momento algum ocorreu-lhe pudesse haver alguma coisa de surpreendente nisso. Diaspar e Lys partilhavam a mesma herança lingüística, e a remota invenção da gravação dos sons congelara há muito a fala num modelo inquebrável. Gerane encolheu os ombros, num gesto de fingida resignação: — Muito bem — sorriu. — Seranis goza de poucos privilégios… Não devo privá-la deste. Enquanto caminhavam pela vila, Alvin estudava os homens que o acompanhavam. Pareciam bondosos e inteligentes, mas essas eram virtudes que ele havia considerado como naturais durante toda a vida, e o que ele estava procurando eram maneiras de distingui-los dos habitantes de Diaspar. Existiam diferenças, mas era difícil defini-las. Os homens dali eram um pouco mais altos do que Alvin, e dois deles mostravam marcas inequívocas de idade física. Tinham a pele bem morena, e em todos seus movimentos pareciam irradiar um vigor e uma alegria que Alvin achava agradáveis, ainda que, ao mesmo tempo, um tanto desconcertantes. Sorriu ao se lembrar da profecia de Khedron — a de que, se jamais chegasse a Lys, veria que era exatamente igual a Diaspar. A população da vila olhava-o agora com franca curiosidade, enquanto Alvin acompanhava seus guias, já não havia nenhuma pretensão de encará-lo naturalmente. De repente, partiram gritos altos e estridentes das árvores à direita, e um grupo de criaturas pequenas e excitadas irrompeu do bosque e cercou Alvin. Ele parou, espantadíssimo, não acreditando em seus olhos. Ali estava uma coisa que seu mundo havia perdido há tanto tempo que agora era uma coisa relegada ao domínio da mitologia. Era assim que a vida começava, antigamente, aquelas criaturas barulhentas e fascinantes eram crianças humanas. Alvin as olhava com meditativa incredulidade — e com uma outra sensação que lhe fazia disparar o coração, mas que ainda não era capaz de identificar. Nenhum outro sinal faria com que ele sentisse tão profundamente a distância do mundo que ele conhecia. Diaspar havia pago, e plenamente, o preço da imortalidade. A comitiva deteve-se diante do maior edifício que Alvin já vira ali. Erguia-se no centro da aldeia e, de um mastro na pequena torre circular, uma flâmula verde balançava ao vento. Todos, menos Gerane, se deixaram ficar para trás quando ele penetrou no edifício. Dentro, havia silêncio e frescor, a luz do sol filtrando-se através de paredes translúcidas banhava todas as coisas com um fulgor macio e repousante. O chão era liso e resistente, recoberto de belos mosaicos. Nas paredes, um artista de grande habilidade e força pintara um conjunto de cenas florestais. Juntamente com essas pinturas havia outros murais que nada significavam para Alvin, embora fossem atraentes e agradáveis à vista. Numa parede estava embutida uma tela cheia de um labirinto de cores em contínua mutação — provavelmente um receptor de visifonia, ainda que pequeno. Subiram uma curta escadaria circular, que os deixou no terraço plano do edifício. Dali, podia-se ver toda a vila e Alvin observou que ela consistia em aproximadamente cem prédios. A distância, as árvores abriam-se para circundar amplas campinas, onde pastavam animais de várias espécies diferentes. Alvin não sabia imaginar que animais seriam aqueles. A maioria era formada de quadrúpedes, mas alguns pareciam possuir seis ou mesmo oito pernas. Seranis aguardava-o na sombra da torre. Alvin ficou a imaginar quantos anos ela teria, seus longos cabelos dourados começavam a encanecer, o que, supunha ele, devia ser alguma indicação de idade. A presença de crianças, com todas as conseqüências que isso implicava, deixara-o confuso. Onde havia nascimento, seguramente devia haver morte, e o período de vida ali em Lys devia ser bastante diferente do de Diaspar. Ser-lhe-ia difícil dizer que Seranis tinha cinqüenta, quinhentos ou cinco mil anos, mas olhando dentro de seus olhos, percebeu aquela sabedoria e aquela maturidade que ele às vezes sentia quando estava com Jeserac. Ela lhe indicou uma banqueta, e embora seus olhos sorrissem acolhedoramente, nada disse até Alvin ter-se instalado à vontade — coisa um tanto difícil em face daquele intenso escrutínio, ainda que cordial. Depois suspirou e dirigiu-se a ele em voz baixa, gentil: — Esta é uma ocasião que não surge muitas vezes, e por isso queira me desculpar se eu não conhecer a conduta correta. Há certos direitos e deveres que se prestam a um hóspede, mesmo inesperado. Antes de começarmos a conversar, preciso adverti-lo de uma coisa. Posso ler seu pensamento. Sorriu ao notar a consternação de Alvin, e acrescentou rapidamente: — Não há por que se preocupar. Nenhum direito é mais respeitado aqui do que o da intimidade mental. Só poderei entrar em sua mente se você me convidar. Mas não seria justo ocultar-lhe esse fato, e isso explica por que achamos a fala um meio de comunicação um tanto lento e difícil. A palavra é coisa pouco utilizada entre nós. A revelação, embora um tanto alarmante, não chegou a surpreender Alvin. No passado, tanto os homens como as máquinas tinham possuído esse poder, e as máquinas, imutáveis, ainda eram capazes de ler as ordens de seus senhores. Mas em Diaspar o homem perdera esse dom que antes compartilhara com seus escravos. — Não sei o que foi que o trouxe de seu mundo para o nosso — continuou Seranis —, mas, se o que você procura é vida, sua busca chegou ao fim. À exceção de Diaspar, só existe deserto além de nossas montanhas. Foi estranho que Alvin, que com tanta freqüência havia contestado crenças universais no passado, não duvidasse das palavras de Seranis. Sua única sensação foi de tristeza pelo fato de as coisas que ele havia aprendido serem quase totalmente verdadeiras. — Fale-me de Lys — ele pediu. — Por que permaneceram afastados de Diaspar por tanto tempo, se parecem saber tantas coisas a nosso respeito? Seranis achou graça de sua ânsia. — Daqui a pouco — ela disse. — Primeiro eu gostaria de saber alguma coisa de você. Diga-me como descobriu o caminho para cá e por que veio. Vacilante a princípio, e depois com crescente segurança, Alvin contou sua história. Jamais tinha falado com tanta liberdade, afinal encontrava alguém que não ria de seus sonhos, por sabê-los verdadeiros. Por uma ou duas vezes Seranis o interrompeu com rápidas perguntas, quando ele se referia a algum aspecto de Diaspar desconhecido para ela. Era difícil para Alvin imaginar que coisas que faziam parte de sua vida diária não tivessem sentido para alguém que nunca vivera na cidade e que nada sabia de sua complexa cultura e organização social. Seranis o ouvia com tal simpatia que ele tomava sua compreensão como pacífica, não foi senão mais tarde que ele compreendeu que muitas outras mentes, além da dela, estavam ouvindo suas palavras. Quando terminou, houve alguns momentos de silêncio. Depois, Seranis olhou-o e disse rapidamente: — Por que você veio a Lys? Alvin surpreendeu-se com a pergunta. — Eu lhe disse — respondeu. — Eu queria explorar o mundo. Todos me diziam que só havia o deserto além da cidade, e eu queria ver com meus próprios olhos. — E foi essa a única razão? Alvin hesitou. Quando respondeu, afinal, não era o explorador indômito quem falava, mas a criança perdida nascida num mundo alienígena. — Não — disse lentamente. — Não foi essa a única razão… Ainda que não soubesse disso até agora, sentia-me solitário. — Solitário? Em Diaspar? — Seranis sorria, mas havia compreensão em seus olhos, e Alvin percebeu que ela não esperava maiores explicações. Agora que havia contado toda sua história, esperou que ela cumprisse o prometido. Seranis então levantou-se e começou a andar de um lado para outro. — Sei quais são as perguntas que você quer fazer — ela disse. — Algumas eu posso responder, mas seria cansativo fazê-lo em palavras. Se você abrir-me sua mente, eu lhe direi o que precisa saber. Pode confiar em mim. Nada tirarei de você sem sua permissão. — Que quer que eu faça? — perguntou Alvin cautelosamente. — Que aceite minha ajuda… olhe para meus olhos… e esqueça-se de tudo — ordenou Seranis. Alvin não saberia nunca dizer o que lhe aconteceu. Houve um eclipse total de seus sentidos, e embora não se lembrasse de havê-lo adquirido, quando olhou para dentro de sua mente o conhecimento estava lá. Ele pôde olhar o passado, não de maneira clara, mas como um homem do alto de uma montanha veria uma planície nevoenta. Compreendeu que o Homem nem sempre havia sido um habitante de cidades e que, desde que as máquinas o haviam libertado do trabalho, surgira uma rivalidade entre dois tipos diferentes de civilização. Nas Eras do Alvorecer tinham existido milhares de cidades, mas grande parte da humanidade preferira viver em comunidades relativamente pequenas. O transporte universal e as comunicações instantâneas lhe davam todo o contato necessário com o resto do mundo, e não sentiam nenhuma necessidade de viver amontoados com milhões de seres de sua espécie. Lys pouco diferia, nos primeiros dias, de centenas de outras comunidades. Mas gradualmente, no transcurso das eras, adquirira uma cultura diferente, uma das mais altas que a humanidade jamais conhecera. Era uma cultura baseada fundamentalmente no uso direto do poder mental, e isso a apartou do resto da sociedade humana, que passava a confiar cada vez mais nas máquinas. Através das eras, e à medida que seguiam caminhos diferentes, ampliou-se o abismo entre Lys e as outras cidades. Esse hiato só se fechava em épocas de grande crise, quando a Lua começou a cair, sua destruição foi empreendida pelos cientistas de Lys. O mesmo aconteceu com a defesa da Terra contra os Invasores, os quais foram detidos na batalha final de Shalmirane. A grande provação havia exaurido a humanidade. Uma a uma, as cidades morreram e o deserto rolou sobre elas. Ao reduzir-se a população, teve início a migração que faria de Diaspar a última e a maior de todas as cidades. A maioria dessas mudanças não afetou Lys, mas ela tinha sua própria batalha a ser travada — a luta contra o deserto. A barreira natural das montanhas não era suficiente, e muitas eras se passaram antes que o grande oásis fosse tornado seguro. Nesse ponto, as imagens se borravam, talvez por expressa deliberação. Alvin não podia ver o que dera a Lys a virtual eternidade que Diaspar havia conseguido. A voz de Seranis parecia vir de grande distância — mas não era apenas sua voz, pois ela parecia fundida com uma sinfonia de palavras, como se muitas outras línguas falassem em uníssono com a dela. — Essa, muito resumida, é nossa história. Você verá que mesmo nas Eras do Alvorecer tínhamos muito pouco em comum com as cidades, ainda que seus habitantes viessem muitas vezes à nossa terra. Nunca os impedimos, pois muitos de nossos maiores homens vieram do Exterior, mas, quando as cidades começaram a morrer, não quisemos ser envolvidos em sua derrocada. Com o fim do transporte aéreo, só restou um caminho para Lys — o sistema subterrâneo que parte de Diaspar. Esse caminho foi fechado lá, com a construção do Parque… e vocês nos esqueceram, embora nunca nos tenhamos esquecido de vocês. «Diaspar surpreendeu-nos. Esperávamos que ela seguisse o destino das demais cidades, mas ao invés disso ela conseguiu formar uma cultura estável, capaz de ter a mesma duração da Terra. Não é uma cultura que conte com nossa admiração, mas ficamos felizes com o fato de que aqueles que desejaram escapar o tenham conseguido. Muito mais gente do que você imagina empreendeu a viagem, e quase sempre foram homens extraordinários, que trouxeram consigo alguma coisa de valor quando vieram para Lys.» A voz desvaneceu-se, a paralisia dos sentidos de Alvin diminuiu e ele voltou a si. Viu com espanto que o Sol havia mergulhado sob as árvores, e que a leste o céu já tinha sombras da noite. Em algum lugar vibrou um grande sino, com uma pulsação que morreu lentamente, deixando o ar tenso de mistério e premonições. Alvin deu consigo tremendo de leve, não por causa do primeiro toque do frio da noite, mas em conseqüência do assombro que lhe causava tudo aquilo que acabara de aprender. Já era muito tarde e estava longe de casa. Sentiu súbita necessidade de rever seus amigos e achar-se entre os aspectos e as cenas familiares de Diaspar. — Tenho de voltar — disse. — Khedron… meus pais… eles estão me esperando. Isso não era exatamente verdade. Khedron com toda certeza estaria pensando no que lhe acontecera, mas Alvin tinha plena certeza de que ninguém mais sabia que havia abandonado Diaspar. Não podia explicar o motivo da pequena fraude de que lançara mão, e sentiu-se ligeiramente envergonhado tão logo pronunciou as palavras. Seranis olhou-o pensativamente. — Receio que as coisas não sejam assim tão fáceis — disse. — O que quer dizer? — perguntou Alvin. — O veículo que me trouxe não pode levar-me de volta? — Ele ainda se recusava a enfrentar o fato de que poderia ser mantido em Lys contra a vontade, ainda que essa idéia tivesse passado rapidamente por sua mente. Pela primeira vez, Seranis parecia ligeiramente embaraçada. — Nós estivemos conversando a seu respeito — explicou, sem especificar quem faria parte do «nós», nem exatamente como haviam conferenciado. — Se você voltar para Diaspar, toda a cidade ficará sabendo de nós. Mesmo que você prometesse não dizer nada, seria impossível manter o segredo. — E por que desejam que isso fique em segredo? — perguntou Alvin. — Evidentemente, seria ótimo para ambos os povos se voltassem a se encontrar. Seranis mostrou desagrado. — Não pensamos assim. Se os portões fossem abertos, nossa terra seria invadida por curiosos indolentes e caçadores de sensações. Da maneira como as coisas estão, só os melhores dentre sua gente chegaram até aqui. Essa resposta irradiava tanta superioridade inconsciente, posto que baseada em falsas premissas, que Alvin sentiu um aborrecimento que prontamente superava seu alarme. — Isso não é verdade — disse secamente. — Não creio que vocês encontrassem outra pessoa em Diaspar disposta a deixar a cidade, mesmo que pudesse… mesmo que soubesse que há outro lugar para onde ir. Se eu voltasse, isso não causaria nenhuma diferença a Lys. — Essa decisão não é minha — explicou Seranis — e você está subestimando os poderes da mente, se julga que as barreiras que isolam seu povo nunca poderão ser quebradas. Não desejamos mantê-lo aqui contra sua vontade, mas se você regressar a Diaspar teremos de cancelar de sua mente todas as lembranças de Lys. — Hesitou por um instante. — Essa questão nunca surgiu antes. Todos os seus antecessores que vieram, foi para ficar. Aquela era uma opção que Alvin se recusava a aceitar. Ele queria explorar Lys, desvendar todos os segredos daquele mundo novo, descobrir em que ele se distinguia de Diaspar. Entretanto, estava igualmente resolvido a voltar, a fim de mostrar a seus amigos que não sonhara com coisas inexistentes. Não podia compreender as razoes que levavam a esse desejo de segredo, e mesmo que compreendesse, isso não teria feito diferença alguma em seu comportamento. Compreendeu que devia ganhar tempo, ou então convencer Seranis de que aquilo que ela lhe pedia era impossível. — Khedron sabe onde estou — disse. — Vocês não podem apagar as memórias dele. Seranis sorriu. Era um sorriso agradável, que em outras circunstâncias teria sido bastante cordial. Contudo, por trás dele, Alvin divisou, pela primeira vez, a presença de um poder irresistível e implacável. — Você nos subestima, Alvin — ela respondeu. — Isso seria facílimo. Posso chegar a Diaspar em menos tempo do que preciso para atravessar Lys. Outros homens já vieram aqui antes e disseram aos amigos para onde iam. No entanto, esses amigos esqueceram-se deles e eles desapareceram da história de Diaspar. Fora tolice de Alvin ignorar essa possibilidade, bastante óbvia depois que Seranis a apontara. Pensou quantas vezes, nos milhões de anos decorridos desde a separação das duas culturas, homens de Lys não haveriam penetrado em Diaspar a fim de preservar o segredo ciosamente protegido. E imaginou até onde não iriam as forças mentais daquela gente estranha, forças que não hesitavam em utilizar. Seria seguro fazer planos? Seranis prometera respeitar sua mente, mas Alvin imaginava se não haveria circunstâncias em que essa promessa não fosse cumprida… — Evidentemente, vocês não esperam que eu tome uma decisão imediata — disse ele. — Posso conhecer o país antes de me decidir? — Claro — respondeu Seranis. — Pode ficar quanto tempo quiser e retornar à sua cidade, se assim preferir. Mas se você se resolver dentro de poucos dias, as coisas serão muito mais fáceis. Você não quer que seus amigos fiquem preocupados, e quanto mais tempo você demorar mais difícil para nós será tomarmos as providências necessárias. Alvin entendia isso, gostaria de saber exatamente que «providências» eram essas. Provavelmente alguém de Lys entraria em contato com Khedron — sem que o Bufão percebesse — e influenciaria sua mente. O desaparecimento de Alvin não poderia ser ocultado, mas as informações que ele e Khedron possuíam seriam obliteradas. Com o passar do tempo, o nome de Alvin se juntaria ao de outros Únicos que haviam desaparecido misteriosamente, sem deixar vestígios, e que agora estavam esquecidos. Havia muitos mistérios em Lys, e ele não parecia perto de solucionar nenhum deles. Haveria algum propósito por trás da curiosa relação unilateral entre Lys e Diaspar, ou tratava-se apenas de um acidente histórico? Quem e o que eram os Únicos, e se a gente de Lys podia entrar em Diaspar, por que não cancelava os circuitos de memória que guardavam indícios de sua existência? Talvez fosse essa a única pergunta a que Alvin poderia dar resposta plausível. O Computador Central era adversário teimoso demais para ser manejado e dificilmente seria afetado mesmo pelas mais avançadas técnicas mentais… Alvin pôs esses problemas de lado. Um dia, depois de ter aprendido muito mais coisas, poderia vir ter oportunidade de elucidá-los. Era ocioso especular, construir pirâmides de conjecturas sobre alicerces de ignorância. — Muito bem — disse, embora a contragosto, pois ainda estava aborrecido com o surgimento daquele obstáculo inesperadamente posto em seu caminho. — Vou dar-lhe minha resposta assim que possível… se você me mostrar como é o seu mundo. — Ótimo — respondeu Seranis, e dessa vez seu sorriso não encerrava qualquer ameaça oculta. — Temos orgulho de Lys è será um prazer mostrar como os homens podem viver sem a ajuda de cidades. Entrementes, não há necessidade de você se preocupar, seus amigos não ficarão alarmados com sua ausência. Cuidaremos disso, quando mais não seja para nossa própria proteção. Era a primeira vez em sua vida que Seranis fazia uma promessa que não poderia cumprir. Capítulo XI Por mais que tentasse, Alystra não conseguiu extrair maiores informações de Khedron. O Bufão havia-se recuperado rapidamente de seu choque inicial, bem como do pânico que o fizera subir correndo à superfície quando se viu só nas profundezas sob o Túmulo. Sentia-se também envergonhado de sua conduta covarde, e pensava consigo mesmo se algum dia teria forças para retornar à câmara das Vias Móveis e à rede de túneis que dali se irradiavam. Muito embora acreditasse que Alvin fora impaciente, senão temerário, não acreditava realmente que viesse a correr qualquer perigo. Estava certo de que mais cedo ou mais tarde voltaria. Isto é, quase certo, havia em seu espírito dúvida suficiente para fazer com que sentisse a necessidade de cautela. Decidiu que o mais sensato seria dizer o mínimo possível por enquanto, e tentar fazer com que tudo aquilo parecesse outro de seus gracejos. Infelizmente, porém, não fora capaz de ocultar suas emoções quando Alystra o encontrou, ao voltar à superfície. Ela vira o medo inequivocamente gravado em seus olhos, interpretando-o desde logo como sinal de que Alvin corria perigo. Todas as garantias de Khedron de que isso não acontecia foram vãs, e ela se mostrava cada vez mais furiosa com ele enquanto voltavam pelo Parque. A princípio, Alystra manifestara desejo de permanecer no Túmulo, esperando que Alvin retornasse da mesma forma misteriosa que havia desaparecido. Khedron conseguira convencê-la de que isso seria perda de tempo, ficando aliviado quando ela resolveu acompanhá-lo de volta à cidade. Havia uma possibilidade de que Alvin voltasse quase logo, e Khedron não queria que outra pessoa descobrisse o segredo de Yarlan Zey. Já ao chegarem à cidade, era patente a Khedron que suas táticas evasivas haviam fracassado redondamente e que a situação corria sério risco de escapar a seu controle. Era a primeira vez em sua vida que não sabia como proceder e que não se sentia capaz de resolver qualquer problema que surgisse. Seu medo imediato e irracional estava sendo aos poucos substituído por um alarme mais profundo e mais bem fundamentado. Até agora, Khedron sempre dera pouca atenção às conseqüências de seus atos. Seus próprios interesses, assim como uma leve, porém legítima, simpatia por Alvin, tinham sido suficientes para motivá-lo a fazer o que acabara de fazer. Conquanto tivesse dado ajuda e estímulo a Alvin, jamais acreditara que qualquer coisa daquele gênero pudesse de fato acontecer. Apesar do abismo de anos e de experiência que os separava, a personalidade de Alvin sempre tinha sido mais forte do que a sua. Era tarde demais agora para remediar isso, para Khedron, os acontecimentos estavam levando-o de roldão para um clímax inteiramente além de seu controle. Em vista disso, era um pouco injusto que Alystra obviamente o considerasse a ovelha-negra de Alvin e se mostrasse inclinada a culpá-lo de tudo quanto acontecera. Alystra não era realmente vingativa, mas estava transtornada e parte desse sentimento era descarregado sobre Khedron. Se qualquer ato seu causasse prejuízo ao Bufão, ela seria a última pessoa a lamentá-lo. Despediram-se num silêncio pétreo quando chegaram ao grande caminho circular que circundava o Parque. Khedron viu a moça desaparecer na distância, imaginando com cansaço que planos estaria ela arquitetando. Só havia uma coisa de que podia estar seguro. Durante muito tempo não correria qualquer perigo de tédio. Alystra agiu rapidamente e com inteligência. Não se deu ao trabalho de procurar Eriston e Etania. Os pais de Alvin eram pessoas medíocres, por quem sentia afeição, mas nenhum respeito. Só perderiam tempo em discussões estéreis, e depois fariam exatamente o que Alystra estava fazendo agora. Jeserac escutou-lhe a história sem qualquer emoção visível. Se estava alarmado ou surpreso, ocultou-o bem — tão bem, na verdade, que Alystra se sentiu desapontada. Parecia-lhe que nada tão importante como aquilo já havia acontecido no passado, e o comportamento sereno de Jeserac decepcionou-a. Quando acabou de falar, ele a interrogou prolongadamente, insinuando, sem dizer claramente, que ela poderia ter cometido um engano. Que razão teria para supor que Alvin havia realmente deixado a cidade? Talvez tudo aquilo não passasse de uma brincadeira às suas custas, o fato de Khedron estar envolvido naquilo tornava essa possibilidade altamente provável. Naquele exato momento, escondido em algum lugar de Diaspar, Alvin poderia estar rindo dela. A única reação positiva que ela obteve junto a Jeserac foi a promessa de que faria investigações e entraria em contato com ela novamente no dia seguinte. Nesse ínterim, que ela não se preocupasse, ademais, seria melhor não comentar nada com ninguém a respeito do caso. Não havia por que semear o alarme com relação a um incidente que provavelmente estaria resolvido dentro de poucas horas. Alystra saiu de seu encontro com Jeserac sentindo-se ligeiramente frustrada. No entanto, teria ficado mais satisfeita se visse o comportamento do ancião assim que ela saiu. Jeserac tinha amigos no Conselho, ele próprio havia participado da junta em sua longa vida, e poderia voltar a fazê-lo se não tivesse sorte. Chamou três de seus colegas mais influentes e, cautelosamente, despertou-lhes o interesse. Como tutor de Alvin, estava ciente de sua própria posição, bastante delicada, e estava ansioso por salvaguardar-se. Por ora, quanto menos pessoas soubessem o que havia acontecido, melhor. Houve concordância unânime em que a primeira coisa a fazer era entrar em contacto com Khedron e pedir-lhe explicações. Só havia um problema nesse plano. Khedron previra que isso aconteceria e não podia ser encontrado em parte alguma. Se havia alguma ambigüidade com relação à situação de Alvin, seus anfitriões tiveram todo cuidado de não deixar que ele a percebesse. Tinha liberdade para ir onde quisesse em Airlee, a pequena aldeia governada por Seranis — embora governar fosse palavra forte demais para definir sua função. As vezes parecia a Alvin que ela era uma ditadora benevolente, às vezes parecia-lhe que ela não exercia absolutamente poder algum. Até agora não havia compreendido nada do sistema social de Lys, fosse por ser simples demais ou por ser de tal modo complexo que suas ramificações lhe escapavam. Tudo que ele havia descoberto com certeza era que Lys estava dividida em inúmeras vilas, das quais Airlee era exemplo bastante típico. No entanto, em certo sentido não havia exemplos típicos, pois haviam garantido a Alvin que cada vila procurava ser o mais diferente possível da vizinha. Tudo era extremamente confuso. Conquanto fosse muito pequena, possuindo menos de mil habitantes, Airlee encerrava muitas surpresas. Não havia praticamente um só aspecto da vida que não diferisse de seu equivalente em Diaspar. As diferenças chegavam mesmo a coisas tão básicas como a linguagem. Apenas as crianças usavam a voz para a comunicação normal, os adultos praticamente nunca falavam, e depois de algum tempo Alvin concluiu que quando o faziam era por deferência a ele. Tratava-se de experiência curiosamente frustrante sentir-se enredado numa enorme teia de palavras sem som e indetectáveis, mas após algum tempo Alvin habituou-se. Parecia surpreendente até que a fala vocal houvesse sobrevivido, uma vez que já não tinha qualquer serventia, mais tarde, porém, Alvin descobriu que a gente de Lys amava o canto e, na verdade, todas as formas de música. Sem esse incentivo, era bastante provável que há muito tivessem ficado inteiramente mudos. Estavam todos sempre ocupados, empenhados em tarefas ou problemas que em geral Alvin não compreendia. Quando entendia o que estavam fazendo, grande parte desse trabalho lhe parecia inteiramente desnecessário. Por exemplo, parte substancial de seus alimentos era cultivada, e não sintetizada de acordo com padrões determinados remotamente no passado. Quando Alvin comentou a esse respeito, explicaram-lhe pacientemente que a gente de Lys gostava de ver as coisas crescerem, realizar complicadas experiências genéticas, adquirir gostos e paladares cada vez mais sutis. Airlee era famosa por suas frutas, mas quando Alvin provou algumas, não lhe pareceram melhores do que as que ele poderia obter em Diaspar sem esforço maior do que levantar um dedo. A princípio, imaginou se o povo de Lys teria esquecido — ou se nunca possuíra — os poderes e as máquinas que ele tomava como naturais e sobre as quais se baseava toda a vida em Diaspar. Logo percebeu não ser esse o caso. As ferramentas e o conhecimento existiam, mas só eram usados quando essenciais. O exemplo mais notável disso era proporcionado pelo sistema de transportes, se é que merecia tal nome. Para distâncias curtas, as pessoas andavam, e pareciam gostar. Se tinham pressa ou precisavam transportar pequenas cargas, usavam animais que obviamente tinham sido desenvolvidos para esse fim. A espécie de carga era um animal baixo, de seis pernas, muito dócil e forte, mas carente de inteligência. Os animais de corrida pertenciam a uma raça totalmente diferente, normalmente andavam sobre as quatro patas, mas utilizavam somente seus musculosos membros traseiros quando ganhavam forte velocidade. Podiam atravessar toda a extensão de Lys em poucas horas, e o passageiro viajava num assento dotado de eixo e atado ao lombo da criatura. Nada no mundo teria induzido Alvin a se arriscar a uma viagem dessas, ainda que tais corridas representassem esporte dos mais populares entre os rapazes. Seus corcéis eram os aristocratas do mundo animal, e tinham plena consciência disso. Possuíam um vocabulário bastante extenso e Alvin entreouviu-os conversando jactanciosamente entre si sobre vitórias passadas e futuras. Mas, quando procurava ser cordial e tomar parte na conversa, fingiam não ser capazes de compreendê-lo e, se persistia, saíam marchando aos solavancos, com ar de ofendida dignidade. Esses dois tipos de animal bastavam a todas as necessidades comuns, e proporcionavam a seus proprietários grande soma de prazer que nenhum artifício mecânico poderia ter sobrepujado. Mas quando se faziam necessárias altas velocidades, ou quando era preciso movimentar cargas enormes — então entravam em cena as máquinas, usadas sem hesitação. Ainda que a vida animal de Lys apresentasse a Alvin todo um mundo novo de interesses e surpresas, eram os dois extremos da população humana que mais o fascinavam. Os muito jovens e os muito velhos — ambos eram igualmente estranhos e igualmente assombrosos. O habitante mais idoso de Airlee não teria atingido seu segundo século — e dispunha apenas de mais alguns anos de vida. Quando ele tivesse chegado àquela idade, lembrou-se Alvin, seu corpo quase não se teria alterado — ao passo que aquele velho, que não podia consolar-se, como compensação, na esperança de vidas futuras, já havia quase esgotado suas forças físicas. Os cabelos estavam completamente brancos e seu rosto era uma massa inacreditavelmente intrincada de rugas. Parecia passar a maior parte do tempo sentado ao Sol, ou caminhando vagarosamente em torno da vila, trocando saudações com todos quanto encontrava. Até onde Alvin podia perceber, mostrava-se inteiramente satisfeito, não pedindo mais da vida, nem se mostrando aflito com o fim que se avizinhava. Ali estava uma filosofia tão discrepante da de Diaspar que escapava inteiramente ao entendimento de Alvin. Por que haveria uma pessoa de aceitar a morte, se ela era tão desnecessária, quando se tinha a opção de viver mil anos e depois saltar adiante, através dos milênios, e começar de novo num mundo que havia ajudado a formar? Isso era um mistério que ele estava resolvido a desvendar tão logo tivesse oportunidade de discuti-lo com franqueza. Era dificílimo para ele acreditar que Lys houvesse feito essa opção por livre vontade, no caso de saber que havia alternativa. Parte da resposta ele a encontrava entre as crianças, aquelas criaturinhas que lhe eram tão estranhas quanto os animais de Lys. Passava muito tempo entre elas, vendo-as brincar e sendo por fim aceito por elas como amigo. Por vezes lhe parecia que não fossem absolutamente humanas, uma vez que seus motivos, sua lógica e até mesmo sua linguagem eram tão exóticas. Alvin olhava incredulamente para os adultos e se perguntava como era possível que houvessem brotado daquelas criaturas extraordinárias que pareciam passar a maior parte da vida em seu mundo privado. Ainda assim, embora não as compreendesse, despertavam em seu coração um sentimento que jamais havia conhecido. Quando rompiam em lágrimas de frustração ou desespero — o que não era comum, mas às vezes acontecia —, seus insignificantes desapontamentos pareciam-lhe mais trágicos do que toda a longa retirada do Homem após a perda de seu Império Galático. Isso era algo por demais grandioso e remoto para sua compreensão, mas o choro de uma criança era capaz de transpassar o coração de uma pessoa. Alvin havia encontrado amor em Diaspar, mas agora estava aprendendo uma coisa igualmente preciosa, e sem a qual o próprio amor jamais conseguiria alcançar a suprema realização, permanecendo para sempre incompleto — estava aprendendo a conhecer a ternura. Se Alvin estava estudando Lys, esta também o estudava, sem insatisfação com o que havia descoberto. Alvin já estava há três dias em Airlee quando Seranis lhe sugeriu que fosse um pouco mais longe e visse mais coisas. Foi uma proposta que ele aceitou imediatamente — sob a condição de não ter de viajar num dos tão admirados animais de corrida da vila. — Posso garantir-lhe — disse Seranis, numa rara demonstração de humor — que ninguém aqui sonharia em arriscar um de seus preciosos animais. Como este é um caso excepcional, providenciarei uma forma de transporte na qual você se sinta mais à vontade. Hilvar será seu guia, mas é claro que você poderá ir aonde quiser. Alvin perguntou a si mesmo se isso seria rigorosamente verdade. Imaginou se não haveria objeção se tentasse voltar ao outeiro de cujo topo vira Lys pela primeira vez. Contudo, isso não o preocupava por ora, uma vez que não tinha pressa em voltar para Diaspar, na verdade, pouca atenção dedicara ao problema de sua volta desde seu encontro inicial com Seranis. A vida ali era tão interessante e diferente, que ainda estava satisfeito em viver o presente. Apreciou o gesto de Seranis, oferecendo-lhe o filho como guia, conquanto não restasse dúvidas de que Hilvar recebera instruções precisas no sentido de evitar que ele criasse problemas. Alvin havia levado algum tempo para se acostumar com Hilvar, por um motivo que não lhe podia explicar muito bem sem melindrá-lo. A perfeição física era tão universal em Diaspar que a beleza pessoal perdera totalmente o significado, não era mais notada do que o ar que se respirava. O mesmo não ocorria em Lys e a qualificação mais lisonjeira que se poderia aplicar a Hilvar era «sem graça». Segundo os padrões de Alvin, ele era simplesmente feio, e durante algum tempo deliberadamente o evitou. Se Hilvar percebeu, não deu qualquer demonstração, não tardando que sua cordialidade amena rompesse a barreira entre eles. Chegaria um dia em que Alvin de tal modo se acostumaria ao sorriso largo e mais torto de Hilvar, à sua força e à sua cordura, que mal acreditaria que jamais o tivesse achado repelente, e não gostaria que ele se modificasse por nenhum motivo. Deixaram Airlee logo ao romper da aurora, num pequeno veículo que Hilvar chamava de carro terrestre e que aparentemente funcionava segundo o mesmo princípio que a máquina que trouxera Alvin de Diaspar. Flutuava no ar alguns centímetros sobre a relva e, embora não houvesse nenhum sinal de canil, Hilvar lhe disse que os carros só podiam correr em rotas predeterminadas. Todos os centros populacionais estavam ligados dessa maneira, mas durante toda sua estada em Lys, Alvin nunca viu outro carro terrestre em funcionamento. Hilvar dedicara muito esforço na organização daquela expedição, e evidentemente estava tão ansioso por tomar parte nela quanto Alvin. Havia planejado o trajeto tendo em mente seus próprios interesses, pois a história natural era a paixão de sua vida, e ele nutria esperanças de encontrar novos tipos de insetos nas regiões relativamente pouco habitadas de Lys pelas quais passariam. Pretendia chegar ao ponto mais meridional que a máquina os levasse, o resto da viagem teria de ser feito a pé. Sem compreender as implicações disso, Alvin não opôs objeção. Tinham com eles, na viagem, um companheiro — Krif, o mais espetacular dos animais de estimação de Hilvar. Quando estava descansando, as seis asas diáfanas de Krif permaneciam dobradas sobre o seu corpo, o qual reluzia através delas como um cetro cravejado de gemas. Se alguma coisa o incomodava, elevava-se no ar com um adejar iridescente e um ligeiro rumorejar de asas invisíveis. Ainda que o grande inseto atendesse quando chamado e atendesse — às vezes — a ordens simples, era quase totalmente desprovido de cérebro. No entanto, possuía decididamente personalidade própria e, por algum motivo, suspeitava de Alvin, cujas tentativas esporádicas de ganhar sua confiança sempre terminavam em fracasso. Para Alvin a viagem por Lys tinha algo de sonho. Silenciosa como um espectro, a máquina deslizava pelas planícies ondulantes e contornava florestas, jamais se desviando de seu trilho invisível. Viajava a uma velocidade de aproximadamente dez vezes a de um homem caminhando sem pressa: na verdade, raramente um habitante de Lys experimentava maior velocidade. Passaram por muitas vilas, algumas maiores do que Air-lee, mas a maioria construída de modo bastante análogo. Alvin interessou-se em notar as diferenças sutis, mas substanciais, no vestuário e até mesmo no aspecto físico entre uma comunidade e outra. A civilização de Lys compunha-se de centenas de culturas distintas, cada uma das quais contribuía com algum talento especial para a totalidade. O carro terrestre levava bom estoque do mais famoso produto de Airlee, um minúsculo pêssego amarelo que era recebido com gratidão sempre que Hilvar distribuía algumas amostras. Muitas vezes parava para conversar com amigos e apresentá-los a Alvin, que nunca deixava de ficar impressionado pela cortesia simples com que todos usavam a voz tão logo ficavam a par de quem era ele. Isso devia ser-lhes muitas vezes bastante incômodo, mas, ao que lhe era dado perceber, sempre resistiam à tentação de usar a telepatia e Alvín jamais se sentia excluído da conversa. Fizeram pausa mais longa numa vila minúscula, quase oculta por um mar de altos ervais dourados que subiam bem acima de suas cabeças e ondulavam à brisa como se dotados de vida. Ao passarem por eles, eram continuamente afagados por ondas incessantes, enquanto lâminas incontáveis curvavam-se em uníssono sobre eles. A princípio, isso era ligeiramente aborrecido, pois Alvin teve a fantasia tola de que a erva curvava-se a fim de olhá-lo, depois de algum tempo, porém, verificou que o movimento contínuo era bastante tranqüilizador. Alvin logo entendeu por que haviam feito a pausa. No meio da pequena multidão que já se reunira antes que o carro deslizasse para a aldeia, havia uma moça morena e tímida, que Hüvar lhe apresentou como Nyara. Mostraram-se obviamente muito satisfeitos por se rever, e Alvin invejou-lhes a evidente felicidade causada pelo breve encontro. Hüvar estava claramente dividido entre seus deveres como guia e o desejo de não ter outra companhia senão a de Nyara, Alvin salvou-o do dilema saindo sozinho para um giro de exploração. Não havia muito o que ver na aldeia, mas aproveitou bem o passeio. Ao reiniciarem a viagem, estava ansioso por fazer muitas perguntas a Hüvar. Não imaginava como poderia ser o amor numa sociedade telepática e, após um intervalo discreto, abordou o assunto. Hüvar dispôs-se de bom grado a explicar-lhe tudo, embora ele suspeitasse haver obrigado o amigo a interromper uma prolongada e terna despedida mental. Em Lys, ao que parecia, todo amor começava com contato mental, podendo-se passar meses ou anos antes que um casal efetivamente se encontrasse. Assim, explicou Hüvar, era impossível haver falsas impressões, bem como fraudes de ambas as partes. Duas pessoas cujas mentes estavam abertas uma para a outra não podiam ocultar segredos. Se uma delas tentasse, a outra logo saberia que alguma coisa estava sendo escondida. Apenas as mentes muito amadurecidas e equilibradas podiam-se permitir tal honestidade, apenas o amor baseado numa absoluta falta de egoísmo poderia sobreviver a ela. Alvin entendia bem que tal amor seria mais profundo e mais rico do que qualquer coisa que sua própria gente podia conhecer, seria tão perfeito, na verdade, que julgou difícil acreditar que pudesse realmente ocorrer… Entretanto, Hilvar garantiu que ocorria, seus olhos brilharam e ele perdeu-se em devaneios quando Alvin o incitou a ser mais explícito. Havia certas coisas que não podiam ser comunicadas, ou uma pessoa as conhecia, ou não conhecia. Alvin chegou tristemente à conclusão de que jamais seria capaz de atingir o tipo de mútuo entendimento que aquelas felizes criaturas haviam transformado em base de suas vidas. Quando o carro emergiu da savana, que terminou abruptamente, como se houvesse sido traçada uma fronteira além da qual a relva não poderia crescer, havia uma zona de colinas baixas e arborizadas à frente deles. Tratava-se de um posto avançado, explicou Hilvar, da principal fortaleza que protegia Lys. As verdadeiras montanhas achavam-se mais além, mas para Alvin até mesmo aquelas diminutas colinas representaram uma imponente e colossal visão. O carro deteve-se num vale estreito e abrigado, ainda banhado pelo calor e pela luz do poente. Hilvar olhou para Alvin com uma espécie de franqueza direta que, poder-se-ia jurar, era inteiramente despida de qualquer má fé. — É aqui que começamos a caminhar — disse jovialmente, pondo-se a descarregar equipamentos do veículo. — Não podemos mais continuar de carro. Alvin olhou as colinas que os circundavam, e depois o assento confortável em que estivera viajando. — Não há maneira de contorná-las? — perguntou sem muitas esperanças. — Claro que há — replicou Hilvar. — Mas não vamos contorná-las. Vamos subir ao alto, o que é muito mais interessante. Vou pôr o carro no automático, de modo que ele estará esperando por nós quando descermos do outro lado. Resolvido a não ceder sem luta, Alvin fez uma tentativa final. — Daqui a pouco estará escuro — protestou. — Não conseguiremos percorrer todo o caminho antes do pôr-do-sol. — Exatamente — anuiu Hilvar, arrumando pacotes e equipamentos com incrível rapidez. — Vamos passar a noite no topo e terminar a viagem de manhã. Alvin reconheceu a derrota. O equipamento que estavam transportando parecia imenso, mas, embora volumoso, não pesava praticamente nada. Tudo estava embalado em recipientes polarizadores de gravidade que neutralizavam o peso, deixando apenas a força de inércia. Ao mesmo tempo que se movia em linha reta, não tinha consciência de estar transportando carga alguma. O manejo daqueles recipientes exigia certa prática, pois se tentava uma súbita mudança de direção, a carga parecia adquirir personalidade obstinada e fazia todo o possível para mantê-lo em seu rumo original, até que ele vencesse o impulso. Quando Hilvar terminou de ajustar todas as correias e verificou que estava tudo em ordem, começaram a caminhar lentamente pelo vale. Alvin olhou para trás com tristeza, vendo o carro terrestre voltar atrás e desaparecer de vista, imaginou quantas horas transcorreriam antes que ele pudesse repousar mais uma vez em seu conforto. Não obstante, era muito agradável a escalada, com o Sol suave às suas costas e em meio a paisagens magníficas. Havia uma trilha parcialmente obliterada que desaparecia de vez em quando, mas que Hilvar era capaz de seguir mesmo quando Alvin não percebia o menor sinal dela. Perguntou a Hilvar quem fizera a trilha, e soube que havia muitos animais pequenos naquelas colinas — alguns solitários, outros vivendo em comunidades primitivas que repetiam muitos aspectos da civilização humana. Alguns deles haviam descoberto, ou lhes fora ensinado, o uso de ferramentas e fogo. Jamais ocorreu a Alvin que tais criaturas pudessem deixar de ser benignas, tanto ele como Hilvar consideravam a idéia indiscutível, pois já estavam distantes as eras em que qualquer coisa houvesse contestado a supremacia do Homem na Terra. Fazia meia hora que subiam quando Alvin observou o murmúrio fraco e reverberante no ar em torno. Não podia detectar seu rumo, mas não parecia provir de nenhuma direção determinada. Nunca cessava e tornava-se cada vez mais forte à medida que a paisagem se abria em torno deles. Teria perguntado a Hilvar do que se tratava, mas tornara-se necessário poupar o fôlego para outras finalidades. Alvin tinha saúde perfeita. Na verdade, em toda sua vida nunca passara por um momento de doença. Contudo, o bem-estar físico, por mais importante e necessário que fosse, não bastava para a tarefa que enfrentava agora. Ele possuía o corpo, mas não a habilidade necessária. As passadas largas de Hilvar, a força serena que o fazia superar todas as encostas, enchiam Alvin de inveja — e de determinação de não ceder enquanto fosse capaz de ainda pôr um pé diante do outro. Sabia perfeitamente que Hilvar testava-o e não se aborrecia com isso. Tratava-se de um jogo sem malícia e ele entrou no espírito da brincadeira, ainda que a fadiga se espalhasse lentamente por seus membros. Hilvar sentiu pena dele ao terem completado dois terços da escalada, descansaram por um momento apoiados num barranco que dava para oeste, deixando seus corpos serem banhados pelo Sol suave. O trovão palpitante era fortíssimo agora, e embora Alvin lhe perguntasse o que era aquilo, Hilvar recusou-se a responder. Disse que a surpresa ficaria estragada se Alvin soubesse o que esperava ao fim da subida. Estavam agora correndo contra o Sol, mas felizmente o resto da ascensão era suave e serena. As árvores que cobriam a parte inferior do monte já rareavam, como se cansadas demais para lutar contra a gravidade, e nas últimas centenas de metros o chão era atapetado de relva curta e espinhenta, sobre a qual a caminhada era agradabilíssima. Hilvar deu vazão a um repentino assomo de energia e pôs-se a correr. Alvin resolveu ignorar o desafio, na verdade, não lhe restava outra alternativa. Bastava-lhe poder continuar, a duras penas, e quando atingiu Hilvar caiu exausto a seu lado. Só quando recuperou o fôlego é que pôde apreciar o panorama que se abria a seus pés, e ver a origem do trovão incessante que agora enchia o ar. Dali em diante a encosta precipitava-se ingrememente, desde o topo do monte — tão íngreme, na verdade, era a descida, que logo se tornava um penhasco quase vertical. E da extremidade mais distante da face do penhasco saltava uma possante fita de água, que se curvava no espaço para rebentar nos rochedos trezentos metros abaixo. Ali, perdia-se numa névoa reluzente de vapor, enquanto das profundezas subia aquele trovão incessante e ribombante, reverberando em ecos surdos nas colinas do outro lado. A maior parte da cachoeira estava agora envolta em sombras, mas a luz solar, caindo obliquamente na montanha, ainda iluminava a terra lá embaixo, adicionando um toque final de magia à cena — pois, estremecendo, numa evanescente beleza sobre a base daquela espécie de catadupa, via-se o último arco-íris que restava na Terra. Hilvar abriu os braços, num gesto que abarcava todo o horizonte. — Daqui — disse, erguendo a voz para que pudesse ser ouvido sobre o troar da cachoeira — você pode contemplar toda Lys. Alvin podia realmente acreditar nele. Ao norte, estendiam-se quilômetros e quilômetros de florestas, quebradas aqui e ali por clareiras, campos, e pelos fios tortuosos de uma centena de rios. Oculta em algum ponto do vasto panorama estava a vila de Airlee, mas era inútil tentar achá-la. Alvin imaginou ter um vislumbre do lago pelo qual havia passado ao chegar a Lys, mas chegou à conclusão de que seus olhos o enganavam. Ainda mais ao norte, árvores e clareiras se perdiam num tapete mosqueado de vários tons de verde, interrompido ocasionalmente por linhas de serras. E ainda mais além, até onde a vista alcançava, jaziam as montanhas que separavam Lys do deserto, como um banco de nuvens distantes. A leste e oeste, a vista pouco diferia, mas ao sul as montanhas pareciam estar a apenas alguns quilômetros. Alvin as via com toda clareza, e percebeu que se elevavam muito mais alto do que o pequeno pico sobre o qual se encontravam. As montanhas estavam separadas deles por uma região muito mais selvagem do que aquela pela qual tinham acabado de passar. De algum modo indefinível, parecia deserta e vazia, como se o Homem não houvesse ali habitado por muitos anos. Hilvar respondeu à pergunta silenciosa de Alvin. — No passado, essa parte de Lys era habitada — disse. — Não sei por que foi abandonada e talvez um dia voltemos a viver nela. Hoje, só os animais habitam ali. De fato, em parte alguma se via sinais de vida humana — nenhum indício das clareiras e rios disciplinados que proclamavam a presença do Homem. Somente em um ponto se percebia indicação de que ele jamais habitara a área, pois a muitos quilômetros dali uma ruína branca se projetava sobre o teto da floresta como uma presa quebrada. Em todos os demais lugares, a floresta voltara a dominar. O Sol já caía bem abaixo das muralhas ocidentais de Lys. Por um momento grandioso, as montanhas distantes como que arderam entre labaredas douradas, depois, a terra que guardavam foi rapidamente tragada pelas sombras e a noite chegou. — Devíamos ter feito isso antes — disse Hilvar, prático como sempre, ao começar a descarregar o equipamento. — Dentro de cinco minutos estará escuro como breu… e frio também. Curiosas peças de equipamento começaram a cobrir a relva. De um tripé esguio saía uma haste vertical, tendo na extremidade superior uma protuberância periforme. Hilvar elevou a haste até a pêra estar um pouco acima de suas cabeças, e fez algum sinal mental que Alvin não pôde interceptar. Imediatamente, o pequeno acampamento inundou-se de luz, fazendo fugir as trevas. Da pêra emanava não somente luz, como também calor, pois Alvin sentia um brilho acariciante e suave que parecia penetrar até seus ossos. Carregando o tripé com uma das mãos, e levando a mochila na outra, Hilvar desceu a encosta enquanto Alvin se apressava a acompanhá-lo, fazendo todo o possível para se manter dentro do círculo de luz. Por fim, Hilvar fixou o acampamento numa pequena depressão a algumas centenas de metros abaixo dali e começou a montar o resto do equipamento. Em primeiro lugar, surgiu um grande hemisfério de material rígido e quase invisível que os encobriu completamente, protegendo-os da brisa fria que havia começado a soprar do alto do monte. A cúpula parecia ser gerada por uma pequena caixa retangular que Hilvar dispôs no chão e depois deu mostras de ignorar totalmente, chegando ao ponto de soterrá-la sob o restante das coisas. Talvez essa caixa projetasse também as camas de campanha confortáveis e semitransparentes em que Alvin repousou. Era a primeira vez que ele via mobiliário ser materializado em Lys, onde lhe parecia que as casas eram terrivelmente atulhadas de artefatos permanentes que melhores serviços prestariam se mantidos fora da vista nos bancos de memória. A refeição que Hilvar tirou de outro de seus receptáculos era também o primeiro alimento sintético que Alvin havia experimentado desde sua chegada a Lys. De algum orifício na cúpula sobre suas cabeças soprava um vento contínuo, enquanto o conversor de matéria colhia matéria-prima para realizar seu milagre cotidiano. De modo geral, Alvin apreciava muito mais o alimento sintético. A maneira como o outro tipo era preparado lhe parecia incrivelmente anti-higiênica e, pelo menos, com os conversores de matéria ele sabia exatamente o que estava comendo… Acomodaram-se para fazer a refeição enquanto a noite se aprofundava ao redor deles e as estrelas começavam a nascer. Quando terminaram, estava completamente escuro fora do círculo de luz, e na fímbria daquele círculo Alvin podia ver vagos vultos se movendo — criaturas da floresta que saíam de seus esconderijos. De vez em quando, percebia o brilho da luz refletida em olhos pálidos que o miravam, mas, quaisquer que fossem, os animais não se aproximavam muito, de modo que não pôde ficar sabendo como eram exatamente. Tudo era muito pacífico, e Alvin sentia-se tomado de alegria. Por um momento, ficaram deitados, conversando sobre as coisas que tinham visto, sobre o mistério que prendia ambos em suas teias, e sobre as muitas coisas em que as duas culturas diferiam. Hilvar mostrava-se fascinado pelos Circuitos de Eternidade, que haviam posto Diaspar além do alcance do tempo, e Alvin achava difícil responder algumas de suas perguntas. — O que não entendo — disse Hilvar — é como os planejadores de Diaspar asseguraram que nada jamais aconteceria de errado com os circuitos de memória. Você me diz que as informações que definem a cidade e todas as pessoas que vivem ali são conservadas como padrões de carga elétrica no interior de cristais. Bem, os cristais durarão eternamente… mas, e todos os circuitos que estão ligados a eles? Não existem defeitos de nenhuma espécie? — Fiz a mesma pergunta a Khedron e ele me respondeu que os Bancos de Memória são praticamente triplicados. Qualquer um dos três bancos pode manter a cidade, e se alguma coisa sair errada num deles, os outros dois automaticamente corrigem o defeito. Só se o mesmo problema acontecesse simultaneamente em dois dos bancos é que haveria dano permanente… e as chances de isso acontecer são infinitesimais. — E como é que se mantém a relação entre o padrão armazenado nas unidades de memória e a estrutura real da cidade? Entre o plano, por assim dizer, e a coisa que ele descreve? Isso era uma pergunta que estava inteiramente fora da capacidade de Alvin. Ele sabia que a resposta envolvia tecnologias que se relacionavam com a manipulação do próprio espaço — mas o modo como se poderia encerrar um átomo na posição definida por dados armazenados em outro lugar era coisa que não saberia nem começar a explicar. Tomado de súbita inspiração, apontou para a cúpula invisível que os protegia da noite. — Diga-me como é que esse teto sobre nossas cabeças é criado por aquela caixa sobre a qual você está sentado — respondeu — e depois eu lhe explico como funcionam os Circuitos de Eternidade. Hilvar riu. — Acho que é uma comparação justa. Você teria de perguntar a um dos técnicos de teoria de campos para entender isso. Eu não seria capaz de explicar. A resposta fez Alvin pensar. Então, havia ainda em Lys homens que entendiam o funcionamento de máquinas, o mesmo não se poderia dizer de Diaspar. Continuaram a conversar e discutir, até que Hilvar disse: — Estou cansado. E você?… Vai dormir? — Alvin esfregou o corpo ainda fatigado. — Gostaria — confessou —, mas acho que não conseguirei. Dormir ainda me parece um costume estranho. — É muito mais do que um costume — disse Hilvar sorrindo. — Eu soube que no passado era uma necessidade para todos os seres humanos. Ainda gostamos de dormir pelo menos uma vez por dia, mesmo se por poucas horas. Durante o sono o corpo se revigora, e a mente também. Ninguém dorme nunca em Diaspar? — Só de raro em raro — disse Alvin. — Jeserac, meu tutor, já dormiu uma ou duas vezes, depois de ter feito algum esforço mental excepcional. Um corpo bem constituído não deve ter necessidade desses períodos de descanso. Eliminamos isso há milhões de anos. Mas, enquanto pronunciava essas palavras perpassadas de jactância, seus atos as desmentiam. Alvin sentiu um cansaço como jamais havia experimentado, parecia-lhe que se espalhava a partir dos calcanhares e das coxas, fluindo depois por todo o corpo. Não havia nada de desagradável na sensação… muito pelo contrário. Hilvar o observava com um sorriso divertido, e a Alvin ainda sobravam faculdades suficientes para imaginar que seu companheiro talvez estivesse exercendo sobre ele algum de seus poderes mentais. Mesmo que assim fosse, não faria nenhuma objeção. A luz que fluía da pêra de metal sobre suas cabeças transformou-se num brilho baço, mas o calor que ela irradiava continuou igual. O último bruxuleio de luz registrou na mente de Alvin um fato curioso sobre o qual teria de fazer perguntas na manhã seguinte. Hilvar havia-se despedido e, pela primeira vez, Alvin viu até que ponto os dois ramos da raça humana haviam divergido. Algumas das mudanças eram meramente de ênfase e proporção, as outras, como a genitália externa e a presença de dentes, unhas e pêlos, eram mais básicas. Contudo, o que mais o espantou foi o curioso buraquinho na boca do estômago de Hilvar. Alguns dias mais tarde, ao lembrar-se subitamente do assunto, ouviu muitas explicações. Depois que Hilvar deixou bem claras as funções do umbigo, já havia pronunciado milhares de palavras e desenhado meia dúzia de diagramas. E tanto ele como Alvin tinham dado um largo passo no sentido de compreender a base de suas respectivas culturas. Capítulo XII A noite já ia alta quando Alvin despertou. Alguma coisa o havia perturbado, algum sussurro que se infiltrara até o fundo de sua mente, apesar do trovão incessante das cachoeiras. Sentou-se, em meio à escuridão, fazendo força para enxergar a terra oculta, enquanto, sustendo a respiração, escutava o ruído das águas e os sons mais suaves, mais fugidios, das criaturas da noite. Nada se via. A luz das estrelas era fraca demais para revelar os quilômetros de terras que se estendiam a dezenas de metros lá embaixo, apenas uma linha acidentada de noite mais escura, eclipsando as estrelas, revelava a presença das montanhas no horizonte meridional. Nas trevas, ao lado dele, Alvin percebeu que o companheiro rolava no leito e se sentava. — O que foi? — ele ouviu uma voz sussurrante. — Acho que ouvi um barulho. — Que tipo de barulho? — Não sei. Talvez seja apenas imaginação. Houve silêncio, enquanto dois pares de olhos perscrutavam o mistério da noite. Então, de repente, Hilvar pegou Alvin pelo braço. — Veja! — murmurou. A distância, em direção ao sul, brilhava um ponto solitário de luz, baixo demais no céu para ser uma estrela. Era de um branco brilhante, manchado de violeta e, enquanto olhavam, a luz começou a escalar o espectro de intensidade, até que a vista não suportou mais contemplá-la. Então, explodiu — e foi como se o relâmpago houvesse atingido a Terra. Por um breve momento, as montanhas e a terra que elas encerravam ficaram gravadas a fogo contra o negrume da noite. Muito tempo depois ouviu-se o fantasma de uma explosão longínqua, e nas matas lá embaixo um vento súbito agitou as árvores, morrendo rapidamente, e uma a uma as estrelas dispersadas voltaram ao céu. Pela segunda vez em sua vida, Alvin conheceu o medo. Não era uma sensação tão pessoal e iminente como a que o assaltara na câmara dos Caminhos Móveis, quando tomou a decisão que o levara a Lys. Talvez fosse mais um temor respeitoso, ele estava contemplando a face do desconhecido, e era como se já houvesse pressentido que para além das montanhas residisse alguma coisa que ele tinha de ver de perto. — O que foi isso? — cochichou por fim. — Estou tentando descobrir — disse Hilvar. calando-se outra vez. Alvin adivinhou o que ele estava fazendo, e não interrompeu mais a investigação silenciosa do amigo. Daí a pouco Hilvar soltou um pequeno suspiro de desapontamento. — Todos estão dormindo — disse. — Não há ninguém que pudesse informar. Teremos de esperar até de manhã, a menos que eu acorde um de meus amigos. E eu não gostaria de fazer isso a menos que se tratasse de alguma coisa realmente importante. Alvin pensou com seus botões o que é que Hilvar consideraria um assunto de real importância. Estava para sugerir, com uma ponta de sarcasmo, que aquilo justificava interromper o sono de alguém. Mas antes que pudesse formular o comentário, Hilvar voltou a falar. — Acabei de me lembrar — ele disse, num tom de desculpas. — Já faz muito tempo que não venho aqui, e não tenho plena certeza de minha posição. Mas ali deve ser Shalmirane. — Shalmirane! Ainda existe? — Existe. E eu tinha quase esquecido. Seranis já me contou que a fortaleza fica nessas montanhas. Está em ruínas há muito tempo, é claro, mas talvez ainda more alguém lá. Shalmirane! Para aqueles filhos de duas raças, de cultura e história tão diferentes, aquele era realmente um nome mágico. Em toda a longa história da Terra, jamais houvera epopéia maior do que a defesa da Terra contra um invasor que havia conquistado todo o Universo. Ainda que os fatos reais estivessem irremediavelmente perdidos nas névoas que se haviam reunido tão densamente em torno das Eras do Alvorecer, as lendas nunca tinham sido esquecidas e perdurariam enquanto existisse o Homem. A voz de Hilvar soou novamente na escuridão. — A gente do sul poderia contar mais coisas. Tenho alguns amigos lá. Vou chamá-los pela manhã. Alvin mal o escutava, estava imerso em seus próprios pensamentos, tentando recordar tudo quanto ouvira falar de Shalmirane. Era pouca coisa, na verdade. Depois de todo aquele imenso lapso de tempo, ninguém podia separar a verdade da lenda. Tudo que se sabia ao certo era que a batalha de Shalmirane assinalou o fim das conquistas do Homem e o começo de seu longo declínio. Entre aquelas montanhas, pensou Alvin, poderia estar a resposta para todos os problemas que o atormetaram por tantos anos. — Quanto tempo levaríamos para chegar à fortaleza? — perguntou a Hilvar. — Nunca estive lá, mas é muito mais longe do que eu pretendia ir. Duvido que possamos fazer a viagem em um dia. — Não podemos usar o carro terrestre? — Não. O caminho segue pelas montanhas e nenhum carro pode viajar por ali. Alvin meditou. Estava cansado, tinha os pés doloridos e os músculos de suas coxas ainda doíam do esforço a que não estava habituado. Era muito tentador deixar aquilo para outra ocasião. No entanto, talvez não houvesse outra ocasião… Sob a luz baça das estrelas, das quais não poucas haviam morrido desde a construção de Shalmirane, Alvin, após lutar com seus pensamentos, tomou sua decisão. Nada se havia modificado, as montanhas retomaram sua vigília sobre a terra adormecida. Mas um ponto crítico na história da Terra chegara e desaparecera, e a raça humana encaminhava-se para um futuro novo e estranho. Alvin e Hilvar não dormiram mais, levantando acampamento logo ao romper da aurora. A colina estava encharcada de orvalho, levando Alvin a maravilhar-se com a ourivesaria refulgente que fazia pender cada lâmina de relva e cada folha. O farfalhar da erva molhada fascinava-o, e olhando de volta para o alto do monte, via suas pegadas estendendo-se atrás de si como uma fita negra sobre o chão reluzente. O Sol tinha acabado de se erguer sobre a muralha oriental de Lys quando chegaram às cercanias da floresta. Ali, a natureza imperava livremente. Mesmo Hilvar parecia um tanto perdido entre as árvores gigantescas que bloqueavam a luz do Sol e lançavam sombras densas no leito da floresta. Felizmente, depois das cachoeiras, o rio corria numa linha reta demais para ser inteiramente natural, e acompanhando-o pela beirada conseguiam evitar a vegetação mais densa. Grande parte do tempo de Hilvar era dedicado a controlar Krif, que desaparecia de vez em quando na selva ou saía saltando loucamente sobre a água. Alvin, para quem tudo era tão novo, percebia que a floresta encerrava um fascínio ausente dos bosques menores e mais delicados na área setentrional de Lys. Poucas árvores eram iguais, a maioria se encontrava em vários estágios de involução e algumas haviam retornado, através das eras, quase às suas formas naturais originais. Muitas não eram obviamente da Terra — provavelmente não pertenceriam sequer ao sistema solar. Como sentinelas, pairando sobre as árvores menores, agigantavam-se sequóias descomunais, de noventa ou cento e vinte metros de altura. No passado haviam sido considerados os seres vivos mais antigos do planeta, e ainda eram um pouco mais velhas do que o Homem. O rio começava a alargar-se. A todo momento abria-se em pequenos lagos, pontilhados por ilhotas. Havia insetos ali, criaturas de colorido brilhante que pululavam à flor d'água. De certa feita, desobedecendo às ordens de Hilvar, Krif disparou para juntar-se a seus parentes distantes. Desapareceu instantaneamente numa nuvem de asas fulgurantes, em meio ao som de murmúrios enraivecidos. Logo depois, a nuvem se abriu e Krif voltou sobre a água, quase que rápido demais para ser visto. Depois disso, ficou sempre junto de Hilvar e não se afastou novamente. Ao cair da noite, começaram a perceber mais de perto as montanhas. O rio, até então guia fiel, fluía lentamente agora, como que se avizinhando do fim da jornada. Mas estava claro que não poderiam atingir as montanhas ao cair da noite, bem antes do ocaso, a floresta se tomara tão escura que impedia qualquer avanço. As grandes árvores ocultavam-se em poços de sombras, e um vento frio corria entre as ramagens. Alvin e Hilvar prepararam-se para passar a noite ao lado de uma sequóia gigantesca, cujos galhos mais altos ainda brilhavam ao Sol. Quando, finalmente, o Sol escondido desapareceu, a luz continuou ainda sobre as águas saltitantes. Os dois exploradores — pois era assim que se consideravam agora, e realmente o eram — deitaram-se em meio à escuridão, olhando o rio e pensando em tudo que haviam visto. Daí a alguns momentos, Alvin sentiu novamente correr por ele aquela sensação de deliciosa sonolência que havia conhecido pela primeira vez na noite anterior, e de bom grado resignou-se ao sono. Dormir era algo que podia ser desnecessário na vida sem esforços de Diaspar, mas era bem vindo ali. No último momento, antes da inconsciência apoderar-se dele, deu consigo imaginando quem teria sido a última pessoa a caminhar por ali e há quanto tempo isso acontecera. O Sol já ia alto quando deixaram a floresta e se viram finalmente diante das muralhas montanhosas de Lys. À frente deles, o chão erguia-se ingrememente até o céu, em ondas de rochedos estéreis. Ali, o rio chegava a seu fim, tão espetaculoso quanto no início, pois o chão abria-se em seu caminho e ele desaparecia de vista num turbilhão de águas. Alvin imaginou o que lhe acontecia, e por quais cavernas subterrâneas ele viajava, antes de emergir novamente à luz do dia. Talvez ainda existissem os oceanos perdidos da Terra, nas profundezas da treva eterna, e aquele rio antigo ainda atendesse ao chamado e fosse atraído para o mar. Por um momento, Hilvar contemplou o turbilhão e a terra acidentada. Depois apontou para a abertura entre as montanhas. — Shalmirane fica naquela direção — disse, confiante. Alvin não perguntou como ele sabia, supôs que Hilvar tivesse feito contato mental com um amigo a muitos quilômetros dali, e que a informação houvesse sido transmitida silenciosamente. Não demoraram muito a chegar à abertura, e depois de a transporem «viram-se diante de um curioso planalto, com encostas muito suaves. Alvin já não sentia qualquer cansaço, nem medo — apenas uma expectativa tensa e uma sensação de aventura próxima. Não imaginava o que estava por descobrir. Mas não tinha dúvida alguma de que descobriria alguma coisa. Ao se aproximarem do cume, a natureza do terreno alterou-se abruptamente. Mais abaixo, as encostas tinham consistido em pedra porosa, vulcânica, amontoada aqui e ali em grandes pilhas de escória. Agora a superfície transformava-se subitamente em lençóis duros e vítreos, lisos e traiçoeiros, como se a rocha houvesse escorrido em rios fundidos encosta abaixo. A borda do planalto estava quase a seus pés. Hilvar alcançou-o primeiro, e daí a alguns segundos Alvin chegou, permanecendo sem voz a seu lado. Estavam de pé sobre a orla, não do planalto que esperavam, mas de uma depressão colossal, de quase um quilômetro de profundidade e quase cinco de diâmetro. À frente deles, o terreno precipitava-se para baixo, aplainando-se lentamente no fundo do vale e levantando-se outra vez, cada vez mais ingrememente, até a orla do outro lado. A parte mais baixa da depressão era ocupada por um lago circular, cuja superfície estremecia continuamente, como se agitada por ondas incessantes. Conquanto exposta à luz radiante do Sol, toda aquela gigantesca depressão era negra como ébano. O material que formava a cratera era desconhecido por Alvin e Hilvar, mas era negro como a rocha de um mundo que jamais houvesse conhecido um sol. E isso não era tudo, pois debaixo de seus pés, e circundando toda a cratera, havia, sem emendas, uma faixa de metal com algumas dezenas de metros, manchada pelo tempo incomensurável mas ainda livre de qualquer sinal de corrosão. Ao habituarem a vista à cena alienígena, Alvin e Hilvar perceberam que o negrume da depressão não era tão absoluto como haviam pensado. Aqui e ali, tão fugazes que não podiam vê-las senão indiretamente, minúsculas explosões de luz pontilhavam as paredes de ébano. Ocorriam irregularmente, sumindo tão logo nasciam, como os reflexos de estrelas num mar encapelado. — É maravilhoso! — arfou Alvin. — Mas o que é isso? — Parece uma espécie de refletor. — Mas é tão negro! — Apenas para os nossos olhos, lembre-se. Não sabemos que radiações eles usavam. — Mas certamente deve haver mais do que isso! Onde fica a fortaleza? Hilvar apontou para o lago. — Olhe com cuidado — disse. Alvin fitou a superfície trêmula do lago, tentando sondar os segredos que se ocultavam em suas profundezas. A princípio, nada pôde ver, depois, nos baixios perto da margem, divisou uma apagada retícula de luzes e sombras. Pôde acompanhar o desenho em direção ao centro do lago, até que as águas mais profundas esconderam todos os detalhes. O lago escuro havia tragado a fortaleza. Em seu fundo jaziam as ruínas de edifícios outrora poderosos, vencidos pelo tempo. No entanto, nem todos tinham sido submergidos, pois na extremidade mais distante da cratera Alvin notava agora pilhas de pedras amontoadas, bem como grandes blocos que no passado deviam ter feito parte de paredes sólidas. As águas as lambiam, mas ainda não se haviam erguido o suficiente para completar sua vitória. — Vamos rodear o lago — disse Hilvar, falando baixo, como se a desolação majestosa houvesse infundido um respeitoso temor em sua alma. — Talvez encontremos alguma coisa nas ruínas daquele lado. Nas primeiras centenas de metros, as paredes da cratera eram tão lisas e íngremes que se tornava quase impossível manter o equilíbrio, mas após certo tempo chegaram às encostas mais suaves e puderam caminhar sem dificuldade. Perto da borda do lago, a lisa superfície de ébano estava oculta por uma fina camada de solo, ali depositado certamente pelos ventos de Lys durante eras sem conta. A cerca de quatrocentos metros dali, titânicos blocos de pedra amontoavam-se uns sobre os outros, como brinquedos abandonados de uma criança gigantesca. Aqui, ainda se podia reconhecer um pedaço de uma muralha maciça, ali, dois obeliscos esculpidos marcavam um lugar que fora uma entrada imponente. Por toda parte cresciam musgos e trepadeiras, bem como minúsculas árvores raquíticas. Até o vento era abafado. Foi assim que Hilvar e Alvin chegaram às ruínas de Shalmirane. Contra aquelas muralhas, e contra as energias que abrigavam, forças capazes de transformar um mundo em poeira haviam sido lançadas em meio a chamas e trovões, sendo inteiramente derrotadas. Outrora aqueles céus pacíficos haviam ardido com fogueiras arrancadas dos núcleos de sóis, e as montanhas de Lys deviam ter balouçado como coisas vivas sob a fúria de seus senhores. Ninguém jamais lograra capturar Shalmirane. Agora, porém, a fortaleza, o reduto inexpugnável, havia finalmente sucumbido — capturada e destruída pelas pacientes gavinhas da era, por gerações de vermes cegamente obstinados e pelas águas do lago em lenta ascensão. Subjugados por sua majestade, Alvin e Hilvar caminharam em silêncio em direção às ruínas colossais. Entraram na sombra de uma muralha destruída e seguiram por um desfiladeiro onde as montanhas de pedra se haviam rendido. Diante deles estendia-se o lago, e daí a pouco estavam bem junto dele, as águas batendo-lhes nos pés. Ondas minúsculas, com menos de um palmo de altura, quebravam incessantemente sobre a praia estreita. Hilvar foi o primeiro a falar, sua voz tinha um quê de insegurança que levou Alvin a olhá-lo com súbita surpresa. — Há alguma coisa aqui que não compreendo — disse lentamente. — Se não há vento, o que causa essas marolas? A água deveria estar perfeitamente imóvel… Antes que Alvin pudesse pensar em alguma resposta, Hilvar abaixou-se, virou a cabeça de lado e mergulhou o ouvido direito na água. Alvin perguntou a si mesmo o que pretenderia ele descobrir em posição tão estranha, depois percebeu que estava escutando alguma coisa. Com certa repugnância — pois as águas escuras pareciam singularmente repelentes — seguiu o exemplo de Hilvar. O primeiro choque do frio durou apenas um segundo, quando passou, ele pôde ouvir, leve, mas clara, uma pulsação firme e bem ritmada. Era como se pudesse escutar, das profundezas do lago, as batidas de um coração gigante. Sacudiram a água de seus cabelos, olhando um para o outro com um único e silencioso pensamento. Nenhum deles se, atrevia a dizer o que estava pensando — que o lago era vivo. — Seria melhor — disse Hilvar daí a momentos — investigarmos essas ruínas e nos mantermos longe do lago. — Você acha que existe alguma coisa lá embaixo? — perguntou Alvin, apontando para as inexplicáveis marolas que continuavam a quebrar contra seus pés. — Poderia ser perigoso? — Nada que possua mente é perigoso — respondeu Hilvar. (Isso seria verdade? pensou Alvin. O que dizer dos Invasores?) — Não consigo detectar pensamentos de espécie alguma aqui, mas não acredito que estejamos sozinhos. É muito estranho. Voltaram lentamente para as ruínas da fortaleza, cada qual levando no espírito o som daquela pulsação firme e abafada. Parecia a Alvin que os mistérios se acumulavam e que, apesar de todos os seus esforços, ele se estava afastando cada vez mais da compreensão das verdades que buscava. Não era crível que as ruínas pudessem informar-lhes qualquer coisa, mas exploraram cuidadosamente as pilhas de entulho e os montes de pedras. Ali, talvez, estivessem os túmulos de máquinas sepultas — a maquinaria que havia realizado sua tarefa há tanto tempo. Seriam inúteis agora, pensou Alvin, se os Invasores retornassem. Por que nunca teriam voltado? Mas isso era ainda outro mistério. Ele já tinha enigmas suficientes para desvendar, e não havia por que procurar novos. A alguns metros do lago encontraram uma pequena clareira entre o refugo. Tinha sido recoberta por ervas, mas as plantas estavam agora enegrecidas e chamuscadas por um calor tremendo, desfazendo-se em cinzas quando se aproximaram, sujando-lhes as pernas com carvão. No centro da clareira havia um tripé de metal, firmemente preso ao chão e suportando um aro inclinado em seu eixo de maneira a apontar para um ponto no céu. A primeira vista, parecia que o arco nada continha, mas, quando Alvin o examinou mais detidamente, viu que estava cheio de uma névoa diáfana que atormentava a vista, por se localizar fugidiamente no limite do espectro visível. Era o brilho da força, e daquele mecanismo, não duvidava, viera a explosão de luz que os havia atraído a Shalmirane. Não se aventuraram a aproximar-se mais, observando a máquina de uma distância segura. Estavam no caminho certo, pensou Alvin. Só restava descobrir quem — ou o que — havia montado aquele aparelho ali, e com que finalidade. Aquele aro inclinado estava obviamente apontado para o Espaço. Seria o clarão que tinham visto alguma espécie de sinal? Essa idéia acarretava implicações assustadoras. — Alvin — disse Hilvar de repente, com a voz serena, mas transmitindo preocupação —, temos visitantes. Alvin girou nos calcanhares e deu consigo fitando um triângulo de olhos sem pálpebras. Essa, pelo menos, foi sua primeira impressão. Então, por trás dos olhos fixos, percebeu os contornos de uma máquina complexa, posto que pequena. Estava suspensa no ar, a pouca distância do chão, e não se assemelhava a nenhum robô que ele já tivesse visto. Assim que passou a surpresa inicial, sentiu-se inteiramente senhor da situação. Durante toda a sua vida dera ordens a máquinas, e o fato de não conhecer aquela não tinha importância. Aliás, jamais vira senão uma pequena parte dos robôs que atendiam às suas necessidades diárias em Diaspar. — Poder falar? — perguntou. Houve silêncio. — Há alguém controlando você? Ainda silêncio. — Vá embora. Venha cá. Levante-se. Caia. Nenhum dos pensamentos convencionais de controle produziu qualquer efeito. A máquina permaneceu desdenhosamente inativa. Isso sugeria duas possibilidades. Ou a máquina era obtusa demais para entendê-lo, ou, na verdade, era inteligente demais com seus próprios poderes de opção e volição. Nesse caso, deveria tratá-la como a um igual. Mesmo assim, poderia vir a subestimá-la — mas ela não teria nenhum ressentimento com relação a ele, pois a presunção não era vício de que as máquinas sofressem. Hilvar não pôde deixar de rir da óbvia perplexidade de Alvin. Estava para sugerir que ele assumisse a tarefa de comunicação, quando as palavras morreram em seus lábios. O sossego de Shalmirane foi despedaçado por um som pressago e totalmente inconfundível — o espadanar de água, provocado por um corpo de grandes dimensões que emergia do lago. Pela segunda vez desde que saíra de Diaspar, Alvin desejou estar em casa. Depois lembrou-se que não era com esse espírito que devia afrontar as aventuras, e começou a caminhar lenta, mas deliberadamente em direção ao lago. A criatura que emergia das águas escuras parecia uma paródia monstruosa, em matéria viva, do robô que ainda os submetia a seu silencioso escrutínio. Aquela mesma disposição eqüilateral dos olhos não podia ser coincidência, até mesmo a disposição dos tentáculos e dos pequenos membros articulados tinha sido reproduzida aproximadamente. Além disso, contudo, a semelhança cessava. O robô não possuía — evidentemente não tinha necessidade daquilo — a franja de palpos delicados e frágeis que batiam na água com um ritmo constante, as pernas múltiplas e curtas sobre os quais o animal se punha agora de pé na margem, ou as aberturas de ventilação, se eram isso, que agora se abriam e fechavam espasmodicamente no ar rarefeito. A maior parte do corpo da criatura permanecia na água, apenas os três metros superiores emergiam para um elemento que evidentemente lhe era estranho. O animal teria seus quinze metros de comprimento, e mesmo uma pessoa desprovida de qualquer conhecimento de biologia teria compreendido que havia algo inteiramente errado nele. Aparentava um extraordinário ar de improvisação e desenho descuidado, como se suas partes tivessem sido fabricadas sem muito planejamento e reunidas de qualquer maneira quando surgiu a necessidade de fazê-lo. Apesar de seu tamanho e de suas dúvidas iniciais, nem Alvin nem Hilvar sentiram o menor nervosismo assim que olharam mais claramente o habitante do lago. Havia naquela criatura um desajeitamento simpático que tornava de todo impossível considerá-la uma ameaça séria, mesmo que houvesse qualquer razão para se tê-la na conta de perigosa. A raça humana havia há muito tempo superado seu terror infantil de tudo o que apresentasse aspecto estranho. Tratava-se de um medo que não poderia sobreviver após o primeiro contato com raças extraterrestres amistosas. — Deixe-me tratar disso — disse Hilvar tranqüilamente. — Estou acostumado a lidar com animais. — Mas isso não é um animal — sussurrou Alvin. — Tenho certeza de que é inteligente, e é dono do robô. — Pode ser que o robô seja dono dele. De qualquer maneira sua mentalidade deve ser muito estranha. Ainda não consigo detectar nenhum indício de pensamento. Ei… O que está acontecendo? O monstro não modificara sua posição meio erguida na beira do lago, que parecia estar mantendo com considerável esforço. Mas no centro do triângulo dos olhos começara a formar-se uma membrana semitransparente — uma membrana latejante que logo começou a emitir sons audíveis. Eram ruídos graves e ressonantes que não criavam quaisquer palavras inteligíveis, conquanto fosse evidente que a criatura estava tentando falar com eles. Era doloroso assistir àquela tentativa desesperada de comunicação. Por vários minutos, a criatura esforçou-se em vão, então, de repente, como se percebesse que cometera um engano, a membrana palpitante contraiu-se, diminuiu de tamanho e começou a emitir sons de freqüência várias oitavas mais alta, até chegar ao espectro da fala normal. Começaram a formar-se palavras inteligíveis, ainda que misturadas com algaravias. Era como se a criatura estivesse recordando um vocabulário que conhecera há muito tempo mas que não tivera ocasião de usar durante muitos anos. Hilvar tentou dar a ajuda possível. — Podemos entendê-lo agora — disse, falando devagar e com toda clareza. — Podemos ajudá-lo? Vimos a luz que você fez. Ela nos trouxe aqui. de Lys. A palavra Lys. a criatura pareceu murchar, como se tomada de amargo desapontamento. — Lys — repetiu. Não conseguia pronunciar o «s» muito bem, de modo que a palavra saía mais parecida com «Lyd». — Sempre de Lys. Nunca vêm outras pessoas. Chamamos os Grandes, mas eles não atendem. — Quem são os Grandes? — perguntou Alvin, debruçando-se avidamente para frente. Os palpos delicados, em constante movimento, agitaram-se rapidamente em direção ao céu. — Os Grandes — disse a criatura. — Dos planetas do dia eterno. Eles virão. O Mestre nos prometeu. Isso não tornava as coisas mais claras. Antes que Alvin pudesse prosseguir seu interrogatório, Hilvar interveio novamente. Suas perguntas eram tão pacientes, tão compassivas, mas ainda assim tão penetrantes que Alvin achou melhor não interromper, apesar de sua ânsia. Não lhe agradava admitir que Hilvar lhe fosse superior em inteligência, mas não restavam dúvidas de que sua capacidade de lidar com animais estendia-se até aquele ser fantástico. Sobretudo, a criatura parecia reagir bem a ele. Sua fala fez-se mais clara à medida que a conversa prosseguiu e, ao passo que no começo mostrara brusquidão que raiava a rudeza, em breve começou a explicitar mais as respostas e até se dispôs a dar informações espontaneamente. Alvin perdeu consciência da passagem do tempo, enquanto Hilvar juntava os fios da história incrível. Não conseguiram descobrir toda a verdade, havia muita margem para conjecturas e debate. À medida que a criatura respondia às perguntas de Hilvar, com boa vontade cada vez maior, sua aparência começou a mudar. Escorregou de volta ao lago e as pernas curtas pareceram dissolver-se no restante do corpo, ocorrendo logo depois uma mudança ainda mais extraordinária: os três olhos imensos fecharam-se lentamente, reduziram-se a dimensões de cabeças de alfinetes e desapareceram. Era como se a criatura tivesse visto tudo quanto desejava ver por ora, não tendo, pois, mais necessidade de olhos, Outras alterações, mais sutis, continuavam a ocorrer, e por fim tudo que restava sobre a superfície da água era quase apenas o diafragma vibrante através do qual a criatura falava. Sem dúvida essa membrana se dissolveria na massa amorfa original de protoplasma quando não fosse mais necessária. Para Alvin, era difícil acreditar que pudesse haver inteligência numa forma tão instável — mas a maior surpresa ainda estava por acontecer. Conquanto parecesse evidente que a criatura não era de origem terrestre, passou-se algum tempo antes que Hilvar, apesar de todo seu conhecimento de biologia, compreendesse o tipo de organismo com que estavam lidando. Não se tratava de uma única entidade, em todos seus pronunciamentos, a criatura sempre se referia a si como «nós». Na verdade, não era outra coisa senão uma colônia de criaturas independentes, organizadas e controladas por forças desconhecidas. Animais de um tipo remotamente semelhante — as medusas, por exemplo — haviam florescido outrora nos grandes oceanos da Terra. Alguns deles eram de grandes dimensões, arrastando seus corpos translúcidos e as florestas de tentáculos peçonhentos por dezenas de metros. Mas nenhum desses seres havia atingido sequer o nível mais ínfimo de inteligência, além da capacidade de reagir a estímulos simples. Ali, porém, havia inteligência, conquanto vacilante e em degeneração. Jamais Alvin se esqueceria desse encontro — Hilvar juntando os pedaços da história do Mestre, enquanto o pólipo protéico tateava em busca de palavras pouco familiares, o lago escuro lambia as ruínas de Shalmirane e o robô trióptico os vigiava com olhos fixos. Capítulo XIII O Mestre viera à Terra em meio ao caos dos Séculos de Transição, época em que o Império Galáctico desmoronava, mas as linhas de comunicação entre as estrelas ainda não haviam sido completamente destruídas. Era de origem humana, ainda que nascido num dos planetas que giravam em torno dos Sete Sóis. Na juventude, fora obrigado a abandonar seu mundo nativo, do qual trazia ainda enorme saudade. Atribuía a expulsão a inimigos vingativos, mas a realidade é que sofria de um mal que, dentre todas as raças inteligentes do Universo, aparentemente só acometia o Homo Sapiens: a mania religiosa. Durante toda a primeira parte de sua história, a raça humana produzira uma infinidade de profetas, videntes, messias e evangelistas, que convenciam a si próprios e a seus seguidores de que só a eles tinham sido revelados os segredos do Universo. Alguns conseguiram fundar religiões que sobreviveram por muitas gerações e influenciaram bilhões de pessoas, outros eram esquecidos já antes de morrerem. A evolução da ciência, que com monótona regularidade refutava as cosmologias dos profetas e produzia milagres que eles não conseguiam igualar, acabou por destruir todos esses credos. Não destruiu, no entanto, o assombro, a reverência e a humildade que todos os seres inteligentes sentiam ao contemplar o universo maravilhoso em que se encontravam. O que perdeu a força, acabando por sumir, foram as incontáveis religiões, em que cada um de seus membros afirmava, com inacreditável arrogância, ser o repositório exclusivo da verdade, enquanto milhões de rivais ou precursores estavam errados. Não obstante, e apesar de nunca terem possuído qualquer poder real, assim que a humanidade atingiu um nível elementaríssimo de civilização, não cessaram de aparecer cultos isolados, e por mais fantásticos que fossem seus credos sempre logravam atrair prosélitos. Vicejavam particularmente em tempos de confusão e desordem, e não foi surpreendente que os Séculos de Transição assistissem a uma imensa explosão de irracionalidade. Quando a realidade era deprimente, os homens tentavam consolar-se com mitos. Muito embora tivesse sido expulso de seu próprio mundo, o Mestre não o deixou de mãos vazias. Os Sete Sóis tinham sido o centro do poder e da ciência da galáxia, e ele deve ter possuído amigos influentes. Realizara sua Hégira numa nave pequena mas veloz, reputada uma das mais rápidas jamais construídas. Para o exílio levara consigo outro dos produtos supremos da ciência galáctica — o robô que ainda agora vigiava Alvin e Hilvar. Ninguém jamais conhecera plenamente os talentos e as funções de tal máquina. De certa forma, com efeito, ela se tornara o alter ego do Mestre, sem ela, a religião dos Grandes provavelmente teria entrado em colapso após a morte do Mestre. Juntos, haviam errado pelas nuvens estelares, numa trilha tortuosa, que levou por fim, decerto não acidentalmente, ao mundo de onde os ancestrais do Mestre tinham surgido. Bibliotecas inteiras foram escritas sobre aquela saga, cada uma de tais obras inspirando uma legião de comentários, até que, por uma espécie de reação em cadeia, os volumes originais perderam-se sob montanhas de exegeses e notas. O Mestre havia se detido em muitos mundos, fazendo discípulos entre muitas raças. Sua personalidade deve ter sido imensamente poderosa para que inspirasse tanto humanos quanto não-humanos, não restando dúvidas de que religião de tão amplo apelo conteria muitas coisas excelentes e nobres. É provável que o Mestre tenha sido o mais bem-sucedido — como foi também o último — de todos os messias da humanidade. Nenhum de seus predecessores poderia ter conquistado tamanho número de apóstolos, nem seus ensinamentos foram difundidos por tamanhos intervalos de tempo e espaço. Que ensinamentos eram esses, nem Alvin nem Hilvar puderam descobrir com precisão. O grande pólipo fez o que lhe foi possível para transmiti-los, porém muitas das palavras que utilizava não tinham sentido, a criatura era dada ao hábito de repetir frases ou períodos inteiros com uma espécie de rápida entonação mecânica, o que tornava dificílimo acompanhá-la. Depois de algum tempo, Hilvar fez o possível para desviar a conversa desses atoleiros teológicos sem sentido, a fim de concentrar-se em fatos verificáveis. O Mestre e um grupo de seguidores mais fiéis haviam chegado à Terra às vésperas do desaparecimento das cidades, enquanto o porto de Diaspar ainda estava aberto ao tráfego das estrelas. Devem ter vindo em muitas espécies de naves, os pólipos, por exemplo, numa cheia das águas do mar que era seu berço. Não se sabe ao certo como o movimento foi recebido na Terra, ao menos, porém, não contou com oposição violenta, e após algumas perambulações fixou seu refúgio final entre as florestas e as montanhas de Lys. Ao fim de sua longa vida, os pensamentos do Mestre haviam-se voltado mais uma vez para o lar de onde fora exilado, e ele pediu aos amigos que o levassem para o ar livre, para que pudesse contemplar as estrelas. Havia aguardado, enquanto minguavam-lhe as forças, até a culminação dos Sete Sóis, e em sua agonia ainda pronunciou muitas palavras que viriam a inspirar mais bibliotecas de interpretação nas eras futuras. Repetidamente referiu-se aos «Grandes», que já haviam deixado este universo de espaço e matéria, mas que certamente regressariam um dia, exortando seus fiéis a permanecerem ali para saudá-los quando chegassem. Essas foram suas últimas palavras racionais. Depois disso, perdeu a consciência, mas pouco antes do fim emitiu uma frase que vinha sendo legada de geração a geração, atormentando as mentes de todos quantos a ouviam: «É lindo contemplar as sombras dos planetas da luz eterna». Dito isso, morreu. Quando da morte do Mestre, muitos de seus seguidores dispersaram-se, mas outros permaneceram fiéis a seus ensinamentos, que lentamente reelaboraram, no decurso das eras. A princípio, acreditavam que os Grandes, fossem quem fossem, cedo voltariam, mas essa esperança definhou com o passar dos séculos. Nesse ponto, a história se tomava das mais confusas, parecendo que a verdade e as lendas estavam deslindavelmente entrelaçadas. Alvin imaginava apenas gerações de fanáticos esperando algum grande acontecimento que não compreendiam e que deveria ter lugar em alguma desconhecida data futura. Os Grandes jamais retornaram. Lentamente, o vigor do movimento reduziu-se, à medida que a morte e a decepção lhe roubavam os discípulos. Os fiéis humanos, de vida curta, foram os primeiros a desaparecer, e havia algo de supremamente irônico no fato de que o último seguidor de um profeta humano fosse uma criatura inteiramente diferente do Homem. O grande pólipo tornara-se o último discípulo do Mestre por um motivo muito simples. Era imortal. Os bilhões de células individuais de que se compunha seu corpo morriam, mas antes que isso acontecesse elas se reproduziam. A longos intervalos, o monstro se desintegrava em suas miríades de células separadas, que seguiam seu próprio caminho e se multiplicavam por fissão, se o ambiente lhe fosse propício. Durante essa fase, o pólipo não existia como uma entidade consciente e inteligente — e isso lembrou a Alvin, irresistivelmente, o modo como os habitantes de Diaspar passavam milênios em estado latente nos bancos de memória da cidade. No devido tempo, alguma misteriosa força biológica reunia mais uma vez os componentes dispersos, iniciando o pólipo um novo ciclo de existência. Retornava à consciência e reconstituía suas vidas anteriores, ainda que muitas vezes imperfeitamente, pois um acidente podia lesar as células que transmitiam os delicados padrões da memória. Talvez nenhuma outra forma de vida pudesse manter a fé por tanto tempo num credo por todos esquecido havia um bilhão de anos. De certa forma, o grande pólipo era uma vítima indefesa de sua natureza biológica. Devido à sua imortalidade, não podia mudar, sendo obrigado a repetir eternamente o mesmo comportamento invariável. Em seus estágios ulteriores, a religião dos Grandes se identificara com uma veneração dos Sete Sóis. Ao se constatar que os Grandes se recusavam obstinadamente a aparecer, tinham sido feitas tentativas para enviar sinais a seu mundo remoto. Havia muito esses sinais se tinham tornado nada mais do que um ritual sem significação, mantido agora por um animal que se esquecera de aprender coisas novas e por um robô que nunca aprendera a esquecer. Quando aquela voz incomensuravelmente antiga morreu no ar silente, Alvin sentiu-se tomado de uma imensa sensação de compaixão. A devoção deslocada, a lealdade que havia mantido seu rumo inútil enquanto sóis e planetas se desfaziam… ele jamais teria acreditado em tal história se não tivesse visto a prova diante de seus olhos. Mais do que nunca, a extensão de sua ignorância entristeceu-o. Um minúsculo fragmento do passado fora iluminado por um lapso breve, mas agora as trevas fechavam-se novamente. A história do Universo devia ser um emaranhado desses fios desconexos, e ninguém poderia dizer quais eram importantes e quais eram banais. Aquele conto fantástico do Mestre e dos Grandes parecia semelhante a outra das inumeráveis lendas que de algum modo haviam sobrevivido às civilizações do Alvorecer. No entanto, a própria existência do grande pólipo, bem como do robô que silenciosamente os olhava, impossibilitava a Alvin classificar toda a história como uma fábula feita de ilusão sobre um fundamento de loucura. Qual seria a relação, perguntava-se ele, entre aquelas duas entidades, que embora tão diferentes, em todos os sentidos, haviam mantido sua extraordinária ligação no decorrer de tantas eras? Por algum motivo ele estava convicto de que o robô era de longe o mais importante dos dois. Fora o confidente do Mestre e ainda devia saber todos os seus segredos. Alvin olhou a máquina enigmática que ainda o olhava. Por que se recusava a falar? Que pensamentos estariam cruzando sua mente complicada e talvez exótica? No entanto, se fora construída para servir ao Mestre, decerto seu raciocínio não poderia ser de todo diferente, e ela deveria responder a ordens humanas. Ao pensar em todos os segredos que aquela máquina obstinadamente muda devia possuir, Alvin sentiu uma curiosidade que raiava a cobiça. Parecia-lhe injusto que tanto conhecimento se perdesse e ficasse oculto ao mundo, deveriam existir ali maravilhas maiores ainda do que as do Computador Central em Diaspar. — Por que seu robô não fala conosco? — ele perguntou ao pólipo, num momento em que Hilvar fez uma pausa momentânea. A criatura de certa forma esperava essa pergunta. — Contrariava os desejos do Mestre que o robô falasse com outra voz senão a dele, e sua voz agora se calou. — Mas ele lhe obedece? — Sim, o Mestre o pôs sob nossa responsabilidade. Podemos ver através de seus olhos, onde quer que ele vá. Ele vigia as máquinas que preservam este lago e mantêm as águas puras. Contudo, seria mais correto chamá-lo de nosso companheiro que de nosso servo. Alvin pensou a respeito do que ouvira. Uma idéia, ainda vaga e inarticulada, começava a formar-se em sua mente. Talvez fosse inspirada por puro desejo de conhecimento e poder, mais tarde, quando se lembrava daquele momento, nunca sabia dizer com certeza quais tinham sido suas motivações. Poderiam ser em grande parte egoístas, mas continham também um elemento de compaixão. Se estivesse a seu alcance, ele romperia aquela seqüência inútil, libertando essas criaturas de seu conto fantástico. Não sabia ao certo o que poderia ser feito com relação ao pólipo, mas talvez fosse possível curar o robô de sua insânia, e ao mesmo tempo liberar suas inestimáveis memórias acumuladas. — Tem certeza — ele disse lentamente, falando com o pólipo, mas visando ao robô — que está realmente cumprindo os desejos do Mestre permanecendo aqui? Ele desejava que o mundo conhecesse seus ensinamentos, mas essas doutrinas têm permanecido ocultas aqui em Shalmirane. Só por casualidade os descobrimos, e talvez haja outros que gostariam de ouvir a doutrina dos Grandes. Hilvar olhou-o de esguelha, obviamente incerto de suas intenções. O pólipo mostrou-se agitado, e os batimentos contínuos de seu aparelho respiratório cessaram por alguns instantes. Depois respondeu, numa voz um tanto fora de controle: — Já discutimos esse problema durante muitos anos. Mas não podemos sair de Shalmirane, de modo que o mundo deve vir a nós, por mais tempo que isso demore. — Tenho uma idéia melhor — disse Alvin animadamente. — É verdade que você talvez tenha de ficar aqui no lago, mas não há nenhum motivo para que seu companheiro não venha conosco. Ele poderá voltar a qualquer momento que desejar, ou quando você necessitar dele. Muitas coisas se modificaram desde que o Mestre morreu, coisas que vocês devem conhecer, mas que nunca poderão compreender se ficarem aqui. O robô em nenhum momento se moveu, mas na agonia de sua indecisão o pólipo mergulhou completamente sob a superfície da água, ali permanecendo vários minutos. Talvez estivesse mantendo uma discussão silenciosa com o companheiro, várias vezes começou a reemergir, mudou de idéia e voltou para a água. Hilvar aproveitou a oportunidade para trocar algumas palavras com Alvin. — Gostaria de saber o que você está tentando fazer — disse, meio de brincadeira, meio seriamente. — Ou você próprio não sabe? — É claro que sinto pena dessas pobres criaturas — respondeu Alvin. — Não acha que seria bondade libertá-las? — Acho, mas já aprendi o bastante sobre você para saber que o altruísmo não é uma de suas emoções dominantes. Você deve ter algum outro motivo. Alvin sorriu tristemente. Mesmo que Hilvar não lesse sua mente — e não havia motivo para supor que ele o fizesse —, sem dúvida era capaz de ler-lhe o caráter. — Sua gente possui extraordinários poderes mentais — ele respondeu, tentando desviar a conversa de terreno perigoso. — Acho que poderiam fazer alguma coisa pelo robô, senão por esse animal. — Falava baixinho, para não ser ouvido. Tal precaução talvez fosse inútil, mas, se o robô interceptou suas observações, não deu o menor sinal. Felizmente, antes que Hilvar pudesse levar o interrogatório adiante, o pólipo emergiu de novo. Nos últimos minutos tinha-se tornado bem menor e seus movimentos estavam mais desorganizados. Enquanto Alvin o olhava, um segmento de seu corpo complexo e translúcido soltou-se da parte principal e desintegrou-se em grande número de partes menores, que rapidamente desapareceram. A criatura estava começando a decompor-se diante de seus olhos. Quando voltou a falar, sua voz era insegura e de difícil compreensão. — Começando novo ciclo — ele conseguiu dizer, numa espécie de sussurro flutuante. — Não esperem rápido demais… restam somente minutos… estimulação grande demais… não haverá coesão por muito tempo. Alvin e Hilvar fitavam a criatura tomados de hórrida fascinação. Muito embora o processo a que estavam assistindo fosse natural, não era nada agradável ver uma criatura inteligente aparentemente em agonia. Sentiam também uma obscura sensação de culpa, tal sentimento era irracional, uma vez que não tinha grande importância o momento em que o pólipo começava um outro ciclo, mas eles compreenderam que o esforço e a excitação pouco comuns causados por sua presença era responsável por aquela metamorfose prematura. Alvin compreendeu que tinha de agir depressa, ou perderia sua oportunidade… talvez por alguns anos, ou por alguns séculos. — O que você decidiu? — perguntou ansiosamente. — O robô vem conosco? Houve uma pausa agônica enquanto o pólipo tentava obrigar seu corpo em dissolução a obedecer à sua vontade. O diafragma vocal agitou-se, mas nenhum som se ouviu. Depois, como num gesto desesperado de adeus, a criatura agitou debilmente seus palpos delicados e deixou-os voltar para a água, onde imediatamente se soltaram e saíram a flutuar pelo lago. Em questão de minutos a transformação se consumara. Não restava da criatura nenhum pedaço maior do que um dedo. A água estava cheia de flocos pequenos, esverdeados, que pareciam dotados de vida e mobilidade próprias, e que rapidamente desapareceram na vastidão das águas. As pequenas ondas da superfície haviam agora cessado inteiramente, e Alvin entendeu que a pulsação contínua que eles haviam escutado nas profundezas também já teria cessado. O lago estava morto novamente — ou assim parecia. Mas era uma ilusão, algum dia, as forças desconhecidas que nunca haviam deixado de cumprir seu dever no passado voltariam a atuar e o pólipo renasceria. Era um fenômeno estranho e maravilhoso, no entanto, seria muito mais estranho do que a organização do corpo humano, uma vasta colônia de células separadas e vivas? Alvin desperdiçou pouco esforço nessas especulações. Estava abatido por sua sensação de fracasso, ainda que jamais tivesse concebido claramente a meta a que visava. Uma oportunidade estupenda tinha sido perdida, uma oportunidade que talvez nunca mais voltasse. Olhou o lago pesarosamente, e passou-se algum tempo antes que sua mente registrasse a mensagem que Hilvar estava murmurando em seu ouvido. — Alvin — dizia o amigo baixinho —, acho que você obteve o que queria. Alvin girou rapidamente nos calcanhares. O robô, que até agora vinha flutuando, alheio a tudo, a distância, nunca se aproximando deles mais do que seis metros, havia-se movido em silêncio e estava agora a meio metro sobre sua cabeça. Os olhos imóveis, com largo ângulo de visão, não davam nenhuma indicação da direção de seu interesse. Provavelmente via todo o hemisfério à sua frente com igual clareza, mas Alvin tinha poucas dúvidas de que sua atenção estava concentrada nele. A máquina estava esperando para ver o que ele faria em seguida. De certa forma, pelo menos, ela estava agora sob seu controle. Poderia acompanhá-lo a Lys, talvez até mesmo a Diaspar — a menos que mudasse de idéia. A partir de agora, Alvin era o seu senhor provisório. Capítulo XIV A viagem de volta a Airlee durou três dias — em parte porque Alvin, por seus próprios motivos, não tinha nenhuma pressa de retornar. A exploração física de Lys fora agora suplantada por um projeto mais importante e mais excitante, ele estava aos poucos tomando contacto com a inteligência estranha e obcecada que se havia tornado seu companheiro. Alvin suspeitava que o robô estivesse tentando usá-lo para seus próprios fins. Que fins seriam esses era coisa que ele não podia imaginar, pois a máquina recusava-se teimosamente a falar. Por alguma razão própria — talvez medo de revelar em demasia os seus segredos — o Mestre devia ter bloqueado de modo muito eficiente seus circuitos de fala, e as tentativas feitas por Alvin para eliminar esses bloqueios fracassaram inteiramente. Falhavam até mesmo interrogatórios indiretos do tipo «Se você não disser nada, entenderei que quer dizer sim», o robô era inteligente demais para sucumbir a truques tão simples. Em outros aspectos, porém, cooperava mais. Obedecia ordens que não lhe exigissem falar ou fornecer informações. Depois de certo tempo, Alvin descobriu que podia controlá-lo, tal como dirigia os robôs de Diaspar, apenas pelo pensamento. Isso representou um grande avanço, e logo depois a criatura — era difícil pensar nela como uma simples máquina — baixou sua guarda ainda mais e permitiu a Alvin enxergar através de seus olhos. Não objetava, ao que parecia, a essas formas simples de comunicação, mas bloqueava todas as tentativas de conhecimento mais profundo. Ignorava totalmente a existência de Hilvar, não obedecia a nenhuma de suas ordens, e fechava a mente a qualquer sondagem. De início, desapontou um pouco Alvin, que nutria esperanças de que as forças mentais de Hilvar, mais fortes do que as suas, lhe permitissem abrir à força o tesouro das memórias escondidas. Só mais tarde percebeu a vantagem que representava possuir um servo que não obedecia a mais ninguém no mundo. Quem decididamente se opunha ao robô era Krif. Talvez imaginasse ter um rival, talvez desaprovasse, em princípio, qualquer coisa que voasse sem asas. Quando ninguém estava olhando, empreendia ataques diretos ao robô, que o deixava ainda mais enfurecido por não tomar o menor conhecimento desses ataques. Por fim, Hilvar conseguiu acalmá-lo, e na viagem para casa, no carro terrestre, ele deu mostras de haver-se conformado com a situação. Robô e inseto escoltavam o veículo, que deslizava silenciosamente por florestas e campos — cada um ao lado de seu respectivo senhor e fingindo que o rival não existia. Seranis já os esperava quando o carro entrou flutuando em Airlee. Era impossível, pensou Alvin, surpreender aquela gente. Suas mentes interconectadas mantinha-os em contacto com tudo que estava acontecendo em sua terra. Ficou imaginando como teriam reagido às suas aventuras em Shalmirane, pois era de presumir que todos em Lys já soubessem delas. Seranis parecia preocupada e mais insegura do que ele jamais a vira, e Alvin lembrou-se da opção que tinha de enfrentar agora. Na excitação dos últimos dias, quase a esquecera completamente. Não lhe apetecia gastar energias preocupando-se com problemas que ainda jaziam no futuro. Mas o futuro chegara, tinha de decidir em qual dos dois mundos desejava viver. A voz de Seranis estava perturbada quando começou a falar. Alvin teve a impressão súbita de que alguma coisa saíra errada com os planos de Lys a seu respeito. O que teria acontecido durante sua ausência? Teriam sido enviados emissários a Diaspar, a fim de influenciar a mente de Khedron… e falhado em sua missão? — Alvin — começou Seranis —, há muitas coisas que eu não lhe disse antes, mas das quais você precisa saber agora, a fim de compreender nossos atos. «Você conhece uma das razões para o isolamento de nossas duas raças. O temor dos Invasores, aquela sombra aziaga nas profundezas de toda mente humana, lançou seu povo contra o mundo e fez com que se perdesse em seus próprios sonhos. Aqui em Lys esse medo nunca foi tão grande, muito embora tenhamos suportado a força do ataque final. Tínhamos uma razão melhor para nossas ações, e o que fizemos foi feito de olhos abertos.» «Há muito tempo, Alvin, os homens procuraram a imortalidade e finalmente a conseguiram. Esqueceram-se de que um mundo que havia banido a morte deveria também banir o nascimento. O poder de estender a vida indefinidamente poderia trazer satisfação para o indivíduo, mas levava a raça à estagnação. Há muito tempo sacrificamos nossa imortalidade, mas Diaspar ainda mantém esse falso sonho. Foi por isso que nossos caminhos se separaram… e é por isso que nunca mais devem encontrar-se novamente.» Embora aquelas palavras de certa forma fossem esperadas, o golpe não parecia menor pelo fato de ter sido previsto. No entanto, Alvin recusava-se a aceitar o fracasso de todos os seus planos — por mais vagos que fossem — e apenas uma parte de seu cérebro estava escutando Seranis agora. Compreendia todas as suas palavras, delas tomando devida nota, mas a parte consciente de sua mente estava retraçando o caminho para Diaspar, tentando imaginar os obstáculos que poderia encontrar. Seranis estava visivelmente triste. Sua voz tinha quase um tom de súplica, e Alvin sabia que ela estava falando não somente a ele, mas também ao filho. Ela devia estar consciente da simpatia e do afeto que haviam nascido entre eles durante os dias que acabavam de passar juntos. Hilvar olhava a mãe atentamente enquanto ela falava, e a Alvin parecia que seu olhar transmitia não só preocupação mas também um traço de censura. — Não desejamos obrigá-lo a fazer qualquer coisa contra sua vontade, mas você certamente compreende o que aconteceria se nossos povos se encontrassem outra vez. Entre nossa cultura e a sua há um abismo tão grande como o que separava a Terra de suas antigas colônias. Pense apenas nisso, Alvin. Você e Hilvar são agora quase da mesma idade — mas tanto ele como eu estaremos mortos há séculos quando você ainda for jovem. E esta é apenas a primeira de uma série de vidas que você viverá. O aposento estava silencioso, tão silencioso que Alvin conseguia ouvir os gritos estranhos e lamurientos dos animais no campo, além da aldeia. Disse, quase num sussurro: — O que quer que eu faça? — Esperávamos que pudéssemos oferecer-lhe a alternativa entre permanecer aqui ou voltar para Diaspar, mas agora isso é impossível. Aconteceram coisas demais para que nos possamos permitir pôr a questão em suas mãos. Mesmo durante o breve tempo que você passou aqui, sua influência já foi altamente perturbadora. Não, não estou reprovando você. Tenho certeza de que não teve qualquer intenção malévola. Mas teria sido melhor deixar as criaturas que você encontrou em Shalmirane entregues a seu próprio destino. — E quanto a Diaspar… — Seranis teve um gesto de enfado. — Gente demais sabe para onde você foi. Não agimos a tempo. O que é mais sério é que o homem que ajudou você a descobrir Lys desapareceu. Nem o Conselho de Diaspar nem nossos agentes conseguem encontrá-lo, de modo que ele continua a ser um perigo potencial para nossa segurança. Talvez o surpreenda que eu lhe conte tudo isso, mas posso fazê-lo com toda segurança. Tenho a impressão de que só temos uma opção, temos de mandá-lo de volta a Diaspar com um falso conjunto de memórias. Essas memórias foram construídas com muito cuidado, e quando você chegar de volta à sua casa, não saberá nada a nosso respeito. Acreditará que teve aventuras enfadonhas e perigosas em sinistras cavernas subterrâneas, onde os tetos ruíam continuamente às suas costas, e onde só se mantinha vivo comendo ervas repugnantes e bebendo água em fontes ocasionais. Pelo resto de sua vida, você há de acreditar ser essa a verdade, e todos em Diaspar aceitarão sua história. Não haverá, portanto, nenhum mistério que atraia futuros exploradores, pensarão que sabem tudo quanto há para saber a respeito de Lys. Seranis fez uma pausa e olhou para Alvin com expressão de ânsia. — Deploramos muitíssimo que isso seja necessário, e pedimos perdão enquanto você ainda se recorda de nós. Você pode não aceitar nosso veredicto, mas temos conhecimento de muitos fatos que lhe estão ocultos. Pelo menos você não terá arrependimentos, pois acreditará que descobriu tudo que há para ser descoberto. Alvin imaginou se seria mesmo verdade. Não tinha certeza de que algum dia viesse a aceitar a rotina da vida em Diaspar, mesmo depois de haver-se convencido de que além de suas muralhas nada existia de importante. Além disso, não tinha nenhuma intenção de pôr a questão à prova. — Quando quer que eu sofra esse… tratamento? — perguntou. — Imediatamente. Estamos prontos. Abra a sua mente para mim, como fez antes, e não saberá nada até se encontrar de volta em Diaspar. Alvin permaneceu em silêncio por algum tempo. Depois, disse serenamente: — Eu gostaria de me despedir de Hilvar. Seranis assentiu. — Compreendo. Deixarei vocês aqui, e voltarei quando estiver pronto. — Seranis encaminhou-se para as escadas que levavam ao exterior da casa, deixando-os a sós. Passou-se algum tempo antes que Alvin falasse ao amigo. Sentia profunda tristeza, mas também uma inabalável determinação de não permitir a destruição de todas as suas esperanças. Olhou mais uma vez para a vila onde havia encontrado felicidade e que talvez nunca mais voltasse a ver, se aqueles que se ocultavam por trás de Seranis lograssem seus intentos. O carro terrestre ainda estava sob uma das árvores de largas ramagens, com o paciente robô pairando no ar. Algumas crianças haviam-se reunido para examinar aquele estranho recém-chegado, mas nenhum dos adultos parecia interessado nele. — Hilvar — disse Alvin de repente —, sinto muito por isso tudo. — Eu também — respondeu Hilvar, com a voz embargada. — Eu tinha esperanças de que você pudesse ficar aqui. — Você acha que está certo o que Seranis quer fazer? — Não culpe minha mãe. Ela só está fazendo o que lhe pedem — disse Hilvar. Embora não houvesse respondido a pergunta, Alvin não teve coragem de repeti-la. Não era justo exigir tanto da lealdade do amigo. — Então, me diga uma coisa — pediu Alvin. — Como poderia sua gente me deter se eu tentasse ir embora com minhas lembranças intactas? — Seria fácil. Se você tentasse fugir, controlaríamos sua mente e obrigaríamos você a voltar. Era o que Alvin esperava ouvir e sentiu-se desanimado. Desejava poder confidenciar a Hilvar que estava obviamente chocado pela separação iminente, mas não se atrevia a arriscar o fracasso de seus planos. Com o máximo cuidado, verificando cada detalhe, ele retraçou na mente o único caminho que poderia levá-lo de volta a Diaspar nos termos em que ele desejava. Havia apenas um risco que teria de correr, e contra o qual nada podia fazer para proteger-se. Se Seranis quebrasse sua promessa e mergulhasse em sua mente, todos seus cuidadosos preparativos poderiam ser vãos. Estendeu a mão a Hilvar, que a apertou com firmeza. O rapaz ainda parecia incapaz de falar. — Vamos descer para nos encontrarmos com Seranis — disse Alvin. — Gostaria de me encontrar com algumas pessoas da vila antes de partir. Hilvar seguiu-o silenciosamente pelo frescor da casa, acompanhou-o pelo corredor e até o anel de vidro colorido que cercava o edifício. Seranis o esperava ali, com ar calmo e resoluto. Sabia que Alvin estava tentando esconder-lhe alguma coisa, e lembrou-se novamente das precauções que tomara. Tal como um homem flexionando os músculos antes de um grande esforço, ela repassou os padrões de compulsão que teria de usar. — Está pronto, Alvin? — perguntou. — Inteiramente — respondeu ele, e em sua voz havia alguma coisa que fez com que Seranis lhe lançasse um olhar rápido. — Então é melhor você não pensar em nada, como fez antes. Você não sentirá nem saberá de nada depois disso, até encontrar-se novamente em Diaspar. Alvin virou-se para Hilvar e disse, num sussurro rápido que Seranis não pôde ouvir: — Adeus, Hilvar. Não se preocupe… vou voltar. — Depois virou-se novamente para Seranis: — Não estou ressentido pelo que você está tentando fazer — disse. — Sem dúvida você acredita que isso seja o melhor a fazer, embora eu creia que está enganada. Diaspar e Lys não deveriam permanecer isoladas para sempre, algum dia poderão necessitar uma da outra desesperadamente. Por isso, vou voltar com tudo quanto aprendi… e não acredito que você possa me deter. Não esperou mais, o que foi melhor para ele. Seranis não fez nenhum gesto, mas instantaneamente sentiu o corpo sair de seu controle. A força que havia posto de lado seu próprio arbítrio era ainda maior do que ele esperara, e Alvin entendeu que muitas mentes ocultas deviam estar ajudando Seranis. Molemente, começou a caminhar de volta à casa, e por um momento terrível teve a impressão de que seu plano fracassara. Houve então um relâmpago de aço e cristal e braços de metal se fecharam rapidamente à sua volta. Seu corpo lutou contra o amplexo, como ele sabia que devia fazer, mas seus esforços foram inúteis. O chão cedeu sob seus pés e ele viu Hilvar de relance, congelado pela surpresa com um sorriso tolo no rosto. O robô carregava-o a uns quatro metros acima do chão, muito mais depressa do que um homem poderia correr. Seranis precisou apenas de um momento para compreender o ardil, e seus esforços cessaram à medida que ela relaxou o controle mental. Mas ainda não estava derrotada, e daí a momentos aconteceu o que Alvin temera e fizera todo o possível para neutralizar. Agora duas entidades separadas lutavam em sua mente, e uma delas argumentava com o robô, pedindo-lhe que o largasse. O Alvin real esperava, sem fôlego, resistindo apenas um pouco a forças que, sabia, não podia combater. Ele jogara, não havia maneira de prever com antecedência se seu incerto aliado obedeceria a ordens tão complexas como as que ele lhe dera. Em nenhuma circunstância — dissera ao robô — deveria obedecer outras ordens antes que ele, Alvin, estivesse em segurança em Diaspar. Essas eram as ordens. Se fossem cumpridas, Alvin teria colocado seu destino além do alcance da interferência humana. Sem hesitar um só momento, a máquina seguia a trilha que ele mapeara com tamanho cuidado. Uma parte dele ainda estava suplicando raivosamente que fosse libertado, mas Alvin sabia agora que se encontrava em segurança. Seranis não demorou a também compreender isso, pois as forças dentro de seu cérebro cessaram de combater. Mais uma vez Alvin estava em paz, tal como estivera no passado um explorador mais antigo, quando, amarrado ao mastro de seu navio, escutara o canto das sereias morrer sobre o mar tingido de rubro. Capítulo XV Alvin só se tranqüilizou ao chegar novamente à câmara das Vias Móveis. Havia ainda o perigo de que a gente de Lys pudesse deter ou até mesmo fazer retroceder o veículo em que viajava, trazendo-o para o ponto de partida. Mas sua volta foi uma repetição sem novidades da ida, quarenta minutos depois de haver deixado Lys, encontrava-se no Túmulo de Yarlan Zey. Os do Conselho o esperavam, vestindo os formais mantos negros, que havia séculos não usavam. Alvin não sentiu qualquer surpresa, e muito pouco alarme, ante a presença da comissão de recepção. Havia vencido tantos obstáculos que um a mais não fazia muita diferença. Aprendera muito desde sua saída de Diaspar, e esse conhecimento fazia-se acompanhar de uma confiança que raiava a arrogância. Ademais, possuía agora um aliado poderoso, ainda que imprevisível. Os melhores cérebros de Lys não tinham sido capazes de interferir em seus planos, e por algum motivo Alvin não acreditava que os de Diaspar viessem a ter melhor sorte. Havia bases racionais para essa convicção, mas em parte ela se fundava em alguma coisa que ia além da razão — uma fé em seu destino, que lentamente vinha se formando na mente de Alvin. O mistério de sua origem, seu êxito em lograr o que nenhum homem jamais conseguira, o modo como novos caminhos se lhe haviam descortinado — tudo isso aumentava sua autoconfiança. A fé no próprio destino contava-se entre as dádivas mais valiosas que os deuses poderiam conceder a um homem, mas Alvin ignorava quantos de seus antecessores tinham sido levados ao desastre por essa fé. — Alvin — disse o líder dos supervisores da cidade —, temos ordens para acompanhá-lo onde quer que você vá, até que o Conselho tenha julgado seu caso e pronunciado o veredicto. — De que crime sou acusado? — perguntou Alvin. Ainda se sentia tomado da excitação e da alegria da fuga de Lys, não conseguindo levar muito a sério os novos fatos. Provavelmente, Khedron falara, Alvin sentiu-se irritado com o Bufão por haver traído seu segredo. — Ainda não se fez nenhuma acusação — foi a resposta. — Se necessário, será proclamada uma, depois que você for ouvido. — E quando será isso? — Muito cedo, imagino. — O supervisor estava visivelmente contrafeito, sem saber ao certo como se conduzir nessa missão constrangedora. Ora tratava Alvin como um concidadão, ora lembrava-se de seus deveres de guardião e assumia uma atitude de exagerado alheamento. — Esse robô — disse ele de repente, apontando o companheiro de Alvin — de onde veio? É um dos nossos? — Não — respondeu Alvin. — Encontrei-o em Lys, o país em que estive. Trouxe-o para que ele se encontre com o Computador Central. Essa afirmativa clara produziu enorme agitação. Existir alguma coisa fora de Diaspar já representava surpresa bastante, mas Alvin ter trazido do exterior um de seus habitantes e tencionar apresentá-lo ao cérebro da cidade era pior ainda. Os administradores entreolharam-se com tal expressão de alarme, que Alvin não conseguiu reter o riso. Enquanto caminhavam pelo Parque, a escolta seguindo discretamente atrás dele, e conversando entre si em sussurros agitados, Alvin ponderou sua próxima atitude. A primeira coisa a fazer era descobrir exatamente o que acontecera durante sua ausência. Khedron, segundo lhe dissera Seranis, estava desaparecido. Havia em Diaspar inúmeros lugares onde uma pessoa poderia esconder-se, e como o conhecimento que o Bufão tinha da cidade era inigualável, não era provável que fosse encontrado até que resolvesse reaparecer. Talvez, pensou Alvin, pudesse deixar uma mensagem em local onde Khedron fatalmente a veria, combinando um encontro. Contudo, a presença da escolha, poderia impossibilitar a concretização desse plano. Tinha de admitir que a vigilância era das mais discretas. Ao chegar a seu apartamento, já quase se esquecera da existência dos supervisores. Imaginou que não interfeririam em seus movimentos, a menos que tentasse deixar Diaspar, e por enquanto não era sua intenção proceder assim. Na verdade, tinha quase certeza de que seria impossível voltar a Lys pelo caminho original. A essa altura, o sistema subterrâneo de transporte certamente já teria sido imobilizado por Seranis e sua gente. Os supervisores não o seguiram a seu quarto. Sabiam que só havia uma saída, colocando-se do lado de fora. Como não tinham instruções com relação ao robô, deixaram que acompanhasse Alvin. Não tinham o menor desejo de se meter com aquela máquina, porquanto era óbvio que provinha de outro lugar. A julgar por seu comportamento, não podiam dizer se era um servo passivo de Alvin ou se operava por livre volição. Em vista dessa incerteza, acreditariam ser melhor deixá-la em paz. Assim que a parede se fechou à suas costas, Alvin materializou seu divã predileto e atirou-se nele. Entregando-se ao prazer que lhe causava o ambiente familiar, invocou das unidades de memória seus últimos esforços de pintura e escultura, examinando-os com olho crítico. Se antes não haviam conseguido satisfazê-lo, agradavam-lhe agora menos ainda, não lhe despertando qualquer orgulho. A pessoa que os havia criado não existia mais, a Alvin parecia ter comprimido toda a experiência de uma vida nos poucos dias que passara fora de Diaspar. Apagou todos esses produtos de sua adolescência, cancelando-os para sempre, não simplesmente devolvendo-os ao Banco de Memória. O aposento voltou a ficar vazio, tudo que havia nele era o divã em que estava deitado e o robô, que ainda olhava, com seus olhos largos e insondáveis. O que o robô pensaria de Diaspar? — imaginou Alvin. Depois, lembrou-se de que a cidade não lhe era estranha, pois ele a havia conhecido nos últimos dias em que Diaspar mantivera contacto com as estrelas. Só quando se sentiu inteiramente tranqüilo em casa foi que Alvin começou a chamar seus amigos. Começou com Eriston e Etania, mais por um sentimento de dever do que por algum desejo real de vê-los e falar com eles novamente. Não ficou aborrecido quando os comunicadores dos pais adotivos lhe informaram que não estavam em casa, e Alvin deixou uma mensagem breve, informando-os sobre sua volta. Isso era inteiramente desnecessário, uma vez que a essa altura toda a cidade já estaria a par de seu regresso. Esperava, porém, que os pais apreciassem sua consideração, estava começando a aprender a cortesia, ainda que não houvesse compreendido que, como a maioria das virtudes, ela possui pouco mérito se não for espontânea e inconsciente. Então, agindo por impulso, chamou o número que Khedron lhe dera na Torre de Loranne. Não esperava resposta, naturalmente, mas havia sempre a possibilidade de que Khedron houvesse deixado uma mensagem. Seu palpite estava correto — só que a mensagem era assustadoramente inesperada. A parede se dissolveu e Khedron estava de pé diante dele. O Bufão parecia cansado e nervoso, diferente da pessoa confiante e ligeiramente cínica que pusera Alvin no caminho de Lys. Havia em seus olhos uma expressão de animal caçado, e ele falava como se dispusesse de pouquíssimo tempo. — Alvin — começou ele — isso é uma gravação. Só você pode recebê-la, mas pode utilizá-la como lhe aprouver. Nada me importará. «Quando cheguei de volta ao Túmulo de Yarlan Zey, descobri que Alystra nos seguira. Ela deve ter avisado ao Conselho que você havia saído de Diaspar e que eu o ajudara. Logo os supervisores estavam à minha procura e resolvi esconder-me. Estou acostumado a isso… já o fiz antes, quando algumas de minhas brincadeiras não foram muito apreciadas. — (Aqui, pensou Alvin, estava um lampejo do velho Khedron.) — Não me encontrariam nem em mil anos… mas uma outra pessoa quase me encontrou. Há estrangeiros em Diaspar, Alvin, só podem ter vindo de Lys, e estão à minha procura. Não sei o que significa e não gosto nada disso. O fato de quase me terem apanhado, conquanto estejam numa cidade que lhes deve ser estranha, sugere que possuem poderes de telepatia. Eu seria capaz de lutar contra o Conselho, mas esse agora é um perigo desconhecido que prefiro não enfrentar.» «Estou, por isso, antecipando-me a uma medida que acredito que o Conselho certamente se disporia a me aplicar, já que no passado houve ameaças disso. Estou indo para onde ninguém me pode seguir, e onde poderei escapar de todas as mudanças que estão para acontecer em Diaspar. Talvez seja tolice proceder assim, mas isso é uma coisa que só o tempo dirá. Um dia, saberei com certeza a resposta.» «Você já imagina que voltei para a Casa da Criação, para a segurança dos Bancos de Memória. Aconteça o que acontecer, deposito minha confiança no Computador Central e nas forças que ele controla em benefício de Diaspar. Se alguma coisa afetar o Computador Central, estamos todos perdidos. Se isso não acontecer, nada tenho a temer.» «Para mim, apenas um momento parecerá ter passado antes de eu pisar novamente nas ruas de Diaspar, daqui a cinqüenta ou cento e cinqüenta mil anos. Que espécie de cidade encontrarei? Será estranho se você estiver lá, algum dia, suponho, voltaremos a nos encontrar. Não sei dizer se espero com ansiedade esse encontro ou se o temo.» «Nunca o compreendi, Alvin, embora houvesse uma época em que a vaidade me levou a crer que o compreendia. Só o Computador Central conhece a verdade, tal como sabe a verdade a respeito dos demais Únicos que têm aparecido de vez em quando, no decurso das eras, e que depois nunca mais foram vistos. Descobriu o que lhes aconteceu?» «Suponho que um dos motivos pelos quais estou fugindo para o futuro é a minha impaciência. Desejo ver os resultados daquilo que você começou, mas estou ansioso por perder os estágios intermediários que, suspeito, poderão ser desagradáveis. Será interessante ver, num mundo que estará à minha volta apenas daqui a alguns minutos de tempo aparente, se você é lembrado como um criador ou como um destruidor… ou ver se você foi inteiramente esquecido.» «Adeus, Alvin. Pensei em lhe dar alguns conselhos, mas creio que você não os aceitaria. Você seguirá seu próprio caminho, como sempre fez, e seus amigos serão apenas instrumentos a serem usados ou abandonados, conforme a ocasião.» «Isso é tudo. Não me lembro de mais nada a dizer.» Por um momento, Khedron — o Khedron que já não existia, salvo como um padrão de cargas elétricas nas células de memória da cidade — olhou Alvin com resignação e, aparentemente, tristeza. Depois a tela esvaziou-se. Alvin permaneceu imóvel por muito tempo após a imagem de Khedron ter desaparecido. Estava sondando sua própria alma, como raramente havia feito em toda a vida, pois não podia negar a verdade de muito do que Khedron acabara de dizer. Quando foi que fizera uma pausa, em todos os seus planos e aventuras, para considerar o efeito do que estava fazendo sobre algum dos amigos? Havia-lhes trazido ansiedade e, em breve, poderia trazer coisas piores — tudo por causa de sua insaciável curiosidade e do impulso de descobrir o que não era conhecido. Jamais fora muito amigo de Khedron, a personalidade ácida do Bufão impedia qualquer relacionamento mais estreito, mesmo que Alvin o houvesse desejado. No entanto, ao se lembrar das palavras com que Khedron se despedira, sentia-se tomado de remorso. Em decorrência de seus atos, o Bufão fugira do presente para o futuro ignoto. Evidentemente, porém, pensou Alvin, não havia por que se culpar disso. O fato só provava o que ele já sabia — que Khedron era um covarde. Talvez não fosse mais covarde do que qualquer outra pessoa em Diaspar, mas tivera o infortúnio adicional de possuir fértil imaginação. Alvin podia assumir uma parte da responsabilidade por seu destino, mas de modo algum toda ela. A quem mais em Diaspar causara mal ou sofrimento? Pensou em Jeserac, seu tutor, tão paciente com um pupilo dos mais difíceis. Lembrou-se de todas as pequenas gentilezas que os pais lhe haviam dispensado durante anos, agora percebia que tinham sido maiores do que imaginara. E lembrou-se de Alystra. Ela o amara, e ele aceitara aquele amor ou o ignorara, segundo a ocasião. No entanto, que mais poderia ter feito? Teria ela sido mais feliz se a desdenhasse completamente? Compreendia agora que jamais amara Alystra, como nenhuma das mulheres que conhecera em Diaspar. Essa era outra lição que Lys lhe ensinara. Diaspar esquecera-se de muitas coisas, e entre elas estava o verdadeiro significado do amor. Em Airlee vira as mães embalando os filhos no colo e sentira ele próprio aquela ternura protetora por todas as criaturas pequenas e desamparadas, ternura que é a desprendida irmã gêmea do amor. No entanto, não havia agora em Diaspar uma só mulher que conhecesse ou amasse aquilo que fora outrora a meta final do amor. Não existiam emoções reais, paixões profundas, na cidade imortal. Talvez essas coisas só vicejassem devido à sua própria fugacidade, porque não podiam durar eternamente e jaziam sempre sob a sombra que Diaspar havia banido. Foi esse o momento, se tal momento jamais existiu, em que Alvin compreendeu qual tinha de ser o seu destino. Até agora, havia sido o agente inconsciente de seus próprios impulsos. Se pudesse conceber uma analogia tão arcaica, poderia ter-se comparado ao montador de um cavalo que houvesse tomado o freio nos dentes. O animal levava-o a muitos lugares estranhos, e o mesmo poderia voltar a acontecer, mas em seu louco galope lhe mostrara seus poderes e lhe ensinara onde ele, Alvin, realmente desejava ir. O devaneio de Alvin foi rudemente interrompido pelo carrilhão da tela. O timbre do som avisou-o de que não se tratava de um chamado, mas que chegara uma pessoa que desejava vê-lo. Deu o sinal de admissão e daí a um instante estava diante de Jeserac. O tutor mostrava-se grave, mas não inamistoso. — Pediram-me que o conduzisse à presença do Conselho, Alvin — ele disse. — Estão à sua espera. — Jeserac viu então o robô e examinou-o com curiosidade. — Quer dizer que este é o companheiro que você trouxe de suas viagens! Creio que seria melhor ele vir conosco. Isso vinha a calhar para Alvin. O robô já o livrara de uma situação perigosa e possivelmente teria de ser-lhe novamente útil. Imaginou o que a máquina teria pensado a respeito das aventuras e vicissitudes em que tinha sido envolvida, e pela milésima vez desejou poder compreender o que se passava em sua mente hermeticamente lacrada. Alvin tinha a impressão de que por ora o robô decidira-se a ver, analisar e tirar suas próprias conclusões, nada fazendo por livre vontade até chegar o momento oportuno. Depois, talvez bem depressa, se resolvesse a agir, e o que então fizesse talvez não se coadunasse com os planos de Alvin. O único aliado que possuía estava ligado a ele por tênues laços de interesse, e poderia deserdá-lo a qualquer momento. Alystra esperava-os na rampa que levava à rua. Mesmo que Alvin houvesse desejado culpá-la pelo papel que desempenhara na revelação de seu segredo, não teve coragem de fazê-lo. A aflição dela era palpável, seus olhos estavam rasos d'água quando se aproximou para saudá-lo. — Oh, Alvin — ela disse. — O que vão fazer com você? Alvin tomou-lhe as mãos com uma ternura que surpreendeu a ambos. — Não se preocupe, Alystra — disse. — Tudo vai sair bem. Afinal, a pior coisa que o Conselho poderia fazer seria mandar-me de volta para os Bancos de Memória… e por algum motivo não creio que isso venha a acontecer. A beleza e a infelicidade dela eram tão gritantes que, mesmo naquele momento, Alvin sentiu o corpo respondendo à sua presença, tal como nos velhos tempos. Mas era apenas atração física, Alvin não a desdenhava, mas aquilo já não bastava. Suavemente soltou as mãos e virou-se para acompanhar Jeserac em direção à Câmara do Conselho. Alystra sentiu o coração magoado, mas não despedaçado, ao vê-lo partir. Percebeu que não o perdera, pois ele jamais lhe pertencera. E com a aceitação desse fato, começou a colocar-se além do poder das lamentações vãs. Alvin mal notou os olhares curiosos ou horrorizados de seus concidadãos, enquanto ele e seus acompanhantes atravessavam as ruas familiares. Repassava os argumentos que poderia ter de usar e dispunha sua narrativa na forma que lhe fosse mais favorável. De vez em quando, assegurava a si mesmo que não estava absolutamente alarmado e que ainda era senhor da situação. Esperaram apenas alguns minutos na ante-sala, mas foi tempo suficiente para que Alvin imaginasse por que, se não tinha medo, as pernas lhe tremiam tanto. A única vez em que havia conhecido essa sensação foi quando se obrigara a transpor as últimas encostas daquele monte distante de Lys, onde Hilvar lhe mostrara a cachoeira, de cujo topo avistara a explosão de luz que os atraíra a Shalmirane. Pensou no que Hilvar estaria fazendo naquele momento e em se algum dia voltariam a encontrar-se. De repente, pareceu-lhe muito importante que se revissem. As grandes portas se abriram e ele seguiu Jeserac à Câmara do Conselho. Os vinte membros já se achavam em seus lugares, à mesa em forma de crescente, e Alvin sentiu-se lisonjeado ao perceber que não havia lugares vagos. Aquela devia ser a primeira vez, em muitos séculos, que o Conselho se reunia sem uma única abstenção. Em geral, suas raras reuniões eram apenas uma total formalidade, uma vez que todos os negócios rotineiros se resolviam com chamados de visifone e, se necessário, por uma entrevista entre o Presidente e o Computador Central. Alvin conhecia de vista a maioria dos membros do Conselho, e sentiu-se reconfortado pela presença de tantos rostos familiares. Tal como Jeserac, não se mostravam hostis — apenas ansiosos e perplexos. Eram, afinal, homens razoáveis. Poderiam estar irritados com o fato de alguém haver provado que laboravam em erro, mas Alvin não acreditava que lhe votassem qualquer ressentimento. No passado isso teria sido suposição temerária, mas a natureza humana havia melhorado em certos aspectos. Eles o ouviriam com justiça, mas o que pensariam não era o mais importante. Seu juiz não seria o Conselho. Seria o Computador Central. Capítulo XVI Não houve formalidades. O Presidente declarou aberta a sessão e virou-se para Alvin. — Alvin — disse, com bastante cordialidade —, gostaríamos que nos contasse o que lhe aconteceu desde seu desaparecimento, dez dias atrás. O emprego da palavra «desaparecimento», pensou Alvin, era altamente significativo. Ainda agora, o Conselho relutava em admitir que ele houvesse realmente saído de Diaspar. Duvidou que soubessem que estranhos vinham entrando na cidade. Nesse caso, teriam demonstrado muito mais alarme. Alvin contou sua história com clareza e sem dramaticidade, já era bastante estranha aos ouvidos dos membros do Conselho e dispensava maiores embelezamentos. Somente num ponto afastou-se da rigorosa exatidão, pois nada disse a respeito da maneira como escapara de Lys. Parecia provável que tivesse de usar o mesmo método novamente. Era fascinante observar como a atitude dos membros do Conselho se alterou durante o curso de sua narrativa. A princípio, mostraram-se céticos, recusando-se a aceitar a negação de tudo em que haviam acreditado, a violação de seus preconceitos mais profundos. Quando Alvin lhes falou de seu desejo passional de explorar o mundo que havia além da cidade, e de sua convicção irracional de que esse mundo realmente existia, fitaram-no como se ele fosse um animal estranho e incompreensível. Para suas mentes, com efeito, o era. Mas por fim viram-se obrigados a admitir que Alvin tivera razão, e que estavam enganados. A medida que a história se desenrolava, quaisquer dúvidas que pudessem ter tido lentamente se dissolveram. Poderiam não gostar do que Alvin lhes contara, mas já não podiam negar-lhe a veracidade. Caso se sentissem tentados a fazê-lo, bastava-lhes olhar o companheiro silencioso de Alvin. Só houve um aspecto de sua história que lhes despertou indignação — e mesmo assim o sentimento não se dirigia contra ele. Um murmúrio de irritação percorreu a câmara quando Alvin explicou a ansiedade de Lys em evitar contaminação com Diaspar, e as medidas que Seranis tomara para evitar tal catástrofe. A cidade tinha orgulho de sua cultura, e com bons motivos. Que alguém pudesse considerá-los inferiores era mais do que os membros do Conselho podiam tolerar. Alvin teve todo cuidado em não ofender ninguém, desejava até onde fosse possível, conquistar as boas graças do Conselho. Durante toda a exposição, tentou dar a impressão de não ter visto nada de errado no que fazia, e que esperava louvor, antes que censura, por suas descobertas. Era a melhor política a adotar, pois desarmava de antemão a maioria de seus possíveis detratores. Teve também o efeito — ainda que involuntário — de transferir toda culpa para o desaparecido Khedron. O próprio Alvin, fazia-se claro a seus interlocutores, era jovem demais para ver qualquer perigo no que estava fazendo. O Bufão, entretanto, deveria ter agido melhor, pois se comportara da maneira mais irresponsável possível. Ainda não sabiam o quanto o próprio Khedron havia concordado com eles. O próprio Jeserac, como tutor de Alvin, merecia parte da censura, e de vez em quando vários dos conselheiros lançavam-lhe olhares significativos. Jeserac parecia não tomar conhecimento desses olhares, embora soubesse perfeitamente o que estava pensando. Havia uma certa honra em ter sido o preceptor do cérebro mais original surgido em Diaspar desde as Eras do Alvorecer, e nada podia roubar-lhe isso. Não foi senão depois de ter findado o relato factual de suas aventuras que Alvin tentou um pouco de persuasão. De algum modo, teria de convencer esses homens das verdades que havia aprendido em Lys, mas como poderia fazer com que compreendessem realmente uma coisa que jamais tinham visto e dificilmente poderiam imaginar? — Parece uma enorme tragédia — ele disse — que os dois ramos sobreviventes da raça humana se tenham separado durante período tão vasto. Um dia, talvez, poderemos vir a saber como isso se deu, porém mais importante agora é remediar o rompimento… evitar que ocorra novamente. Quando em Lys, protestei contra a concepção local, de que nos são superiores, podem ter muito o que nos ensinar, mas também temos muitas coisas para lhes dar. Se nossos povos acreditarem que nada temos a aprender uns com os outros, não será óbvio que ambos estamos errados? Alvin olhou os rostos à sua frente e sentiu-se encorajado a prosseguir. — Nossos ancestrais — continuou — construíram um império que alcançou as estrelas. Os homens percorriam à vontade esses mundos… e hoje seus descendentes receiam aventurar-se além das muralhas de sua cidade. Terei de dizer-lhes por quê? — Alvin fez uma pausa, não havia nenhum movimento no salão. — E porque temos medo, medo de uma coisa que aconteceu nos primórdios da história. Contaram-me a verdade em Lys, embora eu a houvesse adivinhado há muito tempo. Deveremos para sempre nos ocultar como covardes, fingindo que nada mais existe… porque há um bilhão de anos os Invasores nos expulsaram de volta para a Terra? Pusera o dedo no medo secreto que sentiam — o medo que ele jamais compartilhara e cujo poder, portanto, jamais entendera plenamente. Agora, que fizessem o que desejassem, ele proclamara a verdade, pelo menos tal como a via. O Presidente olhou-o gravemente. — Tem mais alguma coisa a dizer — perguntou — antes de considerarmos o que devemos fazer? — Só uma coisa. Gostaria de levar esse robô à presença do Computador Central. — Por quê? Você sabe que o Computador já está informado de tudo quanto aconteceu nesta sala. — Ainda assim, quero ir — respondeu Alvin, polido, mas com obstinação. — Peço permissão tanto ao Conselho como ao Computador. Antes que o Presidente pudesse responder, uma voz clara e calma soou pela câmara. Alvin jamais a escutara em sua vida, mas sabia quem falava. As máquinas de informação, que não passavam de fragmentos de vanguarda dessa grande inteligência, podiam falar aos homens — mas não possuíam esse tom inequívoco de sabedoria e autoridade. — Que ele venha até mim — disse o Computador Central. Alvin olhou o Presidente. Diga-se, a seu crédito, que não tentou explorar sua vitória. Simplesmente perguntou: — Tenho permissão do Conselho para sair? O Presidente olhou em torno, não viu sinal de discordância e respondeu um tanto contrafeito: — Muito bem. Os supervisores o acompanharão e o trarão de volta, quando tivermos terminado nossa discussão. Alvin fez uma ligeira mesura de agradecimento, as grandes portas se abriram e ele saiu lentamente da Câmara. Jeserac o havia acompanhado e, quando as portas se fecharam mais uma vez, ele se virou para encarar o tutor. — O que pensa que o Conselho fará agora? — perguntou ansiosamente. Jeserac sorriu. — Impaciente como sempre, não? Não sei o quanto vale meu palpite, mas imagino que decidirão selar o Túmulo de Yarlan Zey, de modo que ninguém possa voltar a fazer a viagem. Então Diaspar poderá continuar como antes, sem ser perturbada pelo mundo lá fora. — É disso que tenho medo — disse Alvin amargamente. — E você ainda tenciona evitar que isso aconteça? Alvin não respondeu imediatamente. Sabia que Jeserac adivinhara suas intenções, mas pelo menos seu tutor não lhe podia prever os planos, pois que não os tinha. Chegara ao estágio em que só podia improvisar e enfrentar cada nova situação quando ela surgia. — Acha que tenho culpa? — perguntou daí a pouco, e Jeserac ficou surpreso com o novo tom de sua voz. Havia nele um quê de humildade, uma tênue sugestão de que pela primeira vez buscava a aprovação de seus conterrâneos. Aquilo comoveu Jeserac, mas ele era arguto demais para levá-lo muito a sério. Alvin achava-se sob considerável tensão, e não seria seguro supor que qualquer melhoria em seu caráter fosse permanente. — Essa é uma pergunta muito difícil de responder — ele disse lentamente. — Sou tentado a dizer que todo conhecimento é valioso, e não há como negar que você acrescentou muito ao nosso conhecimento. Contudo, você aumentou também os nossos perigos, e a longo prazo o que será o mais importante? Quantas vezes você parou para pensar nisso? Por um momento, mestre e aluno encararam-se em silêncio, cada qual talvez vendo o ponto de vista do outro mais claramente do que antes. Então, num impulso, viraram-se juntos e entraram no longo corredor de saída da Câmara do Conselho, com a escolta ainda os seguindo pacientemente na retaguarda. Aquele mundo, percebeu Alvin, não fora feito para o homem. Sob o esplendor de intensas luzes azuis — tão brilhantes que feriam a vista — os longos e largos corredores pareciam estender-se até o infinito. Por aquelas grandiosas passagens os robôs de Diaspar deviam transitar durante todas as suas vidas intermináveis, sem que nunca, em séculos, ouvissem o som de passos humanos. Ali estava o subterrâneo da cidade, a cidade de máquinas sem as quais Diaspar não podia existir. A algumas centenas de metros, o corredor abria-se numa câmara circular com mais de quilômetro e meio de diâmetro, o teto suportado por colossais colunas que tinham também de arcar com o peso inimaginável do Centro de Força. Ali, segundo os mapas, o Computador Central conjecturava eternamente sobre o destino de Diaspar. A câmara ali estava, e era ainda mais vasta do que Alvin ousara imaginar — mas onde estava o Computador? Por alguma razão esperara encontrar uma única máquina gigantesca, por mais ingênua que fosse tal concepção. O panorama fantástico, mas despido de significado, à sua frente, fez com que se detivesse, tomado de assombro e incerteza. O corredor, pelo qual tinham chegado ali, terminava no alto da parede da câmara — certamente a maior cavidade jamais construída pelo homem — e de ambos os lados longas rampas desciam para o piso distante. Toda aquela expansão brilhantemente iluminada achava-se coberta por centenas de grandes estruturas brancas, algo tão inesperado, que por um momento Alvin pensou que estivesse contemplando uma cidade subterrânea. A impressão era acentuadamente vívida, e por toda sua vida jamais a perderia. Em parte alguma havia o que esperava ver — o familiar brilho de metal que desde o começo do tempo o Homem aprendera a associar com seus servos. Ali estava o fim de uma evolução quase tão longa quanto a do Homem. Seus primórdios perdiam-se nas brumas das Eras do Alvorecer, quando a humanidade aprendera o emprego da força e enviara seus motores ruidosos por todo o mundo. Vapor, água, vento — tudo tinha sido mobilizado por algum tempo e depois abandonado. Por séculos, a energia da matéria havia também movido o mundo, até ser por seu turno descartada, e a cada mudança as máquinas antigas eram esquecidas e outras novas ocupavam-lhes o lugar. Vagarosamente, no decurso de milhares de anos, aproximava-se do ideal da máquina perfeita — aquele ideal que fora primeiramente um sonho, depois uma perspectiva distante, e por fim uma realidade: Nenhuma máquina pode conter qualquer parte móvel. Ali estava a expressão suprema daquele ideal. Sua realização custara ao Homem talvez cem milhões de anos, e no momento de seu triunfo ele voltara as costas à máquina para sempre. A máquina atingira a perfeição, doravante poderia manter-se eternamente, enquanto o servia. Alvin já não se perguntava mais quais daquelas silentes presenças brancas era o Computador Central. Sabia que eram todas — e que ele se estendia para muito além daquela câmara, incluindo em seu ser todas as incontáveis máquinas de Diaspar, móveis ou não. Da mesma forma que seu próprio cérebro era a soma de muitos bilhões de células separadas, organizadas num volume de espaço de alguns centímetros, também os elementos físicos do Computador central estavam espalhados por toda a extensão de Diaspar. Aquela câmara poderia não encerrar mais do que o sistema pelo qual todas essas unidades dispersas se mantinham em contacto recíproco. Inseguro quanto ao caminho a tomar, Alvin contemplou as grandes rampas e a arena silenciosa. O Computador Central deveria saber que ele se encontrava ali, uma vez que sabia tudo quanto acontecia em Diaspar. Só lhe cabia aguardar instruções. A voz agora familiar, mas ainda assustadora, soou tão serena e tão perto dele, que Alvin não acreditou que sua escolta pudesse também ouvi-la. — Siga pela rampa da esquerda — disse. — Depois darei novas instruções. Alvin desceu lentamente pela rampa, com o robô a flutuar sobre sua cabeça. Nem Jeserac nem os supervisores o seguiram, Alvin ficou a pensar se teriam recebido ordens para lá permanecerem, ou se haviam concluído que poderiam exercer vigilância sobre ele do ponto onde estavam, no alto, sem se darem ao trabalho de empreender a longa descida. Ou talvez já houvessem chegado o mais próximo que se atreviam do santuário central de Diaspar. Ao pé da rampa, a voz serena deu novas instruções, e ele pôs-se a caminhar entre uma avenida de adormecidas formas titânicas. Por três vezes a voz falou-lhe novamente, até que daí a momentos entendeu que chegara ao destino. A máquina diante da qual se encontrava era menor do que a maioria das companheiras, mas ainda assim se sentiu minúsculo em comparação a ela. Os cinco pavimentos, com suas amplas linhas horizontais, davam a impressão de um animal agachado e, desviando o olhar para seu próprio robô, Alvin achou difícil acreditar que ambos fossem produtos da mesma evolução, sendo ambos designados pela mesma palavra. A cerca de um metro do chão, um largo painel transparente percorria toda a extensão da estrutura. Alvin premiu a testa contra o material liso e curiosamente morno, perscrutando as entranhas da máquina. De início, nada viu, depois, protegendo os olhos, distinguiu milhares de tênues pontos de luz pairando no vazio. Estavam dispostos um após o outro, numa treliça tridimensional, tão estranha e sem sentido para ele como as estrelas certamente teriam sido para o homem antigo. Embora olhasse por muitos minutos, esquecido da passagem do tempo, as luzes coloridas nem uma vez se moveram nem seu brilho se alterou. Se pudesse contemplar o interior de seu próprio cérebro, percebeu Alvin, nada entenderia tampouco. A máquina parecia inerte e imóvel porque ele não podia ver seus pensamentos. Pela primeira vez, começou a ter um remoto entendimento dos poderes e das forças que mantinham a cidade. Por toda a vida aceitara sem discussão o milagre dos sintetizadores, que era após era proviam o fluxo incessante das necessidades de Diaspar. Milhares de vezes assistira àquele ato de criação, raramente se lembrando de que em algum lugar deveria existir o protótipo daquilo que ele via chegar ao mundo. Da mesma forma que o cérebro humano pode demorar-se um instante sobre um único pensamento, também os cérebros infinitamente maiores, que não representavam senão uma porção do Computador Central, podiam apreender e aguardar para sempre as mais complexas idéias. Os padrões de todas as coisas criadas estavam congelados naquelas mentes eternas, carecendo apenas do toque de uma vontade humana para torná-las realidade. O mundo percorrera longo caminho desde que, hora após hora, os primeiros cavernícolas haviam talhado pacientemente suas pontas de flechas e suas facas na pedra obstinada.. Alvin esperava, não ousando falar até receber algum outro sinal de reconhecimento. Imaginava como o Computador Central tinha ciência de sua presença, podia vê-lo e ouvir sua voz. Em parte alguma viam-se indícios de órgãos sensonais — nada dos gradis, telas ou impassíveis olhos de cristal através dos quais os robôs normalmente tomavam conhecimento do mundo que os rodeava. — Exponha seu problema — disse a voz serena a seu ouvido. Parecia estranho que aquela esmagadora massa de maquinaria resumisse seus pensamentos com tamanha suavidade. Alvin entendeu então que estava sendo presunçoso, talvez nem mesmo uma milionésima parte do Computador Central estivesse tratando com ele, que não passava de um dos inumeráveis incidentes que chegavam à sua atenção simultânea enquanto vigiava Diaspar. Era difícil falar com uma presença que enchia todo o espaço ao redor. As palavras de Alvin como que morriam no ar vazio assim que ele as pronunciava. — O que sou? — perguntou. Houvesse ele colocado tal pergunta a uma das máquinas de informação da cidade, sabia qual teria sido a resposta. Com efeito, várias vezes o tinha feito, e sempre lhe haviam respondido: «Você é um homem». Mas agora estava lidando com uma inteligência de ordem totalmente diversa, e não havia necessidade de dificultosa precisão semântica. O Computador Central saberia o que ele queria dizer, o que, porém, não significava que estivesse disposto a responder-lhe. Na verdade, a resposta foi exatamente a que Alvin temera. — Não posso responder a essa pergunta. Fazê-lo representaria revelar o objetivo de meus construtores e, portanto, anulá-lo. — Então meu papel foi planejado quando a cidade foi construída? — Isso pode ser dito de todo e qualquer ser humano. Essa resposta obrigou Alvin a fazer uma pausa. Era verdadeira, sem dúvida. Os habitantes de Diaspar tinham sido projetados com o mesmo cuidado que suas máquinas. O fato de ser um Único transformava Alvin em raridade, mas não havia necessariamente virtude alguma nisso. Sabia que ali não poderia aprender nada mais com relação ao mistério de sua origem. Era inútil tentar ludibriar aquela vasta inteligência, ou esperar que ela revelasse informações que, pelas ordens recebidas, devia ocultar. Alvin não se sentiu exageradamente desapontado, achava que já começara a vislumbrar a verdade, e de qualquer maneira não era esse o principal objetivo de sua visita. Olhou o robô trazido de Lys e ficou a pensar como proceder a seguir. O robô poderia reagir violentamente se soubesse o que estava planejando, de modo que era essencial não entreouvir ele o que pretendia dizer ao Computador Central. — Pode-se obter uma zona de silêncio? — perguntou. Instantaneamente, sentiu a inequívoca sensação «morta», o amortecimento total de todos os sons, que ocorria quando uma pessoa se encontrava dentro de uma dessas zonas. A voz do Computador, agora curiosamente sem expressão e sinistra, falou: — Ninguém pode ouvir-nos agora. Diga o que quer. — Alvin olhou de relance para o robô, não havia mudado de posição. Talvez de nada suspeitasse, e ele cometesse erro ao imaginar que a máquina tivesse planos próprios. Talvez ela o houvesse acompanhado a Diaspar como um servo fiel e digno de confiança e nesse caso o que ele estava agora planejando parecia um golpe particularmente baixo. — Você deve estar a par de que encontrei esse robô — começou Alvin. — Ele deve possuir conhecimentos inestimáveis do passado, que remontam aos dias anteriores à cidade tal como a conhecemos. Poderá até ser capaz de nos falar sobre outros mundos além da Terra, uma vez que acompanhou o Mestre em suas viagens. Infelizmente, seus circuitos de fala acham-se bloqueados. Não sei até onde vai a eficácia desse bloqueio, mas peço-lhe que o anule. Sua voz soava morta e oca na zona de silêncio, que absorvia cada palavra antes que pudesse formar um eco. Esperou, dentro daquele vazio invisível e sem reverberações, que seu pedido fosse deferido ou rejeitado. — Seu pedido envolve dois problemas — respondeu o Computador. — Um deles é moral, o outro é técnico. Esse robô foi projetado para obedecer às ordens de um determinado homem. Que direito tenho de passar sobre elas mesmo que possa fazê-lo? Essa era uma pergunta que Alvin previra e para a qual havia preparado várias respostas. — Não sabemos a forma exata que tomou a proibição do mestre — respondeu. — Se você puder falar ao robô, poderá talvez persuadi-lo de que as circunstâncias nas quais o bloqueio foi imposto acham-se agora alteradas. Isso representava, naturalmente, a abordagem óbvia ao problema. O próprio Alvin a tentara, sem êxito, mas esperava que o Computador Central, com seus recursos mentais infinitamente maiores, fosse capaz de ter sucesso onde ele falhara. — Isso depende inteiramente da natureza do bloqueio — foi a resposta. — É possível criar um bloqueio que se modificado, fará com que o conteúdo das células de memória seja cancelado. Contudo, creio ser improvável que o Mestre possuísse perícia suficiente para fazer isso, pois tal procedimento envolve técnicas altamente especializadas. Perguntarei à sua máquina se um circuito de cancelamento foi acoplado em suas unidades de memória. — Mas suponhamos — interpôs Alvin, com súbito alarme — que o cancelamento da memória seja causado por uma mera pergunta a respeito da existência desse circuito? — Há um procedimento padrão para tais casos, e vou segui-lo. Darei instruções secundárias, dizendo à máquina que ignore minha pergunta se tal situação existir. Será simples então assegurar o seu envolvimento num paradoxo lógico, de modo que, quer ela me responda, quer não diga nada, será forçada a desobedecer às instruções recebidas. Nesse casos, todos os robôs agem da mesma maneira, para sua própria proteção. Eles limpam seus circuitos de entrada e agem como se não tivesse sido feita pergunta alguma. Alvin quase se arrependeu de ter levantado a questão, e depois de um momento de luta mental decidiu que ele também adotaria a mesma tática, fingindo que jamais tinha feito a pergunta. Pelo menos estava tranqüilo com relação a uma coisa — o Computador Central estava plenamente preparado para lidar com quaisquer armadilhas que pudessem existir nas unidades de memória do robô. Alvin não tinha desejo algum de ver a máquina reduzida a uma pilha de sucata, preferia vê-la voltar para Shalmirane com seus segredos ainda intactos. Esperou com o máximo de paciência que pôde, enquanto ocorria o silencioso e impalpável encontro de intelectos. Ali se processava um encontro entre duas mentes, ambas criadas pelo gênio humano na idade áurea, há muito perdida, de sua realização suprema. Agora ambas se achavam além da compreensão total de qualquer homem vivo. Minutos depois, ouviu-se de novo a voz sem eco do Computador Central. — Estabeleci contato parcial — disse. — Pelo menos conheço a natureza do bloqueio, e creio saber porque foi imposto. Só há uma maneira pela qual ele pode ser suspenso. Antes que os Grandes voltem à Terra, esse robô jamais falará novamente. — Mas isso é absurdo! — protestou Alvin. — O outro discípulo do Mestre também acreditava neles, e tentou explicar-nos como eram. Durante a maior parte do tempo, falava coisas sem sentido. Os Grandes nunca existiram e nunca existirão. Parecia um impasse completo, e Alvin sentiu um amargo desapontamento. Fora afastado da verdade pelos desejos de um homem que enlouquecera e que morrera havia um bilhão de anos. — Talvez você tenha razão — disse o Computador Central — ao dizer que os Grandes nunca existiram. Mas isso não significa que nunca existirão. Houve outro longo silêncio enquanto Alvin considerava o significado dessa observação e enquanto as mentes dos dois robôs refaziam seu delicado contacto. Então, sem qualquer aviso, ele se viu em Shalmirane. Capítulo XVII Tudo estava como ele vira pela última vez, a grande depressão de ébano absorvendo toda a luz solar, sem refletir porção alguma dela. Alvin achava-se em meio às ruínas da fortaleza, contemplando o lago, cujas águas imóveis mostravam que o pólipo gigantesco não passava agora de uma nuvem dispersa de animálculos, tendo deixado de ser uma criatura organizada e inteligente. O robô ainda estava a seu lado, mas não havia sinal de Hilvar. Alvin não teve tempo para pensar no que aquilo significava ou preocupar-se com a ausência do amigo, pois quase imediatamente ocorreu algo tão fantástico que baniu de seu espírito quaisquer outros pensamentos. O céu começou a se rachar em dois. Uma delgada cunha de escuridão estendeu-se do horizonte ao zênite, alargando-se vagarosamente, como se a noite e o caos estivessem a despenhar-se sobre o universo. Inexoravelmente, a cunha continuou a ampliar-se até abarcar um quarto do céu. Apesar de todo seu conhecimento de astronomia, Alvin não conseguia rechaçar a impressão de que ele e seu mundo jaziam sob uma grande cúpula azul — e que alguma coisa estava penetrando nessa cúpula, vinda do lado de fora. A cunha de noite cessara de crescer. Os poderes que a haviam criado estavam perscrutando o universo de brinquedo que haviam descoberto, talvez consultando-se quanto à conveniência de explorá-lo. Diante daquela «pesquisa» cósmica, Alvin não sentia alarme nem terror. Sabia que estava face a face com o poder e a sabedoria, diante dos quais um homem poderia sentir assombro, nunca medo. Agora haviam decidido: prodigalizariam alguns fragmentos da eternidade à Terra e seus povos. E chegavam, através da janela que haviam aberto no céu. Como centelhas a saltar de uma forja celeste, caíam sobre a Terra. Vinham cada vez mais densos, até que uma cascata de fogo como que jorrava do céu e se acumulava em poças de líquida luz, ao tocar o chão. A Alvin soaram desnecessárias as palavras, ouvidas como uma bênção: «Eis chegados os Grandes.» O fogo alcançou-o, e não queimava. Estava por toda parte, infundindo à grande depressão de Shalmirane seu brilho dourado. Mesmo tomado de admiração, Alvin percebeu que o que via não era uma inundação informe de luz, mas que ela possuía feitio e estrutura. O esplendor começou a adquirir formas separadas, a juntar-se em ardentes vórtices distintos. Cada vez mais depressa, esses turbilhões giravam em seus eixos, seus centros se erguendo em colunas, em cujo interior Alvin lobrigava misteriosas formas evanescentes. Desses totens brilhantes vinha uma leve nota musical, infinitamente distante e admiravelmente doce. ''Eis chegados os Grandes.'' Dessa vez, ouviu-se resposta. Quando Alvin escutou as palavras «Os servos do Mestre vos saúdam. Estivemos à espera de vossa chegada», soube que as barreiras tinham sido postas abaixo. E naquele momento Shalmirane e seus estranhos visitantes desapareceram, e ele estava novamente de pé ante o Computador Central, nas profundezas de Diaspar. Tudo fora ilusão, não mais real do que o mundo de fantasia das Sagas, em que ele passara tantas horas de sua juventude. Mas como fora criada? De onde proviriam as estranhas imagens que ele vira? — Era um problema inusitado — disse a voz serena do Computador Central. — Eu sabia que o robô devia ter alguma concepção visual dos Grandes em sua mente. Se eu pudesse convencê-lo de que as impressões sensórias que ele recebesse coincidiam com aquela imagem, o resto seria simples. — E como fez isso? — Basicamente, perguntando ao robô como eram os Grandes, e então capturando o padrão formado em seus pensamentos. O padrão era muito incompleto, de modo que tive de improvisar muito. Por uma ou duas vezes a imagem que criei começou a se afastar bastante da concepção do robô, mas quando isso aconteceu consegui perceber a crescente perplexidade dele e modificar o quadro antes que passasse a suspeitar. Você entende que pude empregar centenas de circuitos, ao passo que ele só tinha um à sua disposição, e pude passar de uma imagem para outra tão depressa que a mudança não foi percebida. Foi uma espécie de prestidigitação, fui capaz de saturar os circuitos sensórios do robô e, além disso, inundar suas faculdades críticas. O que você viu foi apenas a imagem final e corrigida — a que melhor se ajustava à revelação do Mestre. Foi uma imagem grosseira, mas suficiente. O robô ficou convencido de sua veracidade o tempo suficiente para o bloqueio ser suspenso e nesse momento consegui estabelecer contacto completo com sua mente. O robô não está mais louco, responderá a qualquer pergunta que você fizer. Alvin ainda estava entorpecido. O brilho daquele falso apocalipse ainda fulgia em sua mente, e ele não se esforçou por compreender inteiramente a explicação do Computador Central. Não importava, realizara-se um milagre de terapia, e as portas do conhecimento agora lhe estavam abertas. Lembrou-se então da advertência que o Computador Central lhe fizera, e perguntou ansiosamente: — E suas objeções morais quanto ao desrespeito às ordens do Mestre? — Descobri por que foram impostas. Quando se examina sua biografia em detalhes, como você poderá fazer agora, vê-se que ele alegava ter produzido muitos milagres. Seus discípulos acreditavam nele, e essa fé aumentava sua força. Contudo, é claro que todos esses milagres tinham uma explicação simples, e isso quando chegavam mesmo a acontecer. Acho surpreendente que homens, em tudo mais dotados de bom senso, se deixassem ludibriar dessa maneira. — Então, o Mestre era uma fraude? — Não, as coisas não são tão simples. Se tivesse sido um mero impostor, jamais teria atingido tal sucesso, nem seu movimento teria durado tanto tempo. Era um bom homem, e muito do que ensinava era verdadeiro e sensato. Por fim, acreditou em seus próprios milagres, mas sabia que só havia uma testemunha capaz de refutá-los. O robô conhecia todos os seus segredos, era seu porta-voz e seu colega, mas, se algum dia fosse interrogado detidamente, poderia destruir os fundamentos do poder do Mestre. Por isso, ordenou-lhe que jamais revelasse os segredos, até o último dia do Universo, quando os Grandes voltariam. É difícil acreditar que tal mistura de fraude e sinceridade pudesse coexistir no mesmo homem, mas foi isso que aconteceu. Alvin imaginou o que o robô pensaria a respeito de sua libertação da velha servidão. Tratava-se, evidentemente, de uma máquina suficientemente complexa para entender emoções como o ressentimento. Poderia estar encolerizada com o Mestre por havê-la escravizado — e igualmente zangada com Alvin e com o Computador Central por terem-na devolvido à sanidade por meio de truques. A zona de silêncio fora rompida, não havia mais necessidade de segredo. O momento esperado por Alvin chegara finalmente. Voltou-se para o robô e fez-lhe a pergunta que o vinha perseguindo desde que ouvira a história da Saga do Mestre. E o robô respondeu. Jeserac e os supervisores ainda esperavam pacientemente quando Alvin foi ter com eles. No alto da rampa, antes de penetrarem no corredor, Alvin olhou para trás, e a ilusão foi mais forte do que nunca. Abaixo dele estendia-se uma cidade morta de estranhos edifícios brancos, uma cidade calcinada por uma luz feroz, que não havia sido feita para a vista humana. Morta poderia ser, pois nunca vivera, mas pulsava com energias mais poderosas do que todas que jamais haviam latejado na matéria orgânica. Enquanto perdurasse o mundo, essas silenciosas máquinas estariam ali, jamais desviando a atenção dos pensamentos que homens de gênio lhe tinham dado havia muito tempo. Embora Jeserac tentasse questionar Alvin, durante o caminho de volta à Câmara do Conselho, nada ficou sabendo a respeito de sua conversa com o Computador Central. Não se tratava apenas de discrição por parte de Alvin, ele ainda se achava demasiado perdido na maravilha do que vira, demasiado embriagado de êxito para manter qualquer conversa coerente. Jeserac teria de reunir toda a paciência possível, e esperar que Alvin saísse de seu transe. As ruas de Diaspar estavam banhadas por uma luz que parecia pálida e mortiça após o fulgor da cidade das máquinas. Mas Alvin quase não percebia, não lançou um único olhar à beleza familiar das grandes torres que passavam por ele, ou pelos olhares curiosos de seus concidadãos. Era estranho, pensava que tudo que lhe acontecera levasse àquele momento. Desde que travara conhecimento com Khedron, os acontecimentos pareciam ter-se encaminhado automaticamente a uma meta predeterminada. Os Monitores… Lys… Shalmirane… a cada passo ele poderia ter tomado outro caminho, sem nada enxergar, mas alguma coisa o impulsionara à frente. Seria ele o autor de seu próprio caminho, ou estaria sendo especialmente favorecido pelo Destino? Talvez aquilo não passasse de uma questão de probabilidades, ou da atuação das leis do acaso. Qualquer homem poderia ter encontrado a trilha traçada por seus passos, e por vezes sem conta, nas eras passadas, outros deviam certamente ter chegado quase tão longe quanto ele. Aqueles Únicos anteriores, por exemplo… O que lhes acontecera? Talvez ele fosse simplesmente o primeiro a contar com a sorte. Durante todo o trajeto de volta, Alvin estabelecia uma relação cada vez mais estreita com a máquina que ele libertara de uma imemorial servidão. A máquina vinha sendo capaz de receber seus pensamentos, mas até então ele não conseguira saber se ela obedecia a alguma ordem que lhe desse. Agora, terminara essa incerteza, Alvin podia conversar com ela como falaria a outro ser humano, muito embora, como não estivessem a sós, ele lhe determinasse não usar a expressão verbal, mas sim imagens mentais simples que ele pudesse entender. Às vezes Alvin ressentia-se do fato de os robôs serem capazes de conversar livremente entre si ao nível telepático, ao passo que os homens não podiam fazê-lo — exceto em Lys. Esse era outro poder que Diaspar perdera ou deliberadamente rejeitara. Alvin continuou a conversa silenciosa, um tanto unilateral, enquanto esperava na ante-sala da Câmara do Conselho. Era impossível não comparar sua situação no momento com a que ele vivera em Lys, quando Seranis e seus colegas haviam tentado dobrá-lo às suas vontades. Esperava que não houvesse necessidade de novos conflitos, mas se surgisse algum litígio, estava agora mais preparado para enfrentá-lo. Logo ao ver os rostos dos membros do Conselho, ele entendeu qual fora a decisão. Não ficou nem surpreso nem particularmente decepcionado, e não demonstrou qualquer sinal da emoção que os Conselheiros poderiam ter esperado, enquanto ouvia a súmula do Presidente. — Alvin — começou o Presidente —, consideramos com enorme cuidado a situação provocada por sua descoberta, e chegamos a uma decisão unânime. Como ninguém deseja qualquer mudança em nosso modo de viver, e como apenas uma vez em muitos milhões de anos nasce alguém capaz de deixar Diaspar, e isso mesmo que exista meio de fazê-lo, o sistema de túneis para Lys é desnecessário e pode ser até um perigo. Por conseguinte, a entrada para a Câmara das Vias Móveis foi selada. «Além disso, visto ser possível existirem outros meios para sair da cidade, será realizada uma vistoria das unidades de memória do Monitor. Essa pesquisa ja foi iniciada.» «Levamos em consideração quais atitudes devem ser tomadas com relação a você. Tendo em vista sua juventude, e as circunstâncias especiais de sua origem, acreditamos que você não pode ser censurado pelo que fez. Na verdade, ao revelar um perigo potencial para nosso estilo de vida, você prestou um serviço à cidade, e desejamos registrar nosso apreço por esse fato.» Houve aplausos ralos, e expressões de satisfação perpassaram pelas fisionomias dos Conselheiros. Uma situação difícil fora resolvida com rapidez, haviam evitado a necessidade de admoestar Alvin e agora poderiam voltar às suas vidas, sentindo que eles, os principais cidadãos de Diaspar, haviam cumprido com seu dever. Com sorte, poderiam passar séculos antes que fato análogo tornasse a acontecer. O Presidente olhou Alvin, talvez esperasse que ele tomasse a palavra para exprimir seu agradecimento ao Conselho por permitir que ele se saísse tão bem da situação. Decepcionou-se, porém. — Posso fazer um pergunta? — disse Alvin polidamente. — Pois não. — O Computador Central, por acaso, aprovou a decisão dos senhores? Ordinariamente, essa teria sido uma pergunta impertinente. O Conselho não tinha por que justificar suas decisões, nem explicar como chegara a elas. Mas o próprio Alvin fora chamado à presença do Computador Central, por alguma razão que só a este dizia respeito. Por isso, encontrava-se em situação privilegiada. A pergunta evidentemente causou algum embaraço, e a resposta foi dada com certa relutância. — Naturalmente consultamos o Computador Central. Ele nos disse que usássemos nossos próprios critérios. Era o que Alvin esperava ouvir. O Computador decerto estivera em consulta com o Conselho no mesmo momento em que ele, Alvin, conversava com a máquina — no mesmo momento, na verdade, em que tratava de milhões de outras tarefas em Diaspar. Sabia bem, tal como Alvin também sabia, que a decisão tomada agora não tinha qualquer importância. O futuro se colocara inteiramente fora do controle do Conselho no momento exato em que, em feliz ignorância, este decidira que a crise fora solucionada com segurança. Alvin não sentia sensação alguma de superioridade, nenhuma doce antevisão de triunfo iminente, enquanto contemplava aqueles tolos anciões que se julgavam os governantes de Diaspar. Vira o verdadeiro governante da cidade, e falara-lhe no silêncio grave de seu mundo fulgurante e sepulto. Aquele fora um encontro que cauterizara quase toda a arrogância que havia em sua alma, mas restara-lhe ousadia suficiente para um ato final que superaria tudo quanto ocorrera antes. Ao se despedir do Conselho, Alvin imaginava se os conselheiros não estariam admirados com sua tranqüila aquiescência, sua falta de indignação com o fechamento do caminho para Lys. Os supervisores não o acompanharam. Só Jeserac saiu com ele da Câmara do Conselho pra as ruas coloridas e apinhadas. — Muito bem, Alvin — disse Jeserac. — Você se comportou muito bem, mas a mim não engana. O que está planejando? Alvin sorriu. — Eu sabia que você suspeitaria de alguma coisa, se vier comigo, mostrar-lhe-ei porque o subterrâneo para Lys não é mais importante. E há outra experiência que desejo tentar, não lhe fará mal algum, mas talvez não seja de seu agrado. — Muito bem. Creio que ainda sou seu tutor, mas me parece que os papéis agora se inverteram. Para onde está me levando? — Vamos à Torre de Loranne, vou-lhe mostrar o mundo fora de Diaspar. Jeserac empalideceu, mas não deu meia-volta. Como se não confiasse na firmeza de sua voz, balançou rigidamente a cabeça e seguiu Alvin até a superfície lisa e deslizante da via móvel. Jeserac não demostrou qualquer sinal de medo enquanto caminhavam pelo túnel através do qual o vento frio soprava eternamente sobre Diaspar. O túnel agora estava diferente, a treliça de pedra que antes bloqueava o acesso ao mundo exterior desapareceu. Não atendia a qualquer finalidade estrutural e o Computador Central a eliminara a pedido de Alvin. Mais tarde, poderia instruir aos Monitores que se lembrassem da treliça novamente, e a fizessem existir outra vez. Mas por ora o túnel abria-se às escancaras, sem proteção, sobre a parede exterior da cidade. Só quando Jeserac estava quase chegando ao fim do túnel de ar é que percebeu que o mundo exterior já se achava diante dele. Olhou para o círculo de céu, cada vez maior, e seus passos se tornaram cada vez mais hesitantes até que cessaram. Alvin lembrou-se do modo como Alystra fugira, naquele mesmo ponto, e ficou a pensar se conseguiria induzir Jeserac a prosseguir. — Estou-lhe pedindo apenas que olhe — disse —, e não que saia da cidade. É claro que você pode fazer isso! Durante sua breve estada em Airlee, Alvin tinha visto uma mãe ensinar o filho a andar. A cena lhe veio à lembrança enquanto persuadia Jeserac a caminhar pelo corredor, fazendo observações encorajadoras, ao mesmo tempo que seu tutor avançava, vacilante, pé ante pé. Jeserac, ao contrário de Khedron, não era covarde. Estava disposto a lutar contra sua compulsão, mas era uma luta desesperada. Alvin estava exausto quando conseguiu levar Jeserac a um ponto de onde este podia ver a vastidão ininterrupta do deserto. Ali chegado, o interesse e a estranha beleza da cena, tão remota de tudo quanto Jeserac conhecera nesta ou em qualquer existência anterior, pareceram vencer seu medo. Estava francamente fascinado pela paisagem imensa de dunas ondulantes e colinas distantes e antigas. Era o fim da tarde, e daí a momentos toda essa terra seria visitada pela noite, que jamais chegava a Diaspar. — Pedi a você que viesse aqui — disse Alvin, depressa, como se não pudesse conter a impaciência — por achar que você, mais do que ninguém, ganhou o direito de ver onde minhas viagens me levaram. Queria que visse o deserto, e quero também que sirva de testemunha, de modo que o Conselho saiba o que foi que fiz. «Como eu disse ao Conselho, trouxe esse robô de Lys na esperança de que o Computador Central fosse capaz de romper o bloqueio que havia sido imposto às suas memórias pelo homem conhecido como Mestre. Através de um ardil que ainda não entendo perfeitamente, o Computador fez isso. Agora tenho acesso a todas as memórias dessa máquina, bem como às aptidões especiais com que ela foi dotada. Vou usar uma dessas aptidões agora. Veja.» Ao receber uma ordem silenciosa que Jeserac mal podia imaginar qual fosse, o robô saiu pela entrada do túnel, ganhou velocidade e dentro de segundos não era mais do que um distante brilho metálico à luz do Sol. Voava baixo sobre o deserto, pairando sobre as dunas que se entrecruzavam como ondas congeladas. Jeserac teve a impressão inequívoca de que ele estava procurando alguma coisa. Então, de repente, a centelha elevou-se rapidamente sobre o deserto e parou a cerca de trezentos metros de altura. No mesmo momento, Alvin soltou um explosivo suspiro de satisfação e relevo. Olhou de relance para Jeserac, como se dissesse «Pronto!» A princípio, não sabendo o que esperar, Jeserac não percebeu mudança alguma. Depois, mal acreditando em seus olhos, viu que uma nuvem de pó se elevava lentamente do deserto. Nada é mais terrível do que movimento onde jamais deveria haver movimento outra vez, mas Jeserac já perdera a capacidade de surpreender-se quando as dunas começaram a separar-se. Sob o deserto, alguma coisa agitava-se, como um gigante que despertasse de seu sono, e daí a pouco chegou aos ouvidos de Jeserac o ruído de terra que caía e os estalidos de rochas que se partiam sob uma irresistível força subterrânea. Então, de repente, um enorme gêiser de areia subiu a dezenas de metros de altura e o solo tornou-se quase invisível. Lentamente, o pó começou a depositar-se numa ferida aberta na face do deserto. Mas Jeserac e Alvin ainda tinham os olhos postos fixamente no céu aberto, que há um momento só continha o robô, aguardando. Agora, por fim, Jeserac entendia por que Alvin se mostrara tão indiferente à decisão do Conselho, por que não havia demonstrado nenhuma emoção ao saber que o caminho para Lys fora fechado. O manto de terra e rocha embaçava, mas não conseguia esconder as linhas altivas da nave que ainda ascendia do deserto cortado ao meio. Diante dos olhos de Jeserac, a nave lentamente voltou-se para eles, até reduzir-se a um círculo. Depois, muito devagar, o círculo começou a se ampliar. Alvin começou a falar depressa, como se o tempo fosse curto. — Esse robô foi projetado para ser companheiro e servo do Mestre e, principalmente, como piloto da nave. Antes de chegar a Lys, pousou no porto de Diaspar, que agora jaz sob essas areias. Mesmo naquele tempo, o porto devia estar quase abandonado. Creio que a nave do Mestre tenha sido uma das últimas a chegar à Terra. Por algum tempo ele viveu em Diaspar, antes de ir a Shalmirane, a rota ainda devia estar aberta naqueles dias. Mas nunca mais voltou a ter necessidade da nave, e durante todo esse tempo ela ficou ali, à espera, sob as areias. Como a própria Diaspar, como esse robô — como tudo que os construtores do passado consideravam realmente importante —, ela foi preservada por seus próprios circuitos de eternidade. Enquanto dispusesse de uma fonte de energia, jamais poderia desgastar-se ou ser destruída, a imagem presente em suas células de memória nunca definharia e essa imagem controlava sua estrutura física. A nave estava agora bem próxima, aproximando-se da Torre, controlada pelo robô. Jeserac podia ver que tinha cerca de trinta metros de comprimento, sendo afilada em ambas as extremidades. Aparentemente, não havia janelas ou outras aberturas, embora a grossa camada de terra impedisse que ele tivesse certeza disso. De repente, levaram uma chuva de terra, quando uma seção do casco abriu-se para a frente, e Jeserac viu de relance uma câmara pequena e nua, com uma segunda porta na extremidade posterior. A nave se encontrava a um palmo de distância da saída de ar, de que se aproximava com enorme cautela, como uma coisa viva e sensível. — Adeus. Jeserac — disse Alvin. — Não posso voltar a Diaspar a fim de me despedir dos amigos. Por favor, faça isso por mim. Diga a Eriston e Etania que espero voltar logo. Se não voltar, sou grato por tudo quanto fizeram. E sou grato a você, embora você possa não aprovar a maneira como apliquei suas lições. Quanto ao Conselho… diga-lhe que uma rota que foi aberta não pode ser fechada através de uma simples resolução. A nave era agora uma mancha escura contra o céu, e de repente Jeserac não a avistou mais. Não chegou a ver sua partida, mas não tardou que ecoasse pelo céu o mais formidável de todos os sons que o Homem jamais produzira — o trovão contínuo do ar que se precipita, quilômetro após quilômetro, num túnel de vácuo perfurado subitamente no céu. Mesmo quando os últimos ecos morreram sobre o deserto, Jeserac não fez movimento algum. Estava pensando no garoto que havia partido — pois, para Jeserac, Alvin seria sempre uma criança, a única a ter chegado a Diaspar desde que o ciclo de nascimento e morte fora interrompido, havia tanto tempo. Alvin jamais cresceria. Para ele. todo o Universo não passava de um brinquedo, um quebra-cabeças a ser deslindado para seu próprio divertimento. Em sua brincadeira ele encontrara o jogo mortífero, supremo, capaz de destruir o que sobrava da civilização humana — mas qualquer que fosse o resultado, para ele tudo seria sempre um folguedo. O Sol agora caía sobre o horizonte, e um vento gélido soprava do deserto. Contudo, Jeserac ainda esperava, vencendo seu medo, não demorou muito, e pela primeira vez em sua vida ele viu as estrelas. Capítulo XVIII Mesmo em Diaspar, raramente Alvin vira tanto luxo como o que se descortinara diante dele quando a porta interna da nave se abriu. O Mestre poderia ter sido muitas coisas, mas asceta não era. Só um pouco mais tarde ocorreu a Alvin que todo aquele conforto talvez não fosse extravagância futil, aquele pequeno mundo devia ter sido o lar do Mestre em muitas longas viagens entre as estrelas. Não havia controles visíveis de qualquer espécie, mas a grande tela oval que cobria completamente a parede mostrava que aquele não era um aposento comum. Diante dela dispunham-se três divãs baixos, o resto da cabine era ocupado por duas mesinhas e várias cadeiras acolchoadas, algumas das quais obviamente inadequadas ao uso por seres humanos. Depois de confortávelmente instalado diante da tela, Alvin olhou em torno, à procura do robô. Para sua surpresa, constatou que desaparecera, então localizou-o, depositado num desvão sob o teto curvo. Ele trouxera o Mestre, através do espaço, até a Terra e depois, como servo, acompanhara-o a Lys. Agora estava pronto, como se as eras sem fim nesse intervalo jamais tivessem existido, para voltar a cumprir suas tarefas. Alvin mentalizou uma ordem experimental e a grande tela estremeceu, ganhando vida. Diante dele estava a Torre de Loranne, curiosamente abatida e aparentemente deitada de lado. Novas experiências proporcionaram-lhe vistas do céu, da cidade e de grandes extensões do deserto. A definição era brilhantemente clara, quase artificial, embora não parecesse haver qualquer ampliação. Alvin prosseguiu suas experiências durante algum tempo, solicitando as vistas que imaginava, então, sentiu-se pronto para começar. — Leve-me a Lys. — A ordem foi bastante simples, mas como poderia a nave obedecer, se ele próprio não tinha nenhuma idéia quanto à direção a tomar? Alvin não havia pensado nisso, e quando a idéia lhe ocorreu a máquina já se movia sobre o deserto a uma tremenda velocidade. Deu de ombros, agradecendo mentalmente o fato de ter agora a seu dispor servos mais sábios do que ele próprio. Era difícil julgar a escala da imagem que passava velozmente pela tela, mas muitos quilômetros deviam estar sendo percorridos a cada minuto. A alguma distância da cidade, a cor do solo havia-se alterado de repente para um cinza-opaco, e Alvin entendeu que estava passando agora sobre o leito de um dos oceanos perdidos. No passado Diaspar devia ter-se situado muito perto da costa, conquanto não houvesse qualquer referência a isso, mesmo nos registros mais antigos. Por mais antiga que fosse a cidade, os oceanos deviam ter desaparecido muito antes de sua construção. Centenas de quilômetros depois, o solo elevou-se acentuadamente, voltando o deserto. De certa feita Alvin deteve sua nave sobre um curioso desenho de linhas entrecruzadas, que apareciam tenuamente através do manto de areia. Por um momento aquilo o intrigou, até compreender que estava contemplando as ruínas de alguma cidade esquecida. Não permaneceu ali muito tempo, era desalentador imaginar que bilhões de homens não haviam deixado outro traço de sua existência além daqueles sulcos na areia. A curva regular do horizonte estava se quebrando finalmente, transformando-se em montanhas que tão logo foram vislumbradas, já estavam sob ele. A máquina desacelerava-se agora, caindo para a Terra num grande arco de centenas de quilômetros. E de repente, lá embaixo, estava Lys. com suas florestas e rios intermináveis formando uma cena de beleza tão incomparável que por algum tempo ele se deteve a admirá-la. A leste, a terra estava imersa em sombras, e os grandes lagos flutuavam sobre ela como poças de noite mais escura. Mas em direção ao ocaso as águas dançavam e cintilavam, devolvendo em direção a ele cores que jamais pudera imaginar. Não foi difícil localizar Airlee — felizmente, pois o robô não podia guiá-lo além dali. Alvin esperara que isso acontecesse, e sentiu-se satisfeito por haver enfim descoberto um limite a seus poderes. Era improvável que o robô jamais tivesse ouvido falar de Airlee, de modo que a posição da aldeia não fora gravada em suas células de memória. Após algumas experiências, Alvin fez sua nave pousar na encosta de onde tivera sua primeira visão de Lys. Era facílimo controlar a máquina, bastava-lhe indicar seus desejos gerais e o robô cuidava dos detalhes. Alvin imaginou que seu servo ignoraria ordens perigosas ou impossíveis, embora não tivesse intenção de dar nenhuma ordem desse tipo, se pudesse evitar. Alvin tinha absoluta certeza de que ninguém vira sua chegada. Julgava isso importante, pois não tinha desejo algum de empenhar-se em combates mentais com Seranis outra vez. Seus planos ainda eram vagos, mas não lhe interessava correr riscos antes de haver estabelecido relações amistosas. O robô poderia agir como seu embaixador, enquanto ele permanecia em segurança na nave. Não encontrou ninguém na estrada para Airlee. Era estranho estar sentado na nave enquanto seu campo de visão se movia sem esforço pelo caminho familiar a escutar o sussurro da floresta. Ainda não aprendera a identificar-se plenamente com o robô, e o esforço que ele despendia para controlá-lo ainda era considerável. Já era quase noite quando chegou a Airlee, e as casinhas flutuavam em círculos de luz. Alvin mantinha-se nas sombras e já havia quase chegado à casa de Seranis quando foi descoberto. De repente ouviu-se um murmúrio zangado e estridente, e sua visão ficou toldada por um adejar de asas. Recuou instintivamente diante do ataque, mas logo percebeu o que estava acontecendo. Krif mais uma vez expressava seu ressentimento em relação a qualquer coisa que voasse sem asas. Não desejando melindrar a bela mas estúpida criatura, Alvin fez o robô deter-se e suportou tão bem quanto pôde os golpes que pareciam estar caindo sobre ele próprio. Embora estivesse sentado confortavelmente a quase dois quilômetros dali, não podia evitar esquivar-se aos ataques e ficou satisfeito quando Hilvar veio ver o que estava acontecendo. À chegada do dono, Krif fugiu, ainda sussurrando tristemente. No silêncio que se seguiu, Hilvar ficou olhando para o robô por alguns instantes. Depois sorriu. — Como vai, Alvin? — disse. — Que bom você ter voltado. Você ainda está em Diaspar? Não era a primeira vez que isso acontecia, Alvin, porém, sentiu uma invejosa admiração pela rapidez e precisão do raciocínio de Hilvar. — Não — respondeu, imaginando se o robô transmitiria sua voz com clareza. — Estou em Airlee, não muito longe. Mas por enquanto vou ficar onde estou. Hilvar riu. — Acho bom mesmo. Seranis perdoou você, mas a Assembléia… bem, isso é outra questão. Está-se realizando uma conferência no momento… a primeira de um tipo que jamais tivemos em Airlee. — Você quer dizer — perguntou Alvin — que seus Conselheiros vieram aqui pessoalmente? Com os poderes telepáticos que vocês têm, eu pensaria que as reuniões não fossem necessárias. — São raras, mas há ocasiões em que são consideradas convenientes. Não conheço a natureza exata da crise, mas três senadores já estão aqui e os outros são esperados para breve. Alvin não pôde deixar de sorrir ao imaginar como os acontecimentos em Diaspar haviam afetado a vida de Lys. Onde quer que ele fosse, parecia deixar atrás de si uma esteira de consternação e alarme. — Acho que seria boa idéia eu falar a essa assembléia de vocês — ele disse. — Quer dizer, desde que eu possa fazer isso com toda a segurança. — Seria seguro você vir aqui pessoalmente — disse Hilvar — se a assembléia prometer não tentar controlar sua mente outra vez. Se isso não acontecer, se eu fosse você, ficaria onde está. Vou conduzir seu robô aos senadores… Eles vão ficar transtornados ao vê-lo. Alvin sentiu novamente aquela sensação aguda, mas traiçoeira, de alegria, enquanto acompanhava Hilvar até o interior da casa. Ia encontrar-se com os governantes de Lys em pé de igualdade, conquanto não nutrisse rancor em relação a eles, agradava-lhe saber que agora era senhor da situação, dispondo de poderes que ainda não entendia perfeitamente. A porta da sala de conferências estava trancada e passou-se algum tempo antes que Hilvar pudesse atrair atenção. As mentes dos senadores, ao que parecia, estavam tão concentradas que era difícil interromper suas deliberações. Quando as portas deslizaram relutantemente, Alvin fez seu robô entrar rapidamente no aposento. Os três senadores permaneceram em suas cadeiras, paralisados, apenas uma leve expressão de surpresa passou pelo rosto de Seranis. Talvez Hilvar já lhe houvesse mandado um aviso, ou talvez ela tivesse esperado que, mais cedo ou mais tarde, Alvin regressaria. — Boa noite — disse Alvin, através do robô, como se sua entrada na sala fosse a coisa mais natural do mundo. Um dos senadores, um homem jovem, os cabelos meio grisalhos, foi o primeiro a se recuperar. — Como você entrou aqui? — ele perguntou, arfando. A razão de seu espanto era óbvia. Da mesma forma que Diaspar, também Lys devia ter tirado o subterrâneo de circulação. — Ora, vim da mesma maneira como cheguei da última vez — disse Alvin, incapaz de resistir à brincadeira. Dois dos senadores olharam fixamente para o terceiro, que abriu as mãos num gesto de perplexa resignação. O mais jovem, que falara antes, voltou a dirigir-se a ele. — Você não teve… dificuldade? — perguntou. — Absolutamente nenhuma — respondeu Alvin, resolvido a lhes aumentar a confusão. Percebeu que tivera êxito. — Voltei — continuou — por livre e espontânea vontade e porque tenho algumas notícias importantes para vocês. Contudo, em vista de nosso desacordo anterior, prefiro permanecer a distância no momento. Se eu aparecer pessoalmente, prometem não tentar restringir meus movimentos outra vez? Ninguém disse nada por algum tempo, e Alvin imaginou que pensamentos silenciosos estariam sendo trocados. Depois Seranis falou em nome de todos. — Não tentaremos controlá-lo outra vez… ainda que eu não ache que tenhamos tido muito sucesso antes. — Muito bem — disse Alvin. — Vou a Airlee o mais depressa que puder. Esperou até o robô ter voltado. Então, com todo cuidado, deu instruções à máquina e a fez repeti-las. Seranis, ele tinha certeza, não faltaria à sua palavra. Ainda assim, preferia salvaguardar sua linha de retirada. A porta da nave fechou-se silenciosamente às suas costas quando ele saiu. Daí a um momento, ouviu-se um assovio, como um suspiro arrastado e surpreso, enquanto o ar dava lugar à nave em ascensão. Por um instante, uma sombra escura obscureceu as nuvens, logo, a nave sumira no céu. Só então Alvin compreendeu que cometera um erro de cálculo, ligeiro, embora inquietante: o tipo de engano que poderia pôr a perder os planos mais elaborados. Esquecera-se de que os sentidos do robô eram mais agudos que os seus, e que a noite estava muito mais negra do que ele esperara. Mais de uma vez perdeu o caminho completamente, e por diversas vezes esteve para tropeçar em árvores. A floresta estava negra como breu, e de certa feita uma coisa de grandes dimensões veio em sua direção, em meio à vegetação. Houve um leve estalar de asas, e dois olhos de esmeralda olharam-no fixamente, na altura de seu ventre. Ele falou baixinho e uma língua incrivelmente longa roçou-lhe o rosto. Logo depois, um corpo poderoso esfregou-se afetuosamente nele e fugiu sem o menor som. Alvin não imaginava o que fosse. Não tardou que as luzes da vila brilhassem através das árvores, mas ele não necessitava mais delas para se orientar, pois o caminho sob seus pés se havia transformado num rio de embaçado fogo azul. O musgo que ele pisava era luminoso e suas pegadas deixavam manchas escuras que lentamente desapareciam atrás dele. Era uma visão bela e extasiante, e quando Alvin abaixou-se para pegar um pouco do estranho musgo, ele brilhou por minutos em suas mãos em concha, antes de a radiação acabar. Hilvar foi se encontrar com ele pela segunda vez do lado de fora da casa, e pela segunda vez apresentou-o a Seranis e aos senadores. Saudaram-no com uma espécie de respeito distante e relutante. Se lhes causou surpresa a ausência do robô, nada comentaram. — Peço desculpas — começou Alvin — por ter sido obrigado a deixar esta terra de maneira tão pouco digna. Talvez lhes interesse saber que sair de Diaspar foi quase tão difícil… — deixou que essa observação causasse o efeito pretendido, e depois acrescentou rapidamente: — Contei a meu povo tudo a respeito de Lys, e fiz tudo o que pude para dar uma impressão positiva. Mas Diaspar não quer saber de vocês. Apesar de tudo que eu disse, deseja evitar contaminação com uma cultura inferior. Foi maravilhoso contemplar a reação dos senadores, até mesmo a comedida Seranis ruborizou-se um pouco ante tais palavras. Se pudesse fazer com que Lys e Diaspar se sentissem suficientemente irritadas uma com a outra, pensou Alvin, mais da metade de seu problema estaria solucionada. Cada uma delas estaria tão ansiosa por demonstrar a superioridade de seu modo de vida que todas as barreiras cedo ruiriam. — Por que você voltou a Lys? — perguntou Seranis. — Porque desejo convencer vocês, da mesma forma que a Diaspar, que têm cometido um erro. — Não acrescentou sua outra razão: a de que em Lys estava o único amigo certo que ele tinha e de cuja ajuda ele precisava agora. Os senadores continuaram em silêncio, esperando que ele prosseguisse, e Alvin sabia que, através dos olhos e dos ouvidos daquelas pessoas, muitas outras inteligências viam e ouviam o que se passava ali. Era o representante de Diaspar, e toda Lys estava julgando sua cidade pelo que ele dissesse. Era uma enorme responsabilidade, e ele tinha consciência disso. Concatenou seus pensamentos e começou a falar. Seu tema era Diaspar. Descreveu a cidade como a vira pela última vez, sonhando no seio do deserto, suas torres fulgindo como arco-íris cativos contra o céu. Do tesouro de sua memória recolheu as canções que os poetas antigos haviam escrito em louvor de Diaspar, e falou dos homens incontáveis que haviam dedicado as vidas a aumentar-lhe a beleza. Ninguém, disse, poderia jamais esgotar os tesouros da cidade, por mais tempo que vivesse. Sempre haveria alguma coisa nova. Por algum tempo, descreveu as maravilhas que os homens de Diaspar haviam criado, tentou fazer com que cada uma das pessoas ali presentes captasse pelo menos um vislumbre da beleza que os artistas do passado haviam inventado para a admiração eterna do homem. E conjecturou, um tanto sonhadoramente, se seria verdade que a música de Diaspar fora o último som da Terra a ser transmitido para as estrelas. Ouviram-no até o fim, sem interrupções nem perguntas. Quando terminou já era muito tarde, e sentia-se mais cansado do que em qualquer outra ocasião em sua vida. A tensão e a excitação daquele longo dia abatiam-no por fim, e de repente ele adormeceu. Quando despertou, estava num quarto desconhecido, passaram-se alguns momentos antes que se lembrasse de que não estava mais em Diaspar. A volta de sua consciência era acompanhada pela difusão da luz a seu redor, até que dentro em pouco estava banhado pelo clarão suave e fresco do Sol matutino, que se filtrava pelas paredes transparentes. Alvin permaneceu meio adormecido, lembrando-se dos acontecimentos da véspera e imaginando que forças teria posto em ação agora. Com um som suave e musical, uma das paredes começou a dobrar-se de maneira tão complicada que a vista se cansava ao querer acompanhar os movimentos. Hilvar entrou pela abertura formada, olhando Alvin com uma expressão ao mesmo tempo divertida e preocupada. — Agora que você está acordado, Alvin, talvez queira me dizer finalmente qual será seu próximo lance e como foi que conseguiu chegar aqui. Os senadores estão saindo para examinar o subterrâneo, não conseguem entender como foi que você o usou. Você o usou? Alvin saltou da cama e espreguiçou-se. — Talvez seja melhor a gente ir falar com eles — disse. — Não quero fazer com que percam tempo. Agora, quanto à pergunta que você me fez… daqui a pouco vou mostrar a resposta. Já tinham quase chegado ao lago quando alcançaram os três senadores, e os dois grupos trocaram cumprimentos um tanto constrangidos. O Comitê de Investigações percebia que Alvin sabia onde ia, e o encontro inesperado deixara-os sem saber o que fazer. — Acho que não lhes contei tudo a noite passada — disse Alvin animadamente. — Não vim a Lys pelo antigo caminho, de modo que a tentativa de vocês de fechá-lo foi inteiramente desnecessária. Na verdade, o Conselho de Diaspar também o fechou, e em vão. Os rostos dos senadores denotavam perplexidade, enquanto uma solução após a outra passava por suas mentes. — Então, como foi que você chegou aqui? — perguntou o líder. De repente, surgiu uma expressão de entendimento em seus olhos, e Alvin percebeu que ele começara a compreender a verdade. Ficou a imaginar se havia captado sua ordem mental enviada para além das montanhas. Mas não disse nada, apontando em silêncio para o céu setentrional. Rápida demais para ser acompanhada pela vista, uma agulha de luz prateada cruzou as montanhas, deixando uma longa trilha de incandescência. A seis mil metros de altitude sobre Lys, ela se deteve. Não houve qualquer desaceleração, nenhum retardamento de sua velocidade colossal. A nave parou instantaneamente, de modo que o olho que a acompanhara continuou a percorrer um quarto do céu antes que o cérebro pudesse interromper-lhe o movimento. Dos céus desceu um estrondo, o som do ar esmagado e fendido pela violência da passagem da nave. Um pouco depois, brilhando à luz, ela veio pousar na encosta, a cem metros dali. Seria difícil dizer quem estava mais surpreso, Alvin, porém, foi o primeiro a se recobrar. Enquanto caminhavam, quase correndo, em direção à nave espacial, imaginava se o veículo normalmente viajava daquela maneira meteórica. O pensamento era desconcertante, embora não tivesse havido nenhuma sensação de movimento em sua primeira viagem. O mais admirável de tudo, entretanto, era que no dia anterior aquele engenho resplandecente estivera oculto sob uma espessa camada de rocha dura como ferro — o revestimento de terra ainda permanecia quando a nave se libertou do deserto. Só quando chegou à nave, queimando os dedos ao tocar inadvertidamente o casco do veículo, foi que Alvin compreendeu o que acontecera. Perto da ré ainda havia vestígios de terra, mas agora estavam fundidos, transformados em lava. Todo o restante fora eliminado, deixando a nu o invólucro tenaz, que nem o tempo nem qualquer força natural jamais poderiam atingir. Com Hilvar a seu lado, Alvin ficou de pé junto à porta aberta e olhou os senadores silenciosos. O que estariam pensando — na verdade, o que toda Lys estaria pensando? A julgar pelas expressões deles, era como se a capacidade de pensar alguma coisa lhes houvesse fugido… — Vou a Shalmirane — disse Alvin — e estarei de volta a Airlee dentro de uma hora mais ou menos. Mas isso é apenas o começo, enquanto estiver fora, desejo que meditem numa coisa: Esta máquina não é um veículo comum como os que os homens usavam para viajar sobre a Terra. E uma nave espacial, uma das mais velozes já construídas. Se desejarem saber como a encontrei, acharão a resposta em Diaspar. Mas vocês terão de ir lá, pois Diaspar jamais virá a vocês. Alvin virou-se em direção a Hilvar, fazendo um gesto para a porta. Hilvar hesitou apenas por um momento, olhando o cenário familiar ao seu redor. Depois, entrou na nave. Os senadores ficaram a olhar o veículo, que agora se movia com muita lentidão — pois sua viagem seria curta — a desaparecer no sul. Depois o jovem de cabelos meio grisalhos que liderava o grupo balançou os ombros filosofícamente e virou-se para um dos colegas: — Você sempre se opôs a nós, por desejarmos mudanças — ele disse —, e até aqui obteve o que quis. Mas creio que agora o futuro não pertence a nenhum de nossos grupos. Tanto Lys como Diaspar chegaram ao fim de uma era, e temos de conduzir a situação da melhor forma possível. — Acho que você tem razão — foi a resposta taciturna. — Estamos numa crise, e Alvin sabia o que dizia quando nos falou que fôssemos a Diaspar. Agora sabem a nosso respeito, e de nada adianta continuarmos a nos esconder. Acho que seria melhor estabelecermos contacto com nossos primos, talvez os encontremos mais dispostos a cooperar agora. — Mas o subterrâneo está fechado em ambas as extremidades! — Podemos abrir a nossa. Não demorará muito para que Diaspar faça a mesma coisa. As mentes dos senadores, tanto dos que estavam em Airlee como as dos que se encontravam espalhados por toda a Lys, consideraram a proposta e detestaram-na. Mas não viam outra alternativa. Mais cedo do que tinham o direito de esperar, a semente plantada por Alvin começava a frutificar. As montanhas ainda nadavam em sombras quando chegaram a Shalmirane. Do alto, a grande depressão da fortaleza parecia pequeníssima, parecia impossível que o destino da Terra houvesse outrora dependido de um círculo tão minúsculo. Quando Alvin fez a nave pousar entre as ruínas à beira do lago, a desolação do lugar gelou-lhe a alma. Abriu a porta e o silêncio do local penetrou na nave. Hilvar, que quase nada dissera durante o vôo, perguntou baixinho: — Por que você voltou aqui? Alvin só respondeu quando já haviam quase chegado à beira do lago: — Eu queria lhe mostrar como era a nave. E eu também esperava que o pólipo se houvesse reconstruído novamente. Creio que tenho uma dívida para com ele, e queria dizer-lhe o que foi que eu descobri. — Nesse caso — respondeu Hilvar — terá de esperar. Você voltou cedo demais. Alvin contara com isso. Tal possibilidade era mesmo remota e não se sentia desapontado com seu insucesso. As águas do lago estavam perfeitamente imóveis e já não batiam com o ritmo regular que tanto os intrigara na primeira visita. Alvin ajoelhou-se à beira da água e perscrutou-lhe as profundezas frias e escuras. Pequenos sinos translúcidos, arrastando tentáculos quase invisíveis, mexiam-se de um lado para outro sob a superfície. Alvin mergulhou a mão, tirando um deles da água. Mas jogou-o fora quase imediatamente, com uma leve exclamação de surpresa. A coisa o picara. Algum dia. dentro de anos, talvez séculos, aquelas geléias informes se reuniriam novamente e o grande pólipo renasceria, enquanto suas memórias se juntavam e sua consciência readquiria existência. Alvin imaginava como a criatura receberia as descobertas que ele fizera. Talvez não lhe agradasse saber a verdade a respeito do Mestre. Com efeito, poderia recusar-se a admitir que tantas eras de tão paciente espera haviam sido vãs. Mas teriam mesmo sido vãs? Por mais iludidas, a longa vigília dessas criaturas fora por fim recompensada. Como por milagre, tinham salvado o conhecimento anterior, que de outra forma poderia ter-se perdido para sempre. Agora podiam repousar finalmente, e o credo que abraçavam podia seguir o caminho de um milhão de outras fés que no passado se haviam acreditado eternas. Capítulo XIX Alvin e Hilvar caminharam num silêncio meditativo de volta à nave, não demorou que a fortaleza caísse novamente em sombras entre as colinas. Reduziu-se rapidamente de tamanho, até tornar-se um olho negro e sem pálpebra, fitando para sempre o espaço, logo eles a perderam em meio ao grande panorama de Lys. Alvin nada fez para deter a máquina, e subiram até ver toda a Lys abaixo deles, ilha verde num mar ocre. Jamais Alvin subira a tal altitude. Quando finalmente se detiveram, todo o crescente da Terra estava visível embaixo. Lys era pequeníssima agora — apenas uma mancha cor de esmeralda contra o deserto cor de ferrugem —, mas quase que do outro lado do globo alguma coisa brilhava como uma jóia multicor. Foi assim que, pela primeira vez, Hilvar viu a cidade de Diaspar. Ficaram sentados longamente, vendo a Terra girar sob eles. De todos os antigos poderes do Homem, aquele era certamente o que ele menos podia dar-se o luxo de perder. Alvin desejou poder mostrar o mundo, como o via agora, aos governantes de Lys e de Diaspar. — Hilvar — disse finalmente —, você acha certo o que estou fazendo? A pergunta surpreendeu Hilvar, que não suspeitava das súbitas dúvidas que às vezes se apoderavam do amigo, e ainda não sabia nada a respeito do encontro de Alvin com o Computador Central e do impacto daquela entrevista sobre seu espírito. Não era uma pergunta fácil de se responder casualmente, tal como Khedron, embora com menos razão, Hilvar sentia que seu próprio caráter estava sendo submergido. Estava sendo irremediavelmente tragado pelo turbilhão que Alvin deixava em sua passagem pela vida. — Acho que você está certo — Hilvar respondeu vagarosamente. — Nossos povos estão separados há muito tempo. — Isso, ele sabia, era verdade, embora soubesse que seu próprio sentimento devia deturpar sua resposta. Mas Alvin ainda estava preocupado. — Há um problema que me aflige — Alvin continuou, com a voz trêmula. — É a diferença na duração de nossas vidas. — Não disse mais nada, mas cada um deles sabia o que o outro estava pensando. — Isso também já me preocupou — admitiu Hilvar —, mas creio que o problema se resolverá por si mesmo quando nossos povos se encontrarem novamente. Não podemos estar ambos certos — nossas vidas podem ser curtas demais e a de vocês evidentemente é longa demais. Por fim, haverá um ajuste. Alvin ficou a pensar. Nesse caminho, era verdade, estava a única esperança, mas as eras de transição seriam realmente difíceis. Lembrou-se novamente das palavras amargas de Seranis: «Tanto ele como eu estaremos mortos há séculos enquanto você ainda for um jovem.» Muito bem. Aceitaria as condições. Mesmo em Diaspar todas as amizades viviam sob a mesma sombra, quer a separação estivesse a uma distância de cem ou um milhão de anos, isso pouca diferença fazia no fim. Alvin sabia, com uma certeza que superava toda e qualquer lógica, que o bem-estar da raça exigia a mistura das duas culturas, em tal caso, a felicidade individual não tinha importância. Por um momento, viu a humanidade como algo mais do que o pano de fundo vivo de sua própria vida, e aceitou sem remorso a infelicidade que sua escolha poderia vir a causar um dia. Lá embaixo, o mundo continuava seu giro interminável. Sentindo a tristeza do amigo, Hilvar nada disse, até Alvin quebrar o silêncio. — Quando saí de Diaspar pela primeira vez — disse ele — não sabia o que poderia encontrar. Antes, Lys me teria satisfeito… mais do que satisfeito… e, no entanto, agora tudo na Terra parece tão pequeno e sem importância. Cada uma das descobertas que fiz levantou perguntas maiores e horizontes mais largos. Fico pensando onde isso irá terminar… Hilvar nunca vira Alvin tão pensativo, e não quis interromper-lhe o solilóquio. Aprendera muito sobre o amigo nos últimos minutos. — O robô me disse — continuou Alvin — que esta nave pode chegar aos Sete Sóis em menos de um dia. Acha que devo ir? — Acha que eu poderia detê-lo? — respondeu Hilvar, serenamente. Alvin sorriu. — Isso não é resposta — ele disse. — Quem sabe o que há lá, no espaço? Os Invasores podem ter deixado o Universo, mas talvez haja outras inteligências hostis ao Homem. — Por que haveria? — perguntou Hilvar. — Essa é uma das questões que nossos filósofos vêm debatendo há eras. Não é provável que uma raça verdadeiramente seja inamistosa. — Mas os Invasores…? — São mesmo um enigma, admito. Se eram realmente maus, já devem ter se destruído. E mesmo que isso não tenha acontecido… — Hilvar apontou para os desertos sem fim lá embaixo. — No passado tivemos um Império. O que temos agora que pudessem cobiçar? Alvin sentiu-se surpreso com o fato de outra pessoa ter o mesmo ponto de vista seu. — Toda sua gente pensa assim? — perguntou. — Só uma minoria. As pessoas comuns não se preocupam com isso, mas provavelmente diriam que se os Invasores desejassem mesmo destruir a Terra já o teriam feito há muito tempo. Não creio que alguém tenha realmente medo deles. — As coisas são muito diferentes em Diaspar — disse Alvin. — Meus conterrâneos são grandes covardes. Ficam aterrorizados só em pensar em sair da cidade, e não sei o que acontecerá quando souberem que localizei uma nave espacial. Jeserac já terá contado isso ao Conselho, e eu gostaria de saber o que estão fazendo agora. — Posso dizer-lhe. Estão se preparando para receber a primeira delegação de Lys. Seranis acaba de me informar. Alvin olhou novamente para a tela. Podia abarcar a distância entre Lys e Diaspar com um olhar. Embora um de seus objetivos tivesse sido atingido, isso agora parecia uma ninharia. No entanto, sentia grande prazer. Certamente, as longas eras de isolamento estéril estavam chegando ao fim. Saber que tivera êxito naquilo que antes representara sua principal missão acabou por dissipar as últimas dúvidas de Alvin. Ele cumprira sua finalidade na Terra, mais depressa e mais completamente do que ousara esperar. Estava aberto o caminho para o que poderia ser sua última aventura, certamente a maior delas. — Você vem comigo, Hilvar? — perguntou, um tanto constrangido. Hilvar olhou-o firmemente. — Não havia necessidade de perguntar isso, Alvin — ele respondeu. — Eu disse a Seranis e a todos os meus amigos que iria com você… há uma hora atrás. Já estavam a grande altitude quando Alvin deu ao robô suas últimas instruções. A nave imobilizara e a Terra estava a cerca de dois mil quilômetros abaixo, quase enchendo o céu. Parecia muito pouco atraente e Alvin imaginou quantas naves haveriam pairado ali por um momento, no passado, antes de continuarem viagem. Houve uma pausa apreciável, como se o robô estivesse verificando controles e circuitos, sem utilização há eras geológicas. Ouviu-se então um leve som, o primeiro de um tipo que Alvin jamais ouvira de uma máquina. Era um zumbido tênue, que subiu rapidamente, oitava a oitava, até perder-se no limite da audição. Não houve nenhuma sensação de mudança ou movimento, mas de repente notou que as estrelas estavam passando pela tela. A Terra reapareceu, saiu do campo de visão e depois tornou a surgir, em posição ligeiramente diferente. A nave estava «caçando», oscilando no espaço como uma agulha de bússola à procura de seu norte. Por alguns minutos, os céus giraram e contorceram-se em torno deles, até que finalmente a nave se deteve, como um projétil gigantesco apontado para as estrelas. Centralizado na tela, o grande anel dos Sete Sóis resplandecia em sua beleza multicor. Da Terra ainda era visível um pedaço, como um crescente escuro orlado do ouro e do escarlate do poente. Alguma coisa estava acontecendo agora, percebia Alvin, que ultrapassava toda a sua experiência. Esperou, agarrado à poltrona, enquanto os segundos transcorriam e os Sete Sóis refulgiam na tela. Não houve qualquer som, apenas um arranco repentino que pareceu embaçar a visão: a Terra desaparecera como se mão gigantesca a houvesse empurrado. Estavam sós no espaço, sozinhos com as estrelas e um Sol estranhamente reduzido. A Terra desaparecera como se nunca houvera existido. Mais uma vez sentiu-se aquele arranco, e com ele um leve murmúrio, como se pela primeira vez os geradores estivessem exercendo parcela apreciável de sua força. No entanto, por um momento, foi como se nada tivesse acontecido, depois Alvin percebeu que o próprio Sol desaparecera e que as estrelas passavam lentamente pela nave, ficando para trás. Olhou para trás por um instante e viu… nada. O céu atrás dele havia desaparecido inteiramente, obliterado por um hemisfério de noite. Enquanto olhava, podia ver as estrelas sendo tragadas na treva, sumindo como centelhas caídas na água. A nave viajava muito mais depressa do que a luz, e Alvin pensou que o espaço familiar da Terra e do Sol não mais o detinha. Quando aquele arranco súbito e vertiginoso ocorreu pela terceira vez, seu coração quase parou de bater. O estranho embaçamento da visão era inequívoco, por um momento, tudo quanto o cercava tornou-se distorcido a ponto de ficar irreconhecível. O significado dessa distorção lhe ocorreu num átimo de inspiração que ele não poderia explicar. Era real, e não uma ilusão de sua vista. De alguma forma estava recebendo, ao passar através da delgada película do Presente, um vislumbre das coisas que estavam ocorrendo no espaço a seu redor. No mesmo instante, o murmúrio dos geradores elevou-se a um estrondo que sacudiu a nave — som duplamente imponente, pois era o primeiro grito de protesto que Alvin escutava de uma máquina. Depois tudo acabou e o súbito silêncio como que retiniu em seus ouvidos. Os grandes geradores haviam cumprido sua tarefa. Não seriam mais necessários até o fim da viagem. As estrelas adiante brilharam, branco-azuladas, e desapareceram na faixa do ultravioleta. No entanto, por algum ato mágico da ciência ou da natureza, os Sete Sóis ainda eram visíveis, embora suas cores e posições se houvessem alterado sutilmente. A nave arrojava-se na direção deles por um túnel de escuridão, além das fronteiras de espaço e tempo, a uma velocidade enorme demais para a mente conceber. Era difícil imaginar que já haviam sido atirados para fora do sistema solar a uma velocidade que, a menos que reduzida em breve, logo os faria atravessar o núcleo da Galáxia e enveredar pelo grande vazio além dela. Nem Alvin nem Hilvar poderiam conceber a imensidão real da jornada, as grandes sagas de exploração haviam completamente alterado a perspectiva do Homem em relação ao Universo, e, ainda agora, milhões de séculos mais tarde, as antigas tradições não tinham ainda morrido inteiramente. Houve no passado uma nave. sussurrava a lenda, que circunavegara o Cosmos no lapso entre o nascer e o pôr-do-sol. Os bilhões de quilômetros entre as estrelas nada significavam diante de tais velocidades. Para Alvin essa viagem era pouquíssimo maior, e talvez menos perigosa, do que sua primeira jornada a Lys. Foi Hilvar quem expressou seus pensamentos quando os Sete Sóis começaram a brilhar mais forte diante deles. — Alvin — comentou ele —, essa formação não pode ser natural. O outro assentiu. — Tenho pensado isso há anos, mas ainda me parece fantástico. — O sistema pode não ter sido construído pelo Homem — concordou Hilvar-, mas é forçoso que tenha sido criado pela inteligência. A natureza jamais poderia ter formado aquele círculo perfeito de estrelas, todas com o mesmo brilho. E não há nada no universo visível semelhante ao Sol Central. — Mas por que se teria construído uma coisa dessas? — Ah, posso imaginar várias razões. Talvez seja um sinal, de modo que qualquer nave que entrasse em nosso universo soubesse onde procurar vida. Talvez marque o centro da administração galáctica. Ou talvez… e por algum motivo creio que é essa a explicação verdadeira… trata-se simplesmente da maior de todas as obras de arte. Mas é tolice especular agora. Em poucas horas saberemos toda a verdade. «Saberemos toda a verdade.» Talvez, pensou Alvin… mas quanto dessa verdade jamais saberemos? Parecia estranho que naquele momento, enquanto deixava Diaspar e, na verdade, a própria Terra, a uma velocidade além de qualquer compreensão, sua mente voltasse mais uma vez para o mistério de sua origem. No entanto, talvez isso não fosse tão surpreendente, ele aprendera muitas coisas desde que chegara pela primeira vez a Lys, mas até o momento não tivera uma pausa para refletir tranqüilamente. Nada havia que ele pudesse fazer agora senão esperar, seu futuro imediato estava controlado por uma máquina maravilhosa — certamente uma das supremas realizações técnicas de todos os tempos — que o transportava para o coração daquele universo. Era um momento para reflexão e meditação, quisesse ele ou não. Mas primeiro contaria a Hilvar tudo quanto lhe acontecera desde que se tinham despedido apressadamente, apenas dois dias antes. Hilvar ouviu a história sem comentários. Sem pedir uma explicação, parecia entender imediatamente tudo quanto Alvin descrevia, não demonstrando surpresa nem mesmo quando o amigo lhe falou do encontro com o Computador Central e da operação que este realizara na mente do robô. Não que ele fosse incapaz de admiração, mas a história do passado estava cheia de maravilhas que poderiam igualar-se a qualquer coisa na história contada por Alvin. — É óbvio — ele disse, terminada a narrativa — que o Computador Central deve ter recebido instruções especiais com relação a você, quando foi construído. A essa altura, você deve ter entendido por quê. — Creio que sim. Khedron deu-me parte da resposta quando explicou a maneira pela qual os construtores de Diaspar haviam tomado providências para evitar que a cidade se tornasse decadente. — Acha que você e os outros Únicos antes de você fazem parte do mecanismo social que impede a completa estagnação? De modo que, enquanto os Bufões são fatores corretivos a curto prazo, você e os de sua espécie são, por assim dizer, fatores corretivos a longo prazo? Hilvar expressara a idéia melhor do que Alvin poderia fazê-lo, mas ainda assim Alvin não concebia perfeitamente o que Hilvar tinha em mente. — Creio que a verdade seja mais complicada do que isso. Parece até que houve um conflito de opiniões quando a cidade foi construída, uma divergência entre aqueles que desejavam fechá-la completamente ao mundo externo e aqueles que defendiam a manutenção de certos contactos. A primeira facção venceu, mas os outros não admitiram a derrota. Creio que Yarlan Zey deve ter sido um de seus líderes, mas não dispunha de força para agir abertamente. Fez o melhor que pôde, deixando o subterrâneo em funcionamento e garantindo que a longos intervalos saísse da Casa da Criação alguém que não compartilhasse dos medos de todos os seus compatriotas. Na verdade, fico pensando… — Alvin fez uma pausa, e seus olhos se toldaram, pensativos, de modo que por um instante ele pareceu esquecido de onde estava. — Em que está pensando agora? — perguntou Hilvar. — Acabo de imaginar… talvez eu seja Yarlan Zey. É perfeitamente possível. Ele pode ter programado sua personalidade nos Bancos de Memória, confiando em que ela quebrasse os padrões de Diaspar antes de estarem fixados de uma vez por todas. Algum dia terei de descobrir o que aconteceu aos outros Únicos. Isso poderá ajudar a completar as lacunas do quadro. — E Yarlan Zey… ou quem quer que tenha sido… também instruiu o Computador Central para dar assistência especial aos Únicos, sempre que fossem criados — conjecturou Hilvar, seguindo a mesma linha de raciocínio. — Exatamente. A ironia é que eu poderia ter recebido toda informação que queria do Computador Central, sem qualquer ajuda do pobre Khedron. O Computador me teria dito muito mais do que jamais disse a ele. Mas não resta dúvida de que Khedron poupou-me muito tempo, ensinando-me muitas coisas que eu nunca poderia ter aprendido sozinho. — Creio que sua teoria cobre todos os fatos conhecidos — disse Hilvar cautelosamente. — Infelizmente, ainda deixa em aberto o maior problema de todos… a finalidade original de Diaspar. Por que sua gente tentou fingir que o mundo fora da cidade não existia? Essa é uma pergunta que eu gostaria de ver respondida. — É uma pergunta que pretendo responder — disse Alvin. — Mas não sei quando… nem como. Assim continuaram a discutir e a sonhar, enquanto hora a hora os Sete Sóis se separavam até encherem aquele estranho túnel de noite pelo qual a nave estava a viajar. Então, uma a uma as seis estrelas exteriores desapareceram na orla da escuridão e por fim só restou o Sol Central. Ainda fulgia com a luz perolada que o distinguia de todas as outras. A cada minuto, seu brilho aumentava, até que deixou de ser um ponto, transformando-se num disco, a princípio minúsculo, que logo começou a crescer diante deles… A advertência foi das mais breves: por um instante, uma nota profunda e clangorosa vibrou pela câmara. Alvin agarrou-se aos braços de sua poltrona, embora o gesto fosse inútil. Mais uma vez os grandes geradores ganharam vida e, de maneira mais que repentina, as estrelas reapareceram. A nave caíra de volta no espaço, regressara ao universo de sóis e planetas, ao mundo natural onde nada podia ser mais rápido do que a luz. Já se encontravam dentro do Sistema dos Sete Sóis, pois o grande anel de blocos coloridos dominava agora o céu. E que céu! Todas as estrelas conhecidas, todas as constelações familiares, haviam desaparecido. A Via Láctea não era mais uma tênue faixa de bruma quase no canto do céu, encontravam-se no centro mesmo da criação, e o grande círculo de Estrada de São Tiago dividia agora o Universo em duas partes. A nave ainda viajava celeremente em direção ao Sol Central, e as seis estrelas restantes do sistema eram como que faróis coloridos dispostos no céu. Perto da mais próxima viam-se as centelhas diminutas de planetas circulantes, mundos de enormes dimensões para serem visíveis a tal distância. A causa da luz nacarada do Sol Central era agora perfeitamente compreensível. A grande estrela estava envolta numa auréola de gás que lhe abrandava a radiação e lhe dava sua cor característica. A névoa em torno só podia ser vista indiretamente, e estava contorcida em formas estranhas que enganavam o olho. Mas ali estava, e, quanto mais se olhava, mais ampla ela parecia ser. — Bem, Alvin — disse Hilvar —, temos muitos mundos entre os quais escolher. Ou você espera explorar todos eles? — Por sorte isso não será necessário — disse Alvin. — Se conseguirmos estabelecer contacto em alguma parte, teremos a informação que desejamos. O mais lógico seria nos dirigirmos para o maior planeta do Sol Central. — A menos que seja grande demais. Alguns planetas, ouvi dizer, eram tão grandes que a vida humana não poderia existir neles… Os homens seriam esmagados sob seu próprio peso. — Duvido que isso seja verdade aqui, tenho certeza de que esse sistema é inteiramente artificial. Em qualquer caso, poderemos ver do alto se existem cidades e edifícios. Hilvar apontou para o robô: — O problema foi solucionado para nós. Não se esqueça de que nosso guia já esteve aqui. Ele nos está conduzindo… e o que será que ele pensa a respeito? Alvin também estava cogitando sobre a mesma coisa. Mas seria correto — faria algum sentido — imaginar que o robô sentisse qualquer coisa semelhante a emoções humanas, agora que retornava à terra antiga do Mestre, depois de tantas eras passadas? Em toda sua convivência com o robô, desde que o Computador Central liberara os bloqueios que o tornavam mudo, nunca o vira demonstrar qualquer sentimento ou emoção. A máquina havia respondido as suas perguntas e obedecido as suas ordens, mas sua verdadeira personalidade se mantivera inteiramente inacessível. Que ela possuía uma personalidade, era coisa de que Alvin não duvidava, caso contrário não teria sentido a obscura sensação de culpa que o afligira ao lembrar-se do truque de que fora vítima… ele e seu companheiro agora latente. Ele ainda acreditava em tudo quanto o Mestre lhe ensinara. Embora o tivesse visto fraudar seus milagres e dizer mentiras a seus seguidores, essas inconveniências não lhe afetavam a lealdade. O robô era capaz, como muitos seres humanos antes dele, de conciliar conjuntos de dados discordantes. Agora, estava acompanhando suas imemoriais memórias de volta à origem. Quase perdida no clarão do Sol Central, havia uma pálida centelha, e em torno dela os brilhos ainda mais tênues de mundos ainda menores. A viagem fabulosa estava chegando ao fim: em breve ficariam sabendo se ela teria sido vã. Capítulo XX O planeta de que se aproximavam estava agora a somente alguns milhões de quilômetros, uma bela esfera de luz multicor. Não havia escuridão em nenhuma parte de sua superfície, pois, à medida que ele girava sob o Sol Central, os demais astros marchavam um a um por sobre seus céus. Alvin percebia agora com toda clareza o significado das últimas palavras do Mestre: «É lindo contemplar as sombras coloridas dos planetas da luz eterna». Estavam agora tão perto que podiam ver continentes e oceanos, bem como uma diáfana bruma de atmosfera. No entanto, alguma coisa os intrigava nas marcas da superfície, e logo compreenderam que as divisões entre terra e água eram curiosamente regulares. Os continentes do planeta não se mostravam como a natureza os fizera — mas decerto dar forma a um mundo teria sido tarefa desprezível para aqueles que haviam construído seus sóis! — Não se trata de oceanos, absolutamente! — exclamou Hilvar, de repente. — Veja… podem-se ver marcas neles! Só quando o planeta estava mais perto é que Alvin pôde entender o que o amigo queria dizer. Depois notou faixas claras e linhas ao longo das fronteiras dos continentes, bem para dentro das linhas que ele tomara como os limites do mar. Essa visão encheu-o de dúvida, pois conhecia bem o significado dessas linhas. Já as vira antes, no deserto além de Diaspar, e elas lhe informavam que a viagem tinha sido em vão. — Este planeta é tão seco como a Terra — ele disse, aborrecido. — Toda sua água desapareceu… essas marcas são de leitos de sal, onde os mares se evaporaram. — Eles nunca deixariam isso acontecer — respondeu Hilvar. — Acho que, no final das contas, chegamos atrasados demais. Seu desapontamento era tamanho que Alvin preferiu não voltar a falar, limitando-se a olhar em silêncio o grande mundo à sua frente. Com majestosa lentidão, o planeta girava abaixo da nave, e sua superfície erguia-se imponentemente para encontrar-se com eles. Agora já podiam ver as construções — minúsculas incrustações brancas por toda parte, menos nos próprios leitos oceânicos. No passado, aquele mundo fora o centro do Universo. Agora, jazia imóvel, seus ares vazios, e no solo não se via nenhum ponto em movimento que traduzisse vida. Mesmo assim, a nave ainda deslizava resolutamente sobre o mar congelado de pedra — um mar que aqui e ali assumira o feitio de grandes ondas que desafiavam o céu. Depois a nave imobilizou-se, como se finalmente o robô houvesse relacionado suas memórias à fonte. Sob eles elevava-se uma coluna de pedra branca como a neve, que brotava do centro de um imenso anfiteatro de mármore. Alvin esperou um pouco mais, então, como a máquina continuasse imóvel, instruiu-a a pousar ao pé da coluna. Ainda agora, Alvin reservava alguma esperança de encontrar vida no planeta. Essa esperança dissipou-se instantaneamente, assim que contemplou a paisagem. Nunca em sua vida, nem mesmo na desolação de Shalmirane, estivera em meio a um silêncio tão profundo. Na Terra havia sempre o murmúrio de vozes, a agitação de criaturas vivas, ou o sussurro do vento. Ali não havia nada, nem nunca voltaria a haver. — Por que você nos trouxe a este lugar? — perguntou Alvin. Tinha pouco interesse pela resposta, mas o ímpeto de sua busca ainda o fazia prosseguir, mesmo quando já perdera todo entusiasmo por levá-la adiante. — O Mestre partiu daqui — respondeu o robô. — Era a explicação que eu esperava — disse Hilvar. — Percebe a ironia disso tudo? Ele fugiu desse mundo em desgraça… Agora veja o monumento erguido em sua homenagem! A colossal coluna de pedra teria cem vezes a altura de um homem, e achava-se colocada sobre um círculo de metal um pouco acima do nível da planície. Não tinha qualquer marca, nem inscrição alguma. Durante quantos milhares ou milhões de anos, conjecturou Alvin, os discípulos do Mestre não se teriam reunido ali para cultuá-lo? E porventura teriam sabido que ele morrera no exílio, na distante Terra? Isso não fazia diferença alguma agora. Tanto o Mestre como seus seguidores estavam sepultados no esquecimento. — Vamos lá fora — instou Hilvar, procurando tirar Alvin daquele estado de depressão. — Viajamos metade do Universo para vermos esse lugar. Pelo menos você pode fazer um esforço para sair da nave. Apesar de tudo, Alvin sorriu e seguiu Hilvar pela câmara de descompressão. Uma vez lá fora, começou a animar-se um pouco mais. Mesmo que aquele mundo estivesse morto, deveria possuir alguma coisa de interesse, que o ajudasse a resolver alguns dos mistérios do passado. O ar era bolorento, mas respirável. Apesar dos muitos sóis no céu, a temperatura era baixa. Apenas o disco branco do Sol Central proporcionava algum calor real, e ainda assim tal calor parecia ter perdido força em sua passagem através da bruma em torno do astro. Ou outros sóis forneciam partículas de cor, mas nenhum calor. Alguns minutos bastaram para assegurar que o obelisco nada lhes poderia informar. O material resistente de que era feito mostrava os sinais claros de sua idade, os cantos estavam arredondados, e o metal sobre que repousava fora gasto pelos pés de gerações de discípulos e visitantes. Era estranho pensar que eles poderiam ser os últimos de muitos bilhões de seres humanos a se postarem naquele ponto. Hilvar estava prestes a sugerir que voltassem à nave e sobrevoassem os edifícios mais próximos quando Alvin notou uma fenda longa e estreita no piso de mármore do anfiteatro. Percorreram-na por uma distância considerável, vendo a fenda ampliar-se cada vez mais, até permitir que um homem a abarcasse com as pernas. Daí a pouco, estavam ao lado de seu ponto de origem. A superfície da arena fora esmagada e despedaçada, formando enorme depressão rasa, com mais de um quilômetro e meio de comprimento. Não era preciso muita imaginação para adivinhar a causa daquilo. Há muitas eras — ainda que certamente muito depois daquele mundo ter sido abandonado — uma imensa forma cilíndrica repousara ali e depois se erguera novamente em direção ao espaço, deixando o planeta entregue às suas lembranças. Quem teriam sido? De onde teriam vindo? Alvin só podia conjecturar. Jamais saberia quanto tempo havia chegado depois daqueles visitantes — se mil ou um milhão de anos. Caminharam em silêncio de volta para sua própria nave (decerto insignificante em comparação com o monstro que um dia já estivera naquele mesmo lugar!), e sobrevoaram lentamente a arena, até chegarem ao mais imponente dos edifícios que a circundavam. Ao pousarem diante de sua suntuosa entrada, Hilvar apontou para uma coisa que Alvin notara no mesmo momento. — Esses edifícios não parecem seguros. Veja todas aquelas pedras caídas ali, só por milagre ainda estão de pé. Se houvesse tempestades neste planeta, já teriam sido destruídos há muito tempo. Acho que não é aconselhável entrarmos em qualquer um deles. — Não vou fazer isso. Vou mandar o robô… ele anda muito mais depressa do que nós, e não provocará nenhuma perturbação que possa fazer com que a estrutura desmorone em cima dele. — Hilvar aprovou a precaução, mas também insistiu numa outra, em que Alvin não havia pensado. Antes do robô sair para seu reconhecimento, Alvin fez com que ele passasse uma série de instruções para o cérebro da nave. quase igualmente inteligente, de modo que, se acontecesse alguma coisa ao piloto, pudessem pelo menos voltar em segurança para a Terra. Foi preciso pouco tempo para ambos se convencerem de que aquele mundo pouco tinha a oferecer. Juntos, viram quilômetros de corredores e passagens vazias e atapetadas de poeira passarem pela tela, enquanto o robô explorava aqueles labirintos vazios. Todos os edifícios projetados por seres inteligentes, qualquer que seja a forma de seus corpos, devem obedecer a certas leis básicas, e após algum tempo mesmo as formas arquitetônicas mais exóticas deixam de provocar surpresa, e a mente passa a se cansar da repetição, tornando-se ademais incapaz de absorver novas impressões. Aqueles edifícios, ao que parecia, tinham sido residenciais, e os seres que neles residiam teriam aproximadamente o mesmo tamanho dos homens. Talvez fossem mesmo homens, na verdade, havia um número surpreendente de cômodos e desvãos em que só poderiam penetrar criaturas voadoras, mas isso não significava que os construtores dessa cidade fossem alados. Poderiam utilizar dispositivos pessoais de neutralização da grávidade, os quais no passado tinham sido de uso comum, mas dos quais hoje não se encontrava sinal em Diaspar. — Alvin — disse Hilvar finalmente —. poderíamos passar um milhão de anos explorando esses edifícios. É óbvio que não foram apenas abandonados, foram cuidadosamente despidos de qualquer coisa de valor que possuíam. Estamos perdendo tempo. — Então, o que você sugere? — perguntou Alvin. — Devíamos examinar mais duas ou três áreas desse planeta e ver se são iguais… como espero que sejam. Depois faríamos um exame igualmente rápido dos outros planetas, apenas aterrissando se parecerem fundamentalmente diferentes ou se observarmos alguma coisa inusitada. Isso é tudo que podemos fazer, a menos que desejemos passar aqui o resto da vida. Isso era verdade, o que eles desejavam era estabelecer contacto com vida inteligente, e não realizar pesquisas arqueológicas. A primeira tarefa poderia ser cumprida em poucos dias, se é que seria cumprida, a segunda exigiria séculos de trabalho por exército de homens e robôs. Deixaram o planeta duas horas depois, satisfeitos por saírem dali. Mesmo quando fervilhante de vida, pensou Alvin, aquele mundo de edifícios intermináveis deveria ter sido muito deprimente. Não havia sinais de parques ou qualquer espaço aberto onde pudesse ter existido vegetação. Aquele mundo fora inteiramente estéril e era difícil imaginar a psicologia dos seres que haviam vivido ali. Se o próximo planeta fosse idêntico, resolveu Alvin, provavelmente abandonaria sua busca ali mesmo. Mas tal não aconteceu, com efeito, teria sido impossível imaginar contraste maior. Esse planeta estava perto do Sol, e até mesmo do espaço ele parecia quente. Achava-se parcialmente coberto de nuvens baixas, o que indicava água abundante, mas não havia sinais de oceanos. Tampouco via-se sinal de inteligência, circularam o planeta por duas vezes sem vislumbrar um único artefato sequer, de qualquer espécie. Todo o globo, dos pólos ao equador, estava recoberto por um manto de um verde virulento. — Acho melhor termos cuidado aqui — disse Hilvar. — Este mundo está vivo… e não gosto nada da cor dessa vegetação. Seria melhor permanecermos no interior da nave, sem abrir a câmara. — Nem mesmo para deixar o robô sair? — Nem isso. Você já esqueceu o que é a doença, e, embora meu povo saiba como enfrentá-la, estamos muito longe da Terra e pode haver perigos aqui que não podemos pressentir. Acho que este mundo desgovernou-se. No passado pode ter sido um grande jardim ou parque, mas quando foi abandonado a natureza tomou conta dele outra vez. Jamais poderia ser assim quando o sistema era habitado. Alvin não duvidou de que Hilvar tivesse razão. Havia alguma coisa maléfica, algo de hostil a toda ordem e regularidade, em que se baseavam tanto Lys como Diaspar, na anarquia biológica que reinava lá embaixo. Ali, uma batalha incessante tinha sido travada durante um bilhão de anos, seria melhor precaverem-se contra os sobreviventes. Desceram cautelosamente numa ampla planície, tão uniforme que impunha um problema imediato. O terreno era limitado por uma área mais elevada, completamente coberta de árvores cuja altura só podia ser objeto de conjectura — estavam tão juntas umas das outras, e tão cercadas de vegetação rasteira, que seus troncos se achavam praticamente soterrados. Entre os galhos mais altos voavam muitas criaturas aladas, embora se movessem com tamanha rapidez que se tornava impossível dizer se eram animais ou insetos… ou nenhuma dessas coisas. Aqui e ali, um gigante da floresta lograra elevar-se alguns metros sobre os vizinhos em batalha, os quais haviam formado uma breve aliança a fim de abater e destruir a vantagem que ele havia conquistado. Apesar do fato de ser uma batalha silenciosa, travada com demasiada lentidão para que a vista a acompanhasse, a impressão de conflito impiedoso e implacável era inequívoca. A planície, por outro lado, parecia plácida. Era chapada, estendendo-se até o horizonte, e coberta de relva fina e espinhenta. Embora descessem a apenas quinze metros de altura, não havia sinal de vida animal, o que Hilvar achou surpreendente. Concluiu que os animais talvez tivessem ficado com medo de sua aproximação, escondendo-se no solo. Pairaram a pouca altura sobre a planície, enquanto Alvin tentava convencer Hilvar de que seria seguro abrir a câmara pneumática, e Hilvar pacientemente explicava coisas como bactérias, fungos, vírus e micróbios — idéias que Alvin achava difícil visualizar e, mais difícil ainda, aplicar a si próprio. A discussão já se prolongava há alguns minutos quando notaram algo estranho. A tela, que há pouco estivera mostrando a floresta diante deles, ficara vazia. — Foi você quem a desligou? — perguntou Hilvar, com a mente, como de costume, um pouco à frente da de Alvin. — Não — respondeu Alvin, sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha, enquanto pensava na única explicação. — Você a desligou? — perguntou ao robô. — Não — foi a resposta. Com um suspiro de alívio, Alvin afastou da mente a idéia de que o robô pudesse ter começado a agir segundo seu próprio arbítrio, de que ele pudesse estar a braços com um motim mecânico. — Nesse caso, por que a tela está vazia? — perguntou. — Os receptores de imagens foram cobertos. — Não compreendo — disse Alvin, esquecendo-se por um momento de que o robô só agia em resposta a ordens ou perguntas definidas. Recobrou-se depressa e perguntou: — O que foi que cobriu os receptores? — Não sei. A literalidade da mente dos robôs podia às vezes ser tão irritante quanto a verbosidade de seres humanos. Antes que Alvin pudesse continuar o interrogatório, Hilvar interrompeu. — Diga-lhe que levante a nave — disse, com um tom de urgência na voz. Alvin repetiu a ordem. Não houve sensação alguma de movimento, em nenhum momento. Depois, lentamente, a imagem recompôs-se na tela, ainda que a princípio baça e distorcida. No entanto, mostrava o suficiente para pôr fim à discussão sobre aterrissagem. A planície não estava mais plana. Uma enorme protuberância formara-se bem abaixo deles, uma protuberância rasgada no alto, no ponto em que a nave se libertara. Gigantescos pseudópodos agitavam-se vagarosamente sobre o buraco, como se tentassem recapturar a presa que há pouco escapara de suas garras. Enquanto olhava, tomado de horrorizado fascínio, Alvin percebeu de relance um orifício escarlate latejante, franjado por tentáculos em forma de chicotes que batiam em uníssono, empurrando tudo quanto estivesse a seu alcance para o interior das fauces escancaradas. Roubada de sua quase vítima, a criatura afundou lentamente no solo — e foi então que Alvin compreendeu que a planície lá embaixo era apenas a espuma delgada na superfície de um mar estagnado. — O que era… aquilo? — perguntou num arquejo. — Terei de descer lá embaixo e estudá-la de perto antes de poder responder — respondeu Hilvar jovialmente. — Pode ter sido alguma forma de vida animal primitiva… talvez até um parente de nosso amigo de Shalmirane. Decerto não era inteligente, ou não teria cometido a tolice de pretender devorar uma nave espacial. Alvin sentia-se abalado, conquanto soubesse que não haviam corrido verdadeiro perigo. Imaginou quais outras criaturas viveriam sob aquela ondulação inocente, que positivamente parecia convidá-lo a descer e correr sobre sua superfície espinhenta. — Eu poderia passar um bocado de tempo aqui — disse Hilvar obviamente fascinado pelo que acabara de ver. — A evolução deve ter produzido alguns resultados bem interessantes nessas condições. Não só a evolução, mas também a involução, quando formas superiores de vida voltaram atrás depois que o planeta foi abandonado. A essa altura, o equilíbrio já deve ter sido alcançado e… você já quer ir embora? — Sua voz parecia queixosa, enquanto a paisagem ficava cada vez mais distante. — Quero — respondeu Alvin. — Vi um mundo sem vida, e outro com vida demais, e não sei qual é o mais detestável. Mil e quinhentos metros acima da planície, o planeta lhes proporcionou uma surpresa final. Encontraram uma frotilha de imensos balões, meio vazios, flutuando ao vento. De cada um dos invólucros semitransparentes pendiam aglomerados de gavinhas, formando praticamente uma floresta invertida. Algumas plantas, ao que parecia, no esforço de escapar do conflito feroz na superfície do planeta, haviam aprendido a conquistar o ar. Através de um milagre de adaptação, haviam conseguido sintetizar hidrogênio e armazená-lo em vesículas, de modo que conseguiam elevar-se para a relativa paz da atmosfera inferior. No entanto, não era certo que mesmo ali houvessem encontrado segurança. Suas hastes e folhas, que pendiam para baixo, achavam-se infestadas com toda uma fauna de animais que lembravam aranhas, que deviam passar toda a vida flutuando muito acima da superfície do globo, dando prosseguimento à batalha universal pela existência em suas solitárias ilhas aéreas. Provavelmente, de vez em quando tinham de manter algum contacto com o solo. Alvin viu um dos grandes balões subitamente despenhar-se, com o invólucro rompido atuando como grosseiro pára-quedas. Ficou a imaginar se aquilo seria um acidente ou parte do ciclo vital daquelas estranhas entidades. Hilvar dormiu enquanto esperavam a aproximação do próximo planeta. Por alguma razão que o robô não lhes pôde explicar, a nave viajava lentamente — pelo menos em comparação com a velocidade com que percorrera o Universo —, agora que se encontrava num sistema solar. Levaram quase duas horas para chegar ao mundo que Alvin escolhera como sua terceira escala, e ele ficou surpreso com o fato de que uma simples viagem interplanetária pudesse durar tanto tempo. Alvin despertou Hilvar quando mergulharam na atmosfera. — O que é que você pensa disso! — perguntou, apontando para a tela. Lá embaixo via-se uma paisagem inóspita de tons negros e cinzentos, que não mostrava sinal algum de vegetação ou qualquer outra prova concreta de vida. No entanto, havia indícios indiretos, as colinas baixas e os vales rasos achavam-se pontilhados de perfeitos hemisférios, alguns dos quais dispostos em desenhos complexos e simétricos. No último planeta, haviam aprendido a agir com cuidado e, depois de cautelosamente considerarem todas as possibilidades, permaneceram a uma boa altitude, mandando o robô investigar. Através de seus olhos, viram um dos hemisférios se aproximar até o robô estar flutuando a pequena distância da superfície completamente lisa e sem marcas. Não havia sinal de entrada, nem qualquer sinal da finalidade da estrutura. Era bastante grande — mais de trinta metros de altura. Alguns dos outros hemisférios eram ainda mais altos. Se era um edifício, não parecia permitir nem entrada nem saída. Após alguma hesitação, Alvin ordenou ao robô que se movesse à frente e tocasse a cúpula. Para espanto seu, o robô recusou-se a obedecê-lo. Realmente, tratava-se de um motim — ou a princípio assim pareceu. — Por que não faz o que mando? — perguntou Alvin, ao recuperar-se do assombro. — É proibido — foi a resposta. — Proibido por quem? — Não sei. — Então, como… não, cancele isso. A ordem foi programada em você? — Não. Isso parecia eliminar uma possibilidade. Os construtores das cúpulas bem poderiam ser os mesmos construtores do robô, e poderiam ter incluído esse tabu nas instruções originais da máquina. — Quando você recebeu a ordem? — perguntou Alvin. — Quando pousei. Alvin voltou-se para Hilvar, com a luz de uma nova esperança brilhando em seus olhos. — Há inteligência aqui! Pode senti-la? — Não — respondeu Hilvar. — O lugar me parece tão morto quanto o primeiro mundo que visitamos. — Vou lá fora, reunir-me ao robô. Qualquer coisa que lhe tenha falado poderá falar comigo também. Hilvar não discutiu a questão, embora não parecesse muito satisfeito. Levaram a nave a trinta metros de distância da cúpula, para perto do robô, e abriram a câmara pneumática. Alvin sabia que a porta não se abriria a menos que o cérebro da nave já houvesse verificado que a atmosfera fosse respirável. Por um momento, supôs que o cérebro houvesse cometido um engano, pois o ar era tênue e quase não lhe enchia os pulmões. Então, inalando profundamente, descobriu que podia sugar oxigênio suficiente para sobreviver, embora julgasse que só poderia suportar, no máximo, alguns minutos ali. Ofegando, caminharam até o robô e se aproximaram da parede curva da enigmática cúpula. Deram mais um passo — e então pararam, juntos, como se atingidos pelo mesmo golpe súbito. Em suas mentes, como se soasse um poderoso gongo, reverberara uma mensagem: PERIGO. NÃO SE APROXIMEM MAIS. Isso, e nada mais. A mensagem se transmitia não em palavras, mas em puro pensamento. Alvin teve a certeza de que qualquer criatura, qualquer que fosse seu nível de inteligência, receberia a mesma advertência, do mesmo modo inteiramente inequívoco — no recesso mais profundo da mente. Era um aviso, não uma ameaça. De algum modo, entenderam que as palavras não eram contra eles, mas pretendiam protegê-los. Pareciam dizer que havia ali algo de intrinsecamente perigoso, e que os construtores daqueles hemisférios estavam ansiosos em garantir que ninguém sofresse por ignorância. Alvin e Hilvar recuaram vários passos, olhando um para o outro, cada qual esperando que o amigo dissesse o que estava pensando. Hilvar foi o primeiro a resumir sua opinião. — Eu estava certo, Alvin — disse. — Não há inteligência aqui. Essa advertência é automática… acionada por nossa presença quando nos aproximamos excessivamente. Alvin assentiu com a cabeça. — O que será que estão tentando proteger? — disse. — Poderia haver edifícios… qualquer coisa… debaixo dessas cúpulas. — Não temos como descobrir, se todas elas nos avisarem que fiquemos a distância. É interessante… a diferença entre os três planetas que visitamos. Tiraram absolutamente tudo do primeiro… abandonaram o segundo sem darem a menor importância… mas tiveram muito trabalho aqui. Talvez esperassem voltar algum dia, e desejassem que tudo estivesse pronto quando regressassem. — Mas nunca voltaram… e isso foi há muito tempo. — Podem ter mudado de idéia. Era curioso, pensou Alvin, a maneira como tanto ele como Hilvar haviam inconscientemente começado a usar a palavra «eles». Quem ou o que «eles» tivessem sido, sua presença fora forte naquele primeiro planeta — e ainda mais forte ali. Aquele era um mundo cuidadosamente embalado e guardado para qualquer época em que voltasse a ser necessário… — Vamos voltar para a nave — disse Alvin, ofegante. — Não consigo respirar direito aqui. Assim que a porta fechou-se atrás deles, relaxaram e começaram a debater o que fariam a seguir. Para realizarem uma investigação rigorosa, deveriam examinar um grande número de cúpulas, na esperança de poderem encontrar uma que não emitisse advertência e na qual pudessem entrar. Se isso não desse certo… mas Alvin não desejava enfrentar a possibilidade, até ser obrigado a isso. Teve de enfrentá-la menos de uma hora depois, e de uma forma muito mais dramática do que teria sonhado. Haviam mandado o robô a meia dúzia de cúpulas, sempre com o mesmo resultado, quando deram com uma cena inteiramente despropositada naquele mundo limpo e bem arrumado. Abaixo deles estendia-se um amplo vale, esparsamente salpicado com as cúpulas tantalizantes e impenetráveis. No centro, via-se a cicatriz inconfundível de uma grande explosão, que espalhara destroços por quilômetros em todas as direções e cavara uma rasa cratera. Ao lado da cratera estava uma nave espacial em pedaços. Capítulo XXI Pousaram perto do palco dessa antiga tragédia e caminharam lentamente, poupando o fôlego, em direção ao casco imenso e dilacerado. Da nave, restava apenas uma parte mínima, que seria da proa ou da popa, tudo o mais provavelmente fora destruído na explosão. Ao se aproximarem, um pensamento começou a formar-se no cérebro de Alvin, ganhando força até tornar-se verdadeira certeza. — Hilvar — disse ele, encontrando dificuldade para caminhar e falar ao mesmo tempo —, acho que essa é a nave que pousou no primeiro planeta que visitamos. Hilvar assentiu com a cabeça, preferindo poupar o fôlego. A mesma coisa já lhe ocorrera. Aquela era uma boa lição concreta, pensava ele, para visitantes incautos. Esperava que Alvin não deixasse de atentar para isso. Chegaram até o casco, examinando o interior da nave. Era como olhar para dentro de um edifício gigantesco que tivesse sido quase rachado ao meio. Pisos, paredes e tetos, quebrados no ponto da explosão, proporcionavam uma visão distorcida da seção transversal da nave. Que estranhos seres. imaginou Alvin, ainda jaziam no lugar onde haviam encontrado a morte quando da tragédia de seu veículo? — Não compreendo uma coisa — disse Hilvar, de repente. — Essa parte da nave está muito destruída, mas acha-se quase intacta. Onde está o resto? Teria ela se quebrado em duas partes no espaço e essa parte caiu aqui? Só depois que mandaram o robô para outra excursão de investigação, e após eles mesmos terem examinado a área em torno do sinistro, foi que tiveram resposta. Não havia sombra de dúvida, quaisquer reservas desapareceram quando Alvin encontrou a série de montículos baixos, cada qual com três metros de comprimento, na pequena colina ao lado da nave. — Quer dizer que eles pousaram aqui — conjecturou Hilvar — e não levaram o aviso em consideração. Eram curiosos, tal como você. Tentaram abrir aquela cúpula. Hilvar apontou para o outro lado da cratera, em direção ao invólucro liso, ainda sem marcas, dentro do qual os governantes daquele mundo haviam lacrado seus tesouros. Mas não se tratava mais de uma cúpula — era agora uma esfera quase completa, pois o solo sobre o qual repousava havia sido arrancado pela explosão. — Provocaram a destruição da nave, e muitos deles morreram. Ainda assim, conseguiram reparar o veículo e partir novamente, cortando fora esse pedaço e tirando dele tudo que fosse de valor. Que trabalho deve ter dado! Alvin mal o escutava. Olhava para a curiosa estrela que o atraíra àquele lugar — a haste delgada circundada por um círculo horizontal a um terço da extremidade superior. Por exótica e desconhecida que fosse, ele era capaz de entender a mensagem muda que ela vinha transmitindo há eras sem fim. Debaixo daquelas pedras, se se dispusesse a mexer nelas, estava a resposta para pelo menos uma pergunta. Essa pergunta poderia permanecer sem resposta, fossem o que fossem aquelas criaturas, haviam conquistado o direito ao repouso. Hilvar não chegou a ouvir as palavras que Alvin murmurou enquanto lentamente caminhavam de volta para sua nave. — Espero que tenham chegado aonde queriam ir — disse ele. — E agora, para onde vamos? — perguntou Hilvar, ao saírem novamente para o espaço. Alvin encarou pensativamente a tela antes de responder. — Você acha que devo voltar? — Seria a coisa mais sensata a fazer. Nossa sorte pode não durar muito ainda, e quem sabe quais surpresas esses planetas podem nos reservar? Era a voz da razão e da cautela, e Alvin estava agora mais disposto a lhe dar ouvidos do que há alguns dias antes. Mas ele viajara muito, e esperara toda sua vida por aquele momento, não regressaria enquanto ainda houvesse tantas coisas a ver. — Vamos ficar na nave de agora em diante — disse — e não desceremos à superfície em parte alguma. Será suficiente como precaução. Hilvar deu de ombros, como se recusando a assumir qualquer responsabilidade pelo que pudesse acontecer. Agora que Alvin começava a demonstrar alguma dose de cautela, julgou inoportuno admitir que estava igualmente ansioso por prosseguir na exploração, ainda que já houvesse há muito perdido toda esperança de encontrar vida inteligente em qualquer um daqueles planetas. À frente deles havia um mundo duplo, um planeta colossal com um pequeno satélite ao lado. O planeta primário poderia ser gêmeo do segundo que haviam visitado, pois o revestia o mesmo manto de verde doentio. De nada valeria pousar ali, era uma história que já conheciam. Alvin fez a nave descer mais perto da superfície do satélite, não lhe foi necessário atender à advertência do complexo mecanismo, no sentido de que ali não havia atmosfera. Todas as sombras tinham arestas nítidas, marcadas, nem havia gradações entre a noite e o dia. Era o primeiro mundo em que ele havia visto alguma coisa semelhante à noite, pois apenas um dos sóis mais distantes elevava-se acima do horizonte na área com a qual haviam estabelecido o primeiro contacto. A paisagem banhava-se de uma luz vermelha e opaca, como se mergulhada em sangue. Sobrevoaram longamente, a baixa altitude, as montanhas ainda acidentadas e serrilhadas como teriam sido nas eras distantes de sua gênese. Aquele era um mundo que jamais conhecera mudança ou decadência, que nunca fora açoitado por ventos ou chuvas. Ali eram desnecessários circuitos de eternidade para preservar os objetos em seu estado original. Mas, se não havia ar, não poderia ter existido vida… ou poderia? — Claro — disse Hilvar, quando Alvin lhe colocou a pergunta. — Não há nada de biologicamente absurdo na idéia. A vida não pode ter origem em espaço sem ar… mas pode desenvolver formas que sobrevivam nesse tipo de ambiente. Isso deve ter acontecido milhões de vezes, sempre que um planeta habitado perdeu sua atmosfera. — Mas você esperaria que a vida inteligente existisse no vácuo? Essas formas de vida não se teriam protegido contra a perda do ar? — Provavelmente, se isso acontecesse depois de haverem conquistado inteligência suficiente. Mas, se a atmosfera desaparecesse enquanto ainda se encontravam no estado primitivo, teriam de adaptar-se ou perecer. Depois de se haverem adaptado, poderiam então adquirir inteligência desenvolvidíssima. Na verdade, é provável que isso acontecesse, pois o incentivo seria bem grande. A discussão, concluiu Alvin era puramente teórica, no que dizia respeito àquele planeta. Em parte alguma se viam sinais de que algum dia ele houvesse abrigado vida, inteligente ou não. Mas, nesse caso, qual seria a finalidade daquele mundo? Todo o sistema dos Sete Sóis, ele acreditava agora, era artificial, e aquele mundo devia constituir parcela do grande projeto. Era crível que tivesse sido criado tão-somente para fins ornamentais — para haver uma lua no céu de seu gigantesco companheiro. Mesmo nesse caso, entretanto, seria de esperar que lhe fosse destinada alguma utilização. — Olhe — disse Hilvar, apontando para a tela. — Lá, à direita. Alvin modificou o rumo da nave, e a paisagem girou em torno deles. Os rochedos, iluminados de vermelho, tornaram-se baços com a rapidez do movimento, depois a imagem estabilizou-se. e o que se viu foi um sinal inequívoco de vida. Inequívoco, sim, mas ainda assim enigmático. Esse indício tomava a forma de uma fileira bem espaçada de colunas esguias, cada qual a cerca de trinta metros da outra, próxima, e com duas vezes sua altura. Estendiam-se a distância, reduzindo-se de tamanho, numa perspectiva hipnótica, até que o horizonte distante as tragava. Alvin desviou a nave para a direita e começou a percorrer rapidamente a fila de colunas, imaginando ao mesmo tempo qual teria sido sua finalidade. Eram absolutamente uniformes, prosseguindo numa marcha ininterrupta por vales e colinas. Não havia qualquer sinal de que já houvessem algum dia suportado alguma coisa, eram lisas e sem endentações, fazendo-se cônicas em direção ao alto. De repente, a linha mudou de rumo, dando uma guinada súbita em ângulo reto. Alvin continuou em frente vários quilômetros antes de reagir e conseguir desviar a nave para a nova direção. As colunas continuavam da mesma maneira, separadas por intervalos perfeitamente regulares. Depois, a oitenta quilômetros da última mudança de rumo, descreviam novamente outro ângulo reto. A prosseguirem assim, pensou Alvin, em breve estariam exatamente no ponto de partida. A seqüência interminável de colunas de tal forma os havia hipnotizado que quando chegou ao fim estavam a muitos quilômetros depois da descontinuidade. Hilvar gritou e fez com que Alvin, que nada observara, levasse a nave a dar uma meia-volta. Desceram lentamente, e, enquanto circulavam sobre aquilo que Hilvar havia descoberto, uma suspeita fantástica começou a nascer em suas mentes — ainda que a princípio nenhum dos dois se atrevesse a transmiti-la ao outro. Duas das colunas tinham-se quebrado perto da base, e jaziam sobre as rochas. Isso não era tudo, ambas as colunas adjacentes à abertura tinham sido vergadas para fora através de uma força irresistível. Não havia como fugir da conclusão espantosa. Agora Alvin sabia o que significava a formação que sobrevoara, era uma coisa que ele vira com freqüência em Lys, mas até aquele momento a mudança chocante de escala o impedira de reconhecer o que via. — Hilvar — perguntou ele, ainda temeroso de vazar seus pensamentos em palavras — você sabe o que é isso? — Parece difícil acreditar, mas estivemos voando em torno de um curral. Isso aí é uma cerca… uma cerca que não foi bastante forte. — As pessoas que possuem animais de estimação — disse Alvin com o riso nervoso que as pessoas às vezes usam para ocultar seu medo — devem tomar cuidado para mantê-los sob controle. Hilvar não reagiu a esse bom humor forçado. Estava fitando a barricada rompida, com o cenho carregado. — Não compreendo — disse por fim. — Como ele conseguiria alimento num planeta desses? E por que fugiu de seu cercado? Eu daria tudo para saber que animal era esse. — Talvez tenha sido deixado aí e fugiu por ter fome — conjecturou Alvin. — Ou alguma coisa pode tê-lo deixado assustado. — Vamos baixar um pouco mais — disse Hilvar. — Gostaria de examinar o chão de perto. Desceram até a nave quase tocar as rochas áridas, e foi então que notaram que a planície estava sulcada por inúmeros buraquinhos, que não teriam mais de dois ou quatro dedos de largura. Do lado de fora do cercado, contudo, não havia no chão essas marcas misteriosas, Hilvar e Alvin pararam de repente junto à cerca. — Você tem razão — disse Hilvar —, ele estava com fome. Mas não era um animal. Seria mais correto usarmos a palavra planta. Havia esgotado o solo do lado de dentro do cercado, e tinha de encontrar alimento fresco em outro lugar. Provavelmente, movia-se com grande lentidão, talvez tenha levado anos para quebrar esses mourões. A imaginação de Alvin rapidamente colaborou com os detalhes que nunca poderia conhecer com certeza. Não duvidava de que a análise de Hilvar era basicamente correta, e de que algum monstro botânico, que talvez se movesse vagarosamente demais para a vista acompanhar seu movimento, travara uma batalha penosa mas sem quartel contra as barreiras que o confinavam. Poderia ainda estar vivo, mesmo depois de passado tanto tempo, vagando à solta sobre a face do planeta. Procurá-lo, no entanto, seria tarefa inglória, uma vez que significaria vasculhar a superfície de todo um mundo. Fizeram uma pesquisa rápida num raio de poucos quilômetros em torno da abertura, localizando uma grande mancha circular de buraquinhos, com quase cento e cinqüenta metros de diâmetro, onde a criatura havia obviamente parado para alimentar-se — se é que se podia utilizar essa palavra com referência a um organismo que de alguma forma extraía sua nutrição da rocha sólida. Ao se elevarem mais uma vez no espaço, Alvin sentiu um estranho cansaço tomar conta de si. Vira coisas demais, mas aprendera muito pouco. Eram muitas as maravilhas em todos aqueles planetas, mas o que ele procurava desaparecera dali há muito tempo. Seria inútil, sabia, visitar os outros mundos dos Sete Sóis. Mesmo que ainda subsistisse inteligência no Universo, onde ele a procuraria agora? Olhou para as estrelas dispersas como poeira fina pela tela, entendendo que o que sobrava do Tempo não bastava para explorar todas elas. Uma sensação de solidão e opressão, maior do que qualquer outra que já experimentara, parecia tomar conta dele. Podia compreender agora o medo de Diaspar pelas vastidões do Universo, o terror que fizera sua gente reunir-se no microcosmo da cidade. Era difícil acreditar que, no final das contas, estivessem certos. Voltou-se para Hilvar, em busca de apoio. Mas o amigo estava de pé com os punhos cerrados e uma expressão vítrea nos olhos. Sua cabeça estava virada de lado, parecia escutar alguma coisa, apurando cada um de seus sentidos e sondando o vazio em torno deles. — O que foi? — perguntou Alvin, preocupado. Teve de repetir a pergunta antes que Hilvar desse qualquer demonstração de tê-lo ouvido. Ainda fitava o vazio quando finalmente respondeu. — Alguma coisa está vindo — disse lentamente. — Uma coisa que não compreendo. A Alvin pareceu que a cabine se tornara de repente gelada, e o pesadelo racial dos Invasores se estruturava para confrontá-lo com todo seu terror. Com um esforço da vontade, que exauria suas resistências, lutou contra o pânico. — É uma coisa amistosa? — perguntou. — Devo correr para a Terra? Hilvar não respondeu à primeira pergunta — apenas à segunda. Sua voz soou muito baixa, mas sem qualquer sinal de alarme ou medo. Transmitia, ao invés disso, enorme assombro e curiosidade, como se houvesse encontrado algo tão surpreendente que não pudesse dar-se ao trabalho de satisfazer à indagação ansiosa de Alvin. — Tarde demais — ele disse. — Já está aqui. A Galáxia girara muitas vezes em torno de seu eixo desde que a consciência pela primeira vez despontara em Vanamonde. Lembrava-se pouco daquelas primeiras eras e das criaturas que haviam então cuidado dele — mas podia recordar-se ainda de seu desconsolo quando haviam partido, deixando-o só entre as estrelas. A partir de então, no decurso dos tempos, havia errado de sol a sol, vagarosamente desenvolvendo e ampliando seus poderes. Outrora sonhara em encontrar de novo aqueles que haviam assistido a seu nascimento, e, embora o sonho já se tivesse dissipado, jamais morrera inteiramente. Num sem-fim de mundos ele havia encontrado os destroços deixados pela vida, mas somente de uma feita descobrira inteligência — e fugira, tomado de terror, do Sol Negro. No entanto, o Universo era muito grande e a procura mal começara. Ainda que estivesse distante, no espaço e no tempo, a grande explosão de força, partindo do centro da Galáxia, acenou para Vanamonde, transpondo anos-luz. Era inteiramente diferente da radiação das estrelas, e aparecera em seu campo de consciência tão repentinamente como a trilha deixada por um meteoro no céu sem nuvens, e Vanamonde moveu-se pelo espaço e pelo tempo naquela direção. A longa forma metálica, com suas infinitas complexidades estruturais, era coisa que ele não poderia compreender, pois lhe era tão estranha quanto quase todas as coisas do mundo físico. Em torno dela ainda pairava a aura de força que o arrastara através do Universo, mas isso de nada lhe interessava agora. Cuidadosamente, com o delicado nervosismo de uma besta selvagem meio pronta para desferir seu vôo, ele se lançou na direção das duas mentes que havia descoberto. E então soube que sua longa busca estava acabada. Alvin agarrou Hilvar pelos ombros e sacudiu-o com violência, tentando puxá-lo para uma aguda consciência da realidade. — Diga-me o que está acontecendo! — suplicou. — O que quer que eu faça? A expressão distante, abstrata, desapareceu dos olhos de Hilvar. — Ainda não compreendo — ele disse —, mas não há porque assustar-se… tenho certeza disso. Seja lá o que for, não nos fará mal. Parece simplesmente… interessado. Alvin estava prestes a responder quando foi tomado por uma sensação diferente de tudo quanto já conhecera no passado. Um fulgor morno e formigante como que se espalhou por seu corpo, aquilo durou apenas alguns segundos, mas, quando terminou, já não era simplesmente Alvin. Alguma coisa estava partilhando de seu cérebro, superpondo-se a ele tal como um círculo pode cobrir outro parcialmente. Ele tinha consciência, também, da mente de Hilvar bem próxima, igualmente emaranhada na criatura que se havia abatido sobre eles. A sensação era antes estranha que desagradável, e deu a Alvin o primeiro vislumbre da verdadeira telepatia — o poder que em sua gente se degenerara de tal forma que agora só podia ser usado para controlar máquinas. Alvin rebelara-se prontamente quando Seranis tentara dominar-lhe a mente, mas não lutou contra aquela intrusão. Teria sido inútil, e sabia que a criatura, independentemente do que fosse, não era hostil. Relaxou-se aceitando sem resistência o fato de que uma inteligência infinitamente maior do que a sua própria estava explorando sua mente. No entanto, não estava inteiramente certo ao pensar assim. Uma dessas mentes, Vanamonde percebeu de imediato, era mais amena e acessível do que a outra. Sentia que ambas estavam admiradas com sua presença, o que o surpreendeu muito. Era difícil acreditar que pudessem ter esquecido, o esquecimento, tal como a mortalidade, estava além da compreensão de Vanamonde. A comunicação era dificílima. Muitas das imagens mentais de seus cérebros eram tão estranhas que ele quase não conseguia identificá-las. Ficou perplexo e um tanto assustado com o recorrente padrão de medo dos Invasores, aquilo lembrava suas próprias emoções quando o Sol Negro entrara, pela primeira vez, em seu campo de conhecimento. Mas nada sabiam a respeito do Sol Negro, e agora suas primeiras indagações começavam a se formar na mente da criatura. — Quem é você? Deu a única resposta que podia dar. — Sou Vanamonde. Houve uma pausa (como era demorada a formação de seus pensamentos!) e então a pergunta foi repetida. Não haviam compreendido, isso era estranho, pois certamente a espécie a que pertenciam lhe havia dado nome para que essa denominação perdurasse entre as lembranças de seu nascimento. Essas lembranças eram raríssimas, e começavam estranhamente num ponto isolado do tempo, mas eram claras como cristal. Mais uma vez seus minúsculos pensamentos conseguiram atingir-lhe a consciência. — Onde estão os que construíram os Sete Sóis? O que lhes aconteceu? Ele não sabia, mal podiam acreditar nele, e o desapontamento que sentiram transpôs nítida e claramente o abismo que separava suas mentes da dele. Mas eram pacientes e ele estava satisfeito em poder ajudá-los, pois procuravam a mesma coisa e lhe proporcionavam a primeira companhia que ele jamais tivera. Alvin acreditava que, enquanto vivesse, jamais passaria novamente por uma experiência tão estranha como aquela conversa silenciosa. Era difícil que ele pudesse ser pouco mais do que espectador, pois não se importava de admitir, mesmo para si próprio, que a mente de Hilvar era em muitos sentidos bem mais ágil do que a sua. Só lhe cabia esperar e admirar-se, meio atordoado pela torrente de imagens mentais, situada além dos limites de sua compreensão. Daí a pouco, pálido e cansado, Hilvar interrompeu a conversa e voltou-se para o amigo. — Alvin, há alguma coisa estranha aqui — disse, com expressão fatigada. — Não estou entendendo nada. A informação em parte restabeleceu a autoconfiança de Alvin, e sua fisionomia deve ter traduzido o que ele sentia, pois Hilvar sorriu de repente. — Não consigo descobrir o que é esse… Vanamonde… — ele continuou. — E uma criatura de tremendo conhecimento, mas parece ter pouquíssima inteligência. E claro — acrescentou — que seu cérebro pode ser de uma espécie tão diferente que não conseguimos compreendê-lo… no entanto, por alguma razão, não creio que seja a explicação correta. — Bem, o que foi que você descobriu? — perguntou Alvin, com certa impaciência. — Ele sabe alguma coisa a respeito dos Sete Sóis? Hilvar ainda parecia ter a mente muito longe. — Foram construídos por muitas raças, inclusive a nossa — respondeu distraidamente. — Ele me fornece informações desse tipo, mas parece não compreender o que significam. Acho que tem consciência do passado, mas não tem capacidade para interpretá-lo. Tudo que já aconteceu parece estar amontoado em sua mente. Hilvar fez uma pausa momentânea, depois seu rosto iluminou-se. — Só há uma coisa a fazer, de uma maneira ou de outra, tenho de levar Vanamonde à Terra, para que nossos filósofos possam estudá-lo. — Seria seguro? — perguntou Alvin. — Sim — disse Hilvar, pensando em como a observação do amigo era descabida. — Vanamonde é amistoso. Mais do que isso, na verdade parece carinhoso. E de repente, a idéia que durante todo aquele tempo estivera pairando sobre a orla da consciência de Alvin definiu-se claramente. Ele se lembrou de Krif e de todos os animais que estavam continuamente fugindo, para aborrecimento ou alarme dos amigos de Hilvar. E lembrou-se — como parece distante no passado! — do objetivo zoológico que determinara a expedição a Shalmirane. Hilvar encontrara um novo animal de estimação. Capítulo XXII Há apenas alguns dias, pensava Jeserac, aquela conferência seria simplesmente inconcebível. Os seis visitantes de Lys estavam sentados diante do Conselho, numa mesa que fechava a abertura da ferradura. Era irônico lembrar que há pouco tempo Alvin estivera sentado no mesmo lugar, ouvindo o Conselho determinar que Diaspar seria fechada novamente ao mundo. Agora, o mundo se abatera sobre a cidade, vingativo — não só o mundo, mas todo o Universo. O próprio Conselho já estava modificado. Aquela reunião faltavam nada menos de cinco de seus membros. Tinham sido incapazes de enfrentar as responsabilidades e problemas com que agora se confrontavam, e seguiram o mesmo caminho escolhido por Khedron. Isso, pensava Jeserac — o fato de tantos de seus cidadãos serem incapazes de encarar o primeiro desafio real em milhões de anos —, era prova de que Diaspar fracassara. Muitos milhares deles já haviam fugido para o breve oblívio dos bancos de memória, na esperança de que, quando despertassem, a crise tivesse passado e Diaspar voltado a ser o que sempre fora. Ficariam decepcionados. Jeserac fora convocado para preencher um dos lugares vagos no Conselho. Ainda que ele estivesse ali contrafeito, devido à sua posição como tutor de Alvin, sua presença era tão claramente essencial que ninguém sugerira sua exclusão. Estava sentado numa das extremidades da mesa em forma de ferradura, posição que lhe dava várias vantagens. Não só podia estudar os perfis de seus visitantes, como podia também ver os rostos de todos os companheiros de Conselho — e suas expressões eram bastante instrutivas. Sem dúvida, Alvin estivera certo e o Conselho estava lentamente tomando consciência da verdade desagradável. A delegação de Lys era capaz de pensar muito mais depressa do que os homens mais inteligentes de Diaspar. E não era essa sua única vantagem, pois demonstravam também um elevado grau de coordenação, que, segundo Jeserac acreditava, deveria estar relacionado com seus poderes telepáticos. Ficou a imaginar se estariam lendo os pensamentos dos Conselheiros, mas concluiu que não violariam sua promessa solene, sem a qual aquela reunião teria sido impossível. Jeserac não acreditava que houvessem feito muitos progressos, aliás, não imaginava como poderiam fazer. O Conselho, que a custo havia aceito a existência de Lys, ainda parecia incapaz de compreender o que acontecera. Mas estava claramente assustado — como também estavam, ele julgava, os visitantes, embora conseguissem ocultar bem melhor o susto. O próprio Jeserac não estava tão aterrorizado como previra, ainda pressentia seus medos, mas finalmente os havia encarado de frente. Algo da temeridade — ou seria coragem? — do próprio Alvin começara a modificar sua perspectiva e abrir-lhe novos horizontes. Não se supunha capaz de jamais pôr os pés fora de Diaspar, mas agora compreendia o impulso que levara Alvin a assim proceder. A pergunta do Presidente pegou-o desprevenido, mas ele se recuperou rapidamente. — Acho — disse — que foi por simples casualidade que essa situação nunca surgiu antes. Sabemos que anteriormente houve quatorze Únicos, e deve também ter havido algum plano definido por trás de sua criação. Esse plano, creio, era o de assegurar que Lys e Diaspar não permanecessem separados para sempre. Alvin tomou a si essa aproximação, mas também fez uma coisa que, acredito, não constava do plano original. Poderia o Computador Central confirmar isso? A voz impessoal respondeu imediatamente. — O Conselheiro sabe que não posso comentar as instruções que me foram dadas por meus construtores. Jeserac aceitou a leve reprimenda. — Seja como for, não podemos discutir os fatos. Alvin viajou para o espaço. Quando voltar, os senhores poderão impedi-lo de sair novamente… conquanto duvido de que venham a ter êxito, já que ele terá aprendido muitas coisas a essa altura. E, se aquilo que os senhores temem aconteceu, não há nada que possamos fazer a respeito. A Terra está inteiramente indefesa… e isso há milhões de séculos. Jeserac fez uma pausa e percorreu as mesas com o olhar. Suas palavras não haviam agradado a ninguém, nem ele esperara que agradassem. — Contudo, não vejo por que devemos ficar alarmados. A Terra não corre maior perigo agora do que sempre correu. Por que dois homens, sozinhos numa pequena nave, provocariam sobre nós a ira dos Invasores? Se formos honestos, teremos de admitir que os Invasores poderiam ter destruído nosso mundo há muitas eras. Houve um silêncio desaprovador. Isso era heresia — e no passado o próprio Jeserac a teria condenado como tal. O Presidente interrompeu, franzindo a testa. — Não conta uma lenda que os Invasores pouparam a Terra em troco de promessa que o Homem nunca mais voltaria ao espaço? E não violamos agora essas condições? — Uma lenda, sim — disse Jeserac. — Aceitamos muitas coisas sem contestação, e essa é uma delas. Contudo, não há disso prova alguma. Acho difícil acreditar que qualquer coisa dessa magnitude não ficasse registrada nas memórias do Computador Central, e no entanto ele não tem nenhum conhecimento desse pacto. Já lhe perguntei, ainda que somente através das máquinas de informação. Talvez o Conselho se digne a fazer a pergunta diretamente. Jeserac não via qualquer razão para se arriscar a uma segunda admoestação por avançar em território proibido, e esperou pela resposta do Presidente. Não houve resposta, pois nesse momento os visitantes de Lys subitamente puseram-se de pé, com as fisionomias congeladas em expressões de incredulidade e alarme. Pareciam estar ouvindo alguma voz distante que despejava sua mensagem em seus ouvidos. Os Conselheiros esperaram, com sua própria apreensão crescendo minuto a minuto, enquanto prosseguia a conversa silenciosa. Então, o líder da delegação arrancou-se de seu transe e voltou-se para o Presidente, como se pedisse desculpas. — Acabamos de receber notícias muito estranhas e inquietantes de Lys — disse. — Alvin voltou à Terra? — quis saber o Presidente. — Não… Alvin não. Uma outra coisa. Enquanto fazia sua fiel nave pousar na clareira de Airlee, Alvin imaginava se em toda a história humana uma nave já trouxera à Terra carga semelhante — isso, na verdade, se Vanamonde estivesse localizado no espaço físico da máquina. Não tinha sido visto qualquer sinal dele na viagem, Hilvar acreditava, e seu conhecimento era mais direto, que somente a esfera de atenção de Vanamonde possuía alguma posição no espaço. O próprio Vanamonde não se localizava em parte alguma — talvez nem mesmo em tempo algum. Seranis e cinco Senadores estavam à sua espera quando saíram da nave. Um dos Senadores já era conhecido de Alvin, dois outros que haviam participado da reunião por ocasião de sua última visita estavam agora em Diaspar, segundo ele entendeu. Ficou a imaginar como a delegação se sentiria, e como a cidade havia reagido à presença dos primeiros intrusos em tantos milhões de anos. — Queremos crer, Alvin — disse Seranis, secamente, depois de haver saudado o filho —, que você é um verdadeiro gênio para descobrir entidades extraordinárias. Ainda assim, acho que vai passar muito tempo antes que você consiga superar sua façanha de agora. Dessa vez foi Alvin quem se surpreendeu. — Quer dizer que Vanamonde já chegou? — Sim, há várias horas. De alguma forma ele conseguiu reconstituir a trajetória de sua nave, no caminho de ida… uma façanha extraordinária em si mesma, e que levanta interessantes problemas filosóficos. Há alguns indícios de que ele chegou a Lys no momento em que você o descobriu, de modo que é capaz de velocidades infinitas. E isso não é tudo. Nas últimas horas, ele nos ensinou mais história do que julgávamos poder existir. Alvin olhou Seranis, atônito. Depois entendeu, não era difícil imaginar qual teria sido o impacto de Vanamonde sobre aquela gente, com suas percepções agudas e suas mentes maravilhosamente entrelaçadas. Haviam reagido com surpreendente rapidez, e de repente ele formou uma imagem incongruente de Vanamonde, talvez um tanto assustado, cercado pelos ávidos intelectos de Lys. — Descobriram o que ele é? — perguntou Alvin. — Sim. Isso foi simples, ainda que não saibamos qual sua origem. Ele é pura mentalidade, e seu conhecimento parece ilimitado. Mas é infantil, e estou usando esse termo em sua acepção mais literal. — Claro! — exclamou Hilvar. — Eu devia ter adivinhado! Alvin fez uma expressão de pasmo, e Seranis sentiu pena dele. — Quero dizer que, embora Vanamonde possua uma mente colossal, talvez infinita, é imaturo e subdesenvolvido. Sua inteligência real é menor que a de um ser humano — aqui ela sorriu de maneira estranha —, ainda que seus processos mentais sejam muito mais rápidos e ele aprenda rapidamente. Além disso, dispõe de certos poderes que não compreendemos. Todo o passado parece aberto à sua mente, de uma forma difícil de descrever. Ele pode ter usado essa capacidade para seguir seu caminho à Terra. Alvin ficou em silêncio, um pouco atemorizado. Compreendeu a correção da decisão de Hilvar de trazer Vanamonde a Lys. E percebeu como tivera sorte em algum dia ter podido ludibriar Seranis, isso não era coisa que ele pudesse fazer duas vezes na vida. — Você quer dizer — perguntou — que Vanamonde acabou de nascer? — Pelos padrões dele, sim. Sua idade cronológica é enorme, ainda que aparentemente menor que a do homem. O notável é que ele insiste em que fomos nós que o criamos, e não resta dúvida de que sua origem está relacionada a todos os grandes mistérios do passado. — O que está acontecendo a Vanamonde agora? — perguntou Hilvar, num tom ligeiramente possessivo. — Os historiadores de Grevarn o estão interrogando. Tentam mapear os principais delineamentos do passado, mas a tarefa levará anos. Vanamonde é capaz de descrever o passado com pormenores exatos, mas não compreende o que vê. E dificílimo trabalhar com ele. Alvin ficou a imaginar como Seranis saberia de tudo isso, depois percebeu que provavelmente todas as almas de Lys estavam acompanhando o progresso da grande pesquisa. Sentiu orgulho ao perceber que agora havia deixado em Lys marca tão forte quanto em Diaspar, no entanto, a esse orgulho misturava-se certa frustração. Havia ali uma coisa que jamais poderia partilhar inteiramente, nem compreender: o contato direto, mesmo entre mentes humanas, era para ele mistério tão grande quanto a música devia ser para o surdo, ou a cor para o cego. No entanto, os habitantes de Lys estavam agora trocando pensamentos com aquele ser inimaginavelmente alienígena, cuja vinda para a Terra fora provocada por ele, mas a quem nunca poderia atingir, com nenhum de seus sentidos. Não havia lugar para ele ali, quando a investigação estivesse concluída, as respostas lhe seriam comunicadas. Ele abrira as portas do infinito, e agora sentia pasmo — até medo — por tudo quanto fizera. Para sua própria paz de espírito, devia voltar ao mundo minúsculo e familiar de Diaspar, ali buscando refúgio, enquanto ponderava seus sonhos e sua ambição. Havia uma ironia nisso, aquele que acicatara a cidade a se aventurar por entre as estrelas voltava para casa como uma criança assustada volta correndo para a mãe. Capítulo XXIII Diaspar não demonstrou nenhuma surpresa ao rever Alvin. A cidade ainda estava agitada, como uma gigantesca colméia que tivesse sido violentamente remexida. Ainda relutava em enfrentar a realidade, mas aqueles que se recusavam a admitir a existência de Lys e do mundo exterior já não tinham onde ocultar-se. Os bancos de memória haviam deixado de aceitá-los, aqueles que procuravam apegar-se a seus sonhos e buscar refúgio no futuro entravam agora em vão na Casa da Criação. A chama dissolvente, sem calor, recusava-se a saudá-los, já não despertavam, com as mentes lavadas, cem mil anos abaixo no rio do tempo. Os apelos ao Computador Central de nada valiam, nem ele explicava a razão de seus atos. Os pretensos refugiados tinham de retornar pesarosamente à cidade, obrigados a enfrentar os problemas de seu tempo. Alvin pousara na periferia do Parque, nas proximidades do Palácio do Conselho. Até aquele último momento, não tinha certeza de que poderia levar a nave a entrar na cidade, atravessando quaisquer escudos que fechassem seu céu do mundo exterior. O firmamento de Diaspar, como tudo mais na cidade, era artificial, pelo menos em parte. Não se permitia nunca que a noite, com seu manto de estrelas, lembranças de tudo quanto o Homem havia perdido, se intrometesse na cidade, protegida também das tempestades que por vezes se abatiam sobre o deserto e enchia o céu de nuvens de areia. Os guardiões invisíveis deixaram Alvin passar e ele viu a cidade estendida a seus pés. Por mais que o Universo e seus mistérios o atraíssem, aquele era o lugar onde havia nascido e a que pertencia. A cidade nunca o satisfaria, mas ainda assim voltaria sempre. Atravessara metade da Galáxia para aprender essa verdade simples. Multidões já se haviam reunido mesmo antes da nave aterrissar, e Alvin ficou a imaginar como seus conterrâneos o receberiam. Podia ler facilmente as expressões em seus rostos, vistas na tela, mesmo antes de abrir a câmara de descompressão. A emoção dominante parecia ser a curiosidade — coisa, aliás, também nova em Diaspar. De mistura com a curiosidade, havia apreensão, ao passo que aqui e ali viam-se sinais inconfundíveis de medo. Ninguém, pensou Alvin com certa mágoa, parecia satisfeito em revê-lo. O Conselho, por outro lado, recebeu-o decididamente com agrado, embora não por pura amizade. Embora fosse ele o causador da atual crise, nenhuma outra pessoa poderia fornecer os fatos sobre os quais a futura política deveria basear-se. Ouviram com profunda atenção sua descrição do vôo aos Sete Sóis e do encontro com Vanamonde. Depois, respondeu várias perguntas, com uma paciência que provavelmente surpreendeu seus interrogadores. O que predominava neles, Alvin logo descobriu, era o medo dos Invasores, ainda que nunca mencionassem esse nome e se mostrassem claramente desgostosos quando abordou o assunto diretamente. — Se os Invasores ainda se encontrassem neste Universo — disse Alvin ao Conselho —, certamente os teria encontrado em seu centro. Mas não existe vida inteligente entre os Sete Sóis, já havíamos adivinhado isso antes de Vanamonde confirmá-lo. Creio que os Invasores partiram há eras. Decerto Vanamonde, que parece ser pelo menos tão velho quanto Diaspar, nada sabe a respeito deles. — Tenho uma sugestão — disse um dos Conselheiros de repente. — Vanamonde pode ser um descendente dos Invasores, de um modo que ultrapassa nosso conhecimento presente. Ele se esqueceu de sua origem, mas isso não significa que um dia não possa voltar a ser perigoso. Hilvar, que estava presente apenas como espectador, não esperou permissão para falar. Aquela foi a primeira vez que Alvin o viu furioso. — Vanamonde contemplou a minha mente — disse — e eu tive um vislumbre da dele. Meu povo já aprendeu muito sobre ele, ainda que até agora não tenha descoberto o que ele é. Mas uma coisa é certa: ele é cordial e ficou feliz por encontrar-nos. Nada temos a temer dele. Houve um breve silêncio após essa explosão, e Hilvar ficou um tanto embaraçado. Era visível que a tensão na Câmara do Conselho diminuiu a partir daí, como se uma nuvem tivesse sido tirada do espírito dos presentes. Evidentemente, o Presidente não fez nenhuma tentativa, como devia fazer, de censurar Hilvar por essa interrupção. Tornou-se claro para Alvin, enquanto escutava o debate, que três escolas de pensamento faziam-se representar no Conselho. Os conservadores, que estavam em minoria, ainda nutriam esperanças de que o relógio pudesse andar para trás e que a velha ordem fosse de alguma maneira restaurada. Contra toda razão, apegavam-se à esperança de que Diaspar e Lys pudessem ser persuadidas a se esquecerem uma da outra. Os progressistas formavam igualmente uma pequena minoria, o fato de existirem, contudo, agradava e surpreendia Alvin. Não estavam exatamente satisfeitos com essa invasão por parte do mundo exterior, mas mostravam-se resolvidos a aproveitá-la ao máximo. Alguns deles chegaram a sugerir que talvez houvesse meio de romper as barreiras psicológicas que por tanto tempo haviam confinado Diaspar com eficiência ainda maior que as barreiras físicas. A maioria dos Conselheiros, refletindo com exatidão o estado de espírito da cidade, havia adotado uma atitude de cautela vigilante, enquanto esperava ver o que aconteceria no futuro. Os Conselheiros compreendiam que não podiam traçar planos gerais, nem tentar pôr em prática qualquer política definida, até a tempestade haver passado. Jeserac foi ter com Alvin e Hilvar quando a sessão terminou. Parecia haver mudado desde a última vez em que se haviam encontrado — e se despedido — na Torre de Loranne, com o deserto estendendo-se à sua frente. A mudança não era aquela que Alvin esperara, ainda que fosse uma mudança que ele viria a encontrar com freqüência cada vez maior nos dias vindouros. Jeserac parecia mais jovem, como se o fogo da vida houvesse encontrado combustível novo e estivesse ardendo com mais força em suas veias. Apesar de sua idade, era um dos capazes de aceitar o desafio que Alvin lançara sobre Diaspar. — Tenho novidades para você, Alvin — ele disse. — Você conhece o Senador Gerane, não? Alvin ficou perplexo por um momento, mas depois se lembrou. — Claro… foi um dos primeiros homens que conheci em Lys. Ele não faz parte da delegação? — Sim. Já nos conhecemos bastante bem. É homem brilhante, e conhece melhor a mente humana do que eu teria julgado possível… ainda que me diga que para os padrões de Lys é apenas um incidente. Aproveitando sua estada aqui, deu início a um projeto que você apreciará bastante. Espera conseguir analisar a compulsão que nos mantém na cidade, e acredita que, quando houver descoberto como foi imposta, será capaz de eliminá-la. Uns vinte de nós já estão cooperando com ele. — E você é um deles? — Sou — respondeu Jeserac, mostrando na fisionomia a expressão mais parecida com modéstia que Alvin já vira ou jamais veria. — Não é fácil, e decerto não é agradável… mas é estimulante. — Como é que Gerane trabalha? — Ele está operando através das Sagas. Fez com que fosse construída toda uma série delas, e estuda nossas reações enquanto as estamos vivendo. Nunca imaginei que, em minha idade, eu voltaria às recreações de minha infância! — O que são as Sagas? — quis saber Hilvar. — Mundos oníricos imaginários — explicou Alvin. — Pelo menos, na maioria elas são imaginárias, ainda que algumas provavelmente sejam baseadas em fatos históricos. Há milhões delas gravadas nas células de memória da cidade, você pode escolher entre qualquer espécie de aventura ou experiência que desejar, e ela lhe parecerá profundamente real, enquanto os impulsos estiverem sendo alimentados em sua mente. — Alvin voltou-se para Jeserac. — A que espécie de Sagas o Senador Gerane os conduz? — A maioria delas está relacionada, como seria de esperar, com sair de Diaspar. Algumas nos conduziram às nossas vidas mais antigas, bem perto da época da fundação da cidade. Gerane acredita que, quanto mais próximo conseguir chegar à origem dessa compulsão, mais fácil será para ele destruí-la. Alvin sentiu-se animado com as notícias. Seu trabalho ficaria pela metade se houvesse aberto as portas de Diaspar e verificasse que ninguém se dispunha a transpô-las. — Você quer realmente poder sair de Diaspar? — perguntou Hilvar, astutamente. — Não — respondeu Jeserac, sem hesitação. — Fico aterrorizado só em pensar nisso. Mas compreendo que estávamos completamente enganados em pensar que Diaspar representava todo o mundo que era importante, e a lógica me diz que alguma coisa deve ser feita para corrigir o erro. Emocionalmente, ainda sou inteiramente incapaz de deixar a cidade, talvez venha a sentir isso para sempre. Gerane acha que poderá fazer com que alguns de nós o acompanhe a Lys, e quero ajudá-lo na experiência… ainda que em parte eu espere que ela fracasse. Alvin olhou para seu velho tutor com novo respeito. Já não desdenhava o poder da sugestão, nem subestimava as forças capazes de compelir um homem a agir contrariamente à lógica. Não podia deixar de comparar a calma coragem de Jeserac com a fuga espavorida de Khedron para o futuro — ainda que, com sua nova compreensão da natureza humana, já não se dispusesse a condenar o Bufão pelo que havia feito. Gerane, tinha certeza, poderia realizar aquilo a que se propunha. Jeserac podia ser idoso demais para romper hábitos de toda uma vida, por mais que desejasse começar tudo de novo. Isso, porém, não importava, pois outros teriam êxito, com a orientação arguta dos psicólogos de Lys. E assim que alguns houvessem fugido ao padrão de um bilhão de anos, seria apenas questão de tempo antes que os restantes os seguissem. Alvin imaginava o que aconteceria a Diaspar — e a Lys — quando as barreiras estivessem inteiramente destruídas. De alguma forma, os melhores elementos de ambas as culturas deveriam ser salvos e fundidos numa cultura nova e mais saudável. Tratava-se de uma tarefa hercúlea, que demandaria toda a sabedoria e toda a paciência que cada pessoa pudesse pôr a serviço da empresa. Algumas dessas dificuldades já surgiam. Os visitantes de Lys tinham-se recusado, polidamente, a habitar as casas que lhes haviam sido destinadas na cidade. Haviam-se instalado no Parque, num ambiente que lhes lembrava Lys. Hilvar foi a única exceção, embora não lhe agradasse morar numa casa com paredes indeterminadas e mobiliário efêmero, valentemente aceitou a hospitalidade de Alvin, consolado pela promessa de que não ficariam muito tempo ali. Hilvar jamais se sentira solitário em toda sua vida, mas em Diaspar ele conheceu a solidão. A cidade lhe era mais estranha do que Lys fora para Alvin, e ele se sentia oprimido e esmagado por sua infinita complexidade e pelas miríades de estranhos que pareciam congestionar cada palmo de espaço a seu redor. Ele conhecia, ainda que superficialmente, todos os habitantes de Lys, quer já houvesse conversado com eles quer não. Nem em mil vidas, porém, poderia vir a conhecer todos os que viviam em Diaspar, e, ainda que percebesse tratar-se de uma sensação irracional, sentia-se vagamente deprimido. Somente sua lealdade para com Alvin o mantinha ali, num mundo que nada mostrava de comum com o seu próprio. Muitas vezes já tentara analisar seus sentimentos em relação a Alvin. A amizade que sentia por ele brotava, sabia bem, da mesma fonte que inspirava sua atração por todas as criaturas pequenas e inermes. Isso teria surpreendido aqueles que viam em Alvin um moço resoluto, obstinado e egocêntrico, dispensando afeto de quem quer que fosse e rejeitando-o sempre, mesmo quando oferecido desprendidamente. Hilvar, contudo, conhecia melhor a verdade. Percebera, instintivamente, desde o começo, que Alvin era um explorador, e todos os exploradores estão à procura de alguma coisa que perderam. Raramente a encontram, e mais raramente ainda a descoberta lhes proporciona mais alegria do que a procura. O que Alvin estava procurando, Hilvar o ignorava. Era impelido por forças que haviam sido acionadas há eras, pelos homens geniais que tinham planejado Diaspar com tanta habilidade distorcida — ou pelos homens de gênio ainda maior que lhes haviam feito objeção. Como todo ser humano, Alvin era em certa medida uma máquina, sendo suas ações predeterminadas por sua herança. Isso não alterava sua necessidade de compreensão e afeto, nem o tornava infenso à solidão ou à frustração. Para sua própria gente, era uma criatura tão inexplicável que às vezes se esqueciam de que ele ainda partilhava as mesmas emoções deles. Era preciso um estranho, de um meio inteiramente diverso, para vê-lo como outro ser humano. Alguns dias após ter chegado a Diaspar, Hilvar já encontrara mais pessoas do que em toda sua vida. Encontrara-as sem chegar a conhecer praticamente ninguém. Por estarem tão juntos, os habitantes da cidade mantinham uma reserva difícil de penetrar. A única privacidade que conheciam era a da mente, e eles se lhe apegavam mesmo enquanto cumpriam as intermináveis atividades sociais de Diaspar. Hilvar sentia pena deles, embora soubesse que não tinham necessidade alguma de sua compaixão. Não percebiam o que não tinham — não poderiam entender a cálida sensação de comunidade, a sensação de participação que a todos congregava na sociedade telepática de Lys. Com efeito, embora fossem bastante polidos para ocultá-lo, era óbvio que a maioria das pessoas com quem ele falava olhava-o com compaixão, acreditando estar diante de alguém que levava uma vida incrivelmente tediosa e vazia. Eriston e Etania, os guardiões de Alvin, foram desde logo vistos por Hilvar como nulidades corteses, inteiramente vazias. Achava muito estranho ouvir Alvin referir-se a eles como pai e mãe — palavras que em Lys ainda conservavam seu antigo sentido biológico. Era necessário um contínuo esforço de imaginação para lembrar que as leis da vida e da morte tinham sido recusadas pelos construtores de Diaspar, e por momentos parecia a Hilvar que, apesar de toda a atividade que se desenrolava a seu redor, a cidade parecia vazia, pois não possuía crianças. Hilvar pensava no que aconteceria a Diaspar, agora que seu longo isolamento chegara ao fim. A melhor coisa que a cidade poderia fazer, concluiu, seria destruir os bancos de memória, que a haviam mantido em transe por tanto tempo. Por mais miraculosos que fossem — talvez o supremo triunfo da ciência que os produzira —, eram criações de uma cultura doente, uma cultura que tivera medo de muitas coisas. Alguns desses temores se haviam baseado na realidade, ao passo que outros, era-se levado a crer, fundamentavam-se apenas na imaginação. Hilvar sabia um pouco do que estava surgindo da exploração da mente de Vanamonde. Daí a alguns dias, Diaspar também saberia — e descobriria que grande parte de seu passado não passara de um mito. No entanto, se os bancos de memória fossem destruídos, dentro de mil anos a cidade estaria morta, pois as pessoas haviam perdido a capacidade de se reproduzir. Tratava-se de um dilema que tinha de ser encarado de frente, mas Hilvar já percebera uma solução possível. Sempre havia uma resposta para qualquer problema técnico, e sua gente era senhora das ciências biológicas. O que fora feito podia ser desfeito, se Diaspar assim desejasse. Primeiro, entretanto, a cidade teria de aprender o que perdera. Sua educação levaria muitos anos — talvez muitos séculos. Mas já estava começando, muito em breve, o impacto da primeira lição abalaria Diaspar tão profundamente como o próprio contato com Lys. Isso também abalaria Lys. Apesar de toda a diferença entre as duas culturas, haviam nascido das mesmas raízes — e haviam compartilhado as mesmas ilusões. Ambas seriam mais saudáveis quando voltassem a olhar, com calma e determinação, para o passado que haviam perdido. Capítulo XXIV O anfiteatro fora projetado para conter toda a população de Diaspar, e praticamente nenhum de seus dez milhões de lugares se achava desocupado. Contemplando a grande curva, de seu ponto de observação, bem no alto, Alvin lembrou-se irresistivelmente de Shalmirane. As duas crateras tinham a mesma forma, e quase o mesmo tamanho. No caso de se encher a cratera de Shalmirane com pessoas, a visão seria bastante semelhante à que se descortinava agora diante de si. Não obstante, havia uma diferença fundamental entre as duas, a grande depressão de Shalmirane existia, aquele anfiteatro, não. Nunca existira, era apenas um fantasma, um padrão de cargas elétricas que dormitava na memória do Computador Central até que houvesse necessidade de convocá-lo. Alvin sabia que na realidade ainda se encontrava em seu quarto, e que toda aquela multidão que parecia cercá-lo estava também em seus próprios quartos. Desde que não tentasse sair daquele ponto, a ilusão era perfeita. Podia acreditar que Diaspar fora abolida e que todos seus cidadãos haviam sido reunidos ali, naquela enorme cavidade. Nem uma só vez em mil anos a vida da cidade parará assim, para que toda sua população pudesse reunir-se em Assembléia Geral. Também em Lys, Alvin sabia, estava ocorrendo o equivalente àquela reunião. Haveria um encontro de mentes, mas talvez associado a ele haveria uma reunião de corpos, tão imaginaria quando aquela, mas igualmente real em aparência. Alvin reconheceu a maioria dos rostos a seu redor, até os limites da visão a olho nu. A quase dois quilômetros de distância, e a trezentos metros abaixo, estava a pequena arena sobre a qual se concentrava agora a atenção de todos. Era difícil acreditar que ele pudesse enxergar alguma coisa a tal distância, mas Alvin sabia que, quando o discurso começasse, ouviria e veria tudo que acontecesse tão bem como qualquer outra pessoa de Diaspar. A arena encheu-se de uma névoa que se transformou em Callitrax, o líder do grupo cuja tarefa tinha sido reconstruir o passado com base nas informações trazidas à Terra por Vanamonde. Esse empreendimento havia sido portentoso, quase impossível, e não apenas por causa dos intervalos de tempo envolvidos. Apenas uma vez, com a ajuda mental de Hilvar, fora dado a Alvin um vislumbre da mente do estranho ser que haviam descoberto — ou que os havia descoberto. Para Alvin, os pensamentos de Vanamonde eram tão desprovidos de sentido como mil vozes que gritassem em uníssono numa vasta caverna cheia de ecos. No entanto, os homens de Lys eram capazes de desemaranhá-los, gravá-los para serem analisados com vagar. Já corria o boato — ainda que Hilvar nem os negasse nem os confirmasse — que o que haviam descoberto era tão estranho que não tinha nenhuma semelhança com a história que toda a raça humana havia aceito durante um bilhão de anos. Callitrax começou a falar. Para Alvin, como para todos em Diaspar, a voz clara e precisa parecia provir de um ponto a poucos centímetros dele. Então, de um modo difícil de definir, da mesma forma que a geometria de um sonho desafia a lógica, embora não desperte surpresa na mente de quem sonha, Alvin estava de pé ao lado de Callitrax, ainda que ao mesmo tempo mantivesse seu lugar no anfiteatro. O paradoxo não o preocupou, e ele simplesmente o aceitou sem contestação, como aceitava todos os outros triunfos sobre o tempo e o espaço que a ciência lhe dera. Sucintamente, Callitrax repassou a história aceita da raça. Falou dos povos desconhecidos da Civilização do Alvorecer, que nada haviam deixado atrás de si senão um punhado de grandes nomes e as lendas esmaecidas do Império. Mesmo no começo, segundo rezava a história, o Homem ansiara pelas estrelas — e as havia finalmente atingido. Durante milhões de anos ampliara seu raio de ação pela Galáxia, dominando sistema após sistema. Fora então que, vindos do negrume que ficava além dos limites do Universo, os Invasores haviam atacado, arrancando do Homem tudo quanto ele alcançara. A retirada para o sistema solar fora amarga e devia ter durado várias eras. A própria Terra fora salva por um triz pelas batalhas fabulosas travadas em torno de Shalmirane. Quando tudo terminou, ao homem restou apenas suas memórias e o mundo em que havia nascido. Desde então, o resto fora uma longa decadência. Como suprema ironia, a raça que esperara governar o Universo tinha abandonado a maior parte de seu minúsculo mundo, dividindo-se nas duas culturas isoladas de Diaspar e Lys — oásis de vida num deserto que os cercava tão efetivamente como abismos entre as estrelas. Callitrax fez uma pausa. Para Alvin, como para os demais no imenso anfiteatro, parecia que o historiador estava olhando diretamente para ele, com olhos que haviam testemunhado coisas que ainda agora não podiam ser inteiramente aceitas como verdade. — Tanto basta — disse Callitrax — para as narrativas em que temos acreditado desde que começaram nossos registros. Devo-lhes dizer agora que são falsas… falsas em todos os seus detalhes… tão falsas que ainda agora não as conciliamos inteiramente com a verdade. Esperou para que o sentido de suas palavras causasse pleno efeito. Então, falando lenta e cuidadosamente, transmitiu a Lys e a Diaspar o conhecimento que fora extraído da mente de Vanamonde. Não era sequer verdade que o Homem houvesse alcançado as estrelas. A totalidade de seu pequeno império era limitada pelas órbitas de Plutão e Perséfone, já que o espaço interestelar mostrara ser uma barreira além de sua capacidade. Toda sua civilização estava reunida em torno do Sol, e ainda era muito jovem quando as estrelas o alcançaram. O impacto deve ter sido deletério. A despeito de seus fracassos, o Homem jamais duvidara de que um dia viesse a conquistar as profundezas do espaço. Acreditava também que, se o Universo encerrava seres iguais a ele, não ocultava outros que lhe fossem superiores. Agora, porém, sabia que ambas as crenças estavam erradas, e que lá fora, entre as estrelas, habitavam espíritos muito maiores do que o seu. Por muitos séculos, primeiramente nas naves de outras raças e depois em máquinas construídas com técnicas que com elas aprendera, o Homem explorou a Galáxia. Por toda parte encontrava culturas que podia compreender, mas que não conseguia igualar, encontrava também mentes que em breve teriam passado para um ponto além de sua compreensão. O choque foi tremendo, mas provou a tempera da raça. Mais triste e infinitamente mais sábio, o Homem retornara ao sistema solar, a fim de meditar a respeito do conhecimento que conquistara. Aceitou o desafio e lentamente elaborou um plano que trazia esperanças para o futuro. No passado, as ciências físicas haviam representado o maior interesse do Homem. Agora, voltava-se com disposição ainda maior para a genética e para o estudo da mente. A qualquer custo, ele se lançaria aos limites de sua evolução. A grande experiência consumira as energias da raça durante milhões de anos. Todo aquele esforço, todo aquele sacrifício e labuta tornaram-se apenas um punhado de palavras na narrativa de Callitrax. A empresa dera ao Homem suas maiores vitórias. Ele banira a doença, podia viver para sempre se desejasse, e ao dominar a telepatia subjugara o mais sutil de todos os poderes à sua vontade. Estava preparado para demandar novamente, confiando em seus próprios recursos, os grandes espaços da Galáxia. Encontraria em pé de igualdade as raças dos mundos dos quais fora afugentado no passado. E desempenharia todo seu papel na história do Universo. Tudo isso fez o Homem. Dessa época, talvez a mais grandiosa de toda a história, vinham as lendas do Império. Havia sido um Império de muitas raças, mas isso fora esquecido no drama, para não dizermos na tragédia, que marcara seu fim. O Império durara no mínimo um milhão de anos. Teria certamente conhecido crises, talvez até guerras, mas tudo isso perdeu-se no avanço de grandes raças que se encaminhavam para a maturidade. — Podemos orgulhar-nos — continuou Callitrax — do papel que nossos ancestrais representaram nessa história. Mesmo quando atingiram seu auge cultural, nada perderam de iniciativa. Estamos lidando antes com conjecturas do que com fatos comprovados, mas parece que as experiências que foram, ao mesmo tempo, a derrocada e a glória suprema do Império, foram inspiradas e dirigidas pelo Homem. — A filosofia que condicionava essas experiências parece ter sido a seguinte: o contacto com outras espécies mostrara ao Homem até que ponto a cosmovisão de uma raça dependia de seu corpo físico e dos órgãos sensoriais com que estava equipado. Argumentava-se que uma verdadeira imagem do Universo só poderia ser obtida, se é que isso era possível, por uma mente livre de tais limitações físicas — uma mentalidade pura, na verdade. Essa era uma concepção comum entre muitas das antigas religiões da Terra e parece estranho que uma idéia que não tinha qualquer origem racional terminasse por tornar-se uma das maiores metas da ciência. «Nunca, no universo natural, se encontrara uma inteligência desencarnada, mas o Império lançou-se à criação de uma. Já esquecemos, como muitas outras coisas, as técnicas e os conhecimentos que tornaram isso possível. Os cientistas do Império haviam dominado todas as forças da natureza, todos os segredos do tempo e do espaço. Como nossas mentes são o subproduto de uma disposição de células cerebrais, imensamente complexas, reunidas pela rede do sistema nervoso, da mesma forma eles se esforçaram por criar um cérebro cujos componentes não eram materiais, mas sim padrões gravados no próprio espaço. Tal cérebro, se podemos chamá-lo assim, funcionaria com forças elétricas, ou ainda maiores do que estas, e estaria completamente livre da tirania da matéria. Funcionaria com velocidade muito maior do que qualquer inteligência orgânica. Duraria enquanto houvesse um erg de energia no Universo, e limite algum poderia ser previsto para seus poderes. Uma vez criada, adquiriria potencialidades que nem mesmo seus construtores haviam previsto.» «Em grande parte como resultado da experiência acumulada em sua própria regeneração, o Homem sugeriu que a criação de tais seres devia ser tentada. Era o maior desafio já lançado à inteligência no Universo, e, depois de séculos de debate, foi aceita. Todas as raças da Galáxia juntaram-se para torná-la realidade.» «Mais de um milhão de anos separaria o sonho de sua concretização. Civilizações haveriam de nascer e morrer, o trabalho imemorial de mundos inteiros se perderia várias vezes, mas a meta jamais era esquecida. Algum dia poderemos vir a conhecer toda a história desse cometimento, o maior esforço de toda a história. Hoje, só sabemos que seu fim foi um desastre que quase destruiu a Galáxia.» «A mente de Vanamonde recusa-se a penetrar nesse período. Há uma estreita região do tempo que lhe está bloqueada, mas apenas, acreditamos, devido a seu próprio medo. No começo podemos ver o Império na pujança de sua glória, tenso com a expectativa de seu sucesso iminente. No fim, apenas alguns milhares de anos depois, o Império aparece despedaçado e as próprias estrelas se turvam, como que exauridas em seu poder. Sobre a Galáxia pende uma mortalha de medo, um medo que está ligado ao nome ‘A Mente Louca’.» «O que aconteceu nesse curto período não é difícil de imaginar. A mentalidade pura tinha sido criada, mas ou era insana ou, como parece mais provável, com base em outras fontes, era implacavelmente hostil à matéria. Durante séculos, assolou o Universo, até ser controlada por forças que não podemos imaginar quais fossem. A arma que o Império usou nesse momento extremo, qualquer que tenha sido, esgotou os recursos das estrelas, das lembranças desse conflito vêm algumas das lendas dos Invasores, ainda que nem todas elas. Mas sobre isso voltarei a falar mais tarde.» «A Mente Louca não podia ser destruída, pois era imortal. Foi encurralada para a periferia da Galáxia e ali aprisionada segundo meios que não compreendemos. Sua prisão era uma estranha estrela artificial chamada o Sol Negro, e ainda hoje ela lá se encontra. Quando o Sol Negro morrer, ela estará livre novamente. Não temos como dizer quando isso acontecerá.» Callitrax calou-se, como se perdido em seus próprios pensamentos, inteiramente esquecido de que os olhos de todo o mundo estavam postos nele. No longo silêncio, Alvin contemplou a multidão densa em torno dele, procurando ler os pensamentos dos presentes, face a essa revelação — e essa ameaça desconhecida que deveria a partir de então substituir o mito dos Invasores. Na maior parte, os rostos de seus conterrâneos estavam congelados numa máscara de incredulidade, ainda lutavam por rejeitar seu falso passado, e ainda não podiam aceitar a realidade mais estranha que se sobrepusera a ela. Callitrax recomeçou a falar num tom mais sereno, mais tranqüilo, descrevendo os últimos dias do Império. Aquela era a idade, compreendeu Alvin, enquanto ouvia a narrativa, em que ele gostaria de ter vivido. Nessa época houve aventura, bem como uma coragem soberba e intrépida — a coragem que era capaz de arrancar a vitória dos dentes do desastre. — Embora a Galáxia tivesse sido arrasada pela Mente Louca, os recursos do Império ainda eram enormes, e seu espírito não se abatera. Com uma coragem da qual só podemos nos admirar, a grande experiência foi encerrada, iniciando-se a busca da falha que engendrara a catástrofe. Havia agora, naturalmente, muitas pessoas que se opunham ao trabalho e previam novos desastres, mas foram vencidas. O projeto seguiu avante e, com o conhecimento adquirido tão amargamente, dessa vez foi coroado de êxito. «A nova raça ali nascida contava com um intelecto potencial que não podia sequer ser medido. Mas era inteiramente infantil, não sabemos se isso era esperado por seus criadores, mas parece provável que o sabiam inevitável. Milhões de anos seriam necessários para que ela alcançasse a maturidade, e nada podia ser feito para apressar o processo. Vanamonde foi a primeira dessas mentes, deve haver outras espalhadas pela Galáxia, mas acreditamos que foram criadas muito poucas, pois Vanamonde jamais encontrou qualquer outra de sua espécie.» «A criação de mentalidades puras foi a maior realização da civilização galáctica, o Homem desempenhou nela papel importante, e talvez predominante. Não fiz nenhuma referência à Terra propriamente dita porque sua história representa tão somente um fio minúsculo numa enorme tapeçaria. Uma vez que fora sempre despojado de seus espíritos mais aventureiros, nosso planeta tornara-se inevitavelmente muito conservador, e por fim opunha-se aos cientistas que haviam criado Vanamonde. Decerto não representou nenhum papel no ato final.» «A obra do Império estava agora terminada. Os homens do tempo olharam as estrelas que haviam destroçado no perigo desesperador e tomaram uma decisão. Deixariam o Universo para Vanamonde.» «Há aqui um mistério — um mistério que talvez nunca solucionemos, pois Vanamonde não nos pode ajudar. Tudo que sabemos é que o Império estabeleceu contacto com… alguma coisa… muito estranha e muito grande, situada muito além da curva do Cosmos, na outra extremidade do próprio espaço. Só podemos conjecturar quanto ao que fosse, mas seu chamado deve ter sido de extrema urgência, garantido por uma imensa promessa. Dentro de um período de tempo bastante curto, nossos ancestrais e as demais raças que lhes faziam companhia haviam partido para uma jornada que não podemos acompanhar. Os pensamentos de Vanamonde parecem estar limitados pelas fronteiras da Galáxia, mas através de sua mente já contemplamos os começos dessa grande e misteriosa aventura. Eis a imagem que reconstruímos, agora vamos todos voltar um bilhão de anos no passado…» Como pálido espectro de sua antiga glória, a Galáxia, roda em lenta rotação, pendia no nada. Por toda sua extensão se viam os enormes rasgões vazios provocados pela Mente Louca — feridas que nas eras do porvir as estrelas errantes haveriam de preencher. Mas jamais poderiam restaurar o esplendor desaparecido. O homem estava prestes a deixar seu Universo, tal como há muito deixara seu mundo. E não somente o Homem, mas também as mil outras raças que com ele haviam colaborado para construir o Império. Estavam reunidos, ali na fímbria da Galáxia, que interpunha toda sua espessura entre eles e a meta que não alcançariam antes de passadas eras inteiras. Haviam mobilizado uma frota diante da qual a imaginação estremecia. Suas naus capitâneas eram sóis, seus barcos menores, planetas. Todo um aglomerado globular, com todos seus sistemas solares e seus mundos fervilhantes, estava para ser lançado pelo infinito. A longa linha de fogo jorrou no centro mesmo do Universo, saltando de estrela em estrela. Num momento do tempo, mil sóis haviam morrido, alimentando com sua energia a forma monstruosa que cruzara de roldão o eixo da Galáxia e agora despenhava-se no abismo… — Assim, o Império deixou nosso Universo, a fim de encontrar seu destino alhures. Quando seus herdeiros, as mentalidades puras, houverem chegado à plena maioridade, talvez voltem. Mas esse dia certamente se acha muito distante. «Esta, em contornos breves e superficiais, é a história da civilização galáctica. Nossa própria história, que nos parece tão importante, não é mais do que um epílogo tardio e trivial, embora de tal forma complexo que ainda não pudemos conhecer seus detalhes. Parece que muitas das raças mais velhas, menos aventureiras, recusaram-se a partir, nossos ancestrais diretos estavam entre eles. Na maioria, essas raças entraram em decadência e acham-se agora extintas, embora algumas talvez ainda sobrevivam. A nossa própria mal escapou a esse mesmo destino. Durante os Séculos de Transição — que na realidade duraram milhões de anos — o conhecimento do passado se perdeu ou foi deliberadamente destruído. Essa última conjectura, ainda que aparentemente absurda, parece ser a mais provável. Durante muito tempo, o Homem mergulhou num barbarismo supersticioso, ainda que científico, durante o qual distorceu a história a fim de afastar da lembrança sua sensação de impotência e fracasso. As lendas dos Invasores são inteiramente falsas, conquanto a luta desesperada contra a Mente Louca tenha sem dúvida contribuído um pouco para sua criação. Nada prendia nossos ancestrais à Terra, exceto o mal-estar que lhes ia na alma.» «Quando fizemos essa descoberta, um problema em particular nos intrigou em Lys. A Batalha de Shalmirane jamais aconteceu… mas, ainda sim, Shalmirane existiu, e existe até hoje. Além disso, representa uma das maiores armas de destruição jamais construídas.» «Levamos algum tempo para resolver esse enigma, mas a resposta, quando descoberta, mostrou-se muito simples. Há muito tempo, nosso planeta possuía um gigantesco satélite, a Lua. Quando, no embate da guerra contínua entre as marés e a gravidade, a Lua finalmente começou a cair, tornou-se necessário destruí-la. Shalmirane foi construída para esse fim, e em torno de sua utilização teceram-se as lendas que todos nós conhecemos.» Callitrax sorriu, com certa tristeza. — São muitas as lendas como essas, em parte verdadeiras, em parte falsas, e há outros paradoxos em nosso passado que ainda não foram solucionados. Esse problema, entretanto, compete mais ao psicólogo que ao historiador. Não se pode confiar plenamente nem mesmo nos registros do Computador Central, que mostram sinais claros de deturpação do passado mais remoto. «Na Terra, apenas Diaspar e Lys sobreviveram ao período de decadência: Diaspar, graças à perfeição de suas máquinas, Lys, devido a seu isolamento parcial e aos inusitados poderes intelectuais de sua população. Mas ambas as culturas, mesmo quando conseguiram retornar a seu antigo nível, achavam-se distorcidas pelos temores e mitos que haviam herdado.» «Não há por que deixarmos que esses temores continuem a perseguir-nos. Não me cabe, como historiador, prever o futuro, mas apenas observar e interpretar o passado. A lição, porém, é bastante clara, temos vivido muito tempo sem contacto com a realidade, e agora chegou o momento de reconstruirmos nossas vidas.» Capítulo XXV Jeserac caminhava em silêncio pelas ruas de uma Diaspar que ele nunca vira. Tão diferente, com efeito, da cidade onde passara todas as suas vidas, que não a teria reconhecido. No entanto, sabia tratar-se de Diaspar, embora não parasse para perguntar como o sabia. As ruas eram mais estreitas, os edifícios mais baixos, e o Parque não existia mais, ou melhor, não existia ainda. Aquela era a Diaspar de antes da mudança, a Diaspar que estivera aberta ao mundo e ao Universo. O céu acima da cidade era de um azul-pálido, salpicado de nuvens esfiapadas, que lentamente se contorciam e giravam, levadas pelos ventos que sopravam sobre a face dessa Terra mais jovem. Através das nuvens, assim como além delas, passavam viajantes mais concretos. Quilômetros sobre a cidade, marcando o azul com suas tênues esteiras, iam e vinham as naves que ligavam Diaspar com o mundo. Jeserac contemplou por longo tempo o mistério e a maravilha do céu aberto, e por um momento o medo roçou sua alma. Sentia-se nu e desprotegido, consciente de que aquela pacífica cúpula azul sobre sua cabeça não era mais do que o mais fino dos envoltórios — e que mais além se estendia o Espaço, com todo seu mistério e suas ameaças. O medo não era bastante forte para paralisar-lhe a vontade. Em alguma parte de sua mente, Jeserac sabia que toda aquela experiência era um sonho, e um sonho não lhe podia fazer mal, até que acordasse novamente na cidade que conhecia. Estava caminhando para o coração de Diaspar, em direção ao ponto onde, em sua própria era, situava-se o túmulo de Yarlan Zey. Não havia túmulo algum ali, naquela cidade antiga, apenas um edifício baixo e circular, em que se entrava por vários portais em arco. Junto de um desses portais, um homem esperava por ele. Jeserac deveria ter ficado assombrado, mas agora já nada era capaz de surpreendê-lo. De alguma forma parecia certo e natural que ele devesse estar agora face a face com o homem que construíra Diaspar. — Creio que você me reconhece — disse Yarlan Zey. — Claro, já vi sua estátua mil vezes. Você é Yarlan Zey, e essa é Diaspar, tal como há um bilhão de anos. Sei que estou sonhando, e que nem eu nem você estamos realmente aqui. — Nesse caso, não precisa ficar alarmado com nada que venha a acontecer. Siga-me, e lembre-se de que nada poderá fazer-lhe mal, pois, quando quiser, poderá despertar em Diaspar… em seu próprio tempo. Obedientemente, Jeserac acompanhou Yarlan Zey, entrando no edifício. Seu espírito era uma esponja receptiva, incapaz de posicionamento crítico. Alguma lembrança, ou eco de lembrança, advertia-o de que alguma coisa iria acontecer em seguida, e ele sabia que no passado teria fugido daquilo, tomado de horror. Agora, entretanto, não sentia medo algum. Não só se sentia protegido pelo conhecimento de que aquela experiência não era real, como também a presença de Yarlan Zey parecia ser um talismã contra quaisquer perigos que pudessem confrontá-lo. Havia poucas pessoas descendo pelas vias deslizantes que conduziam às profundezas do edifício, e ninguém lhes fazia companhia quando daí a momentos se colocaram, em silêncio, do lado do cilindro longo e aerodinâmico que, sabia Jeserac, era capaz de tirá-lo da cidade, numa jornada que outrora haveria de dilacerar-lhe a mente. Quando seu guia apontou a porta aberta, ele não fez mais que uma pausa momentânea antes de entrar. — Viu? — disse Yarlan Zey, sorrindo. — Agora, acalme-se e lembre-se de que está em segurança… que nada pode fazer-lhe mal. Jeserac acreditava nele. Sentiu apenas ligeiro estremecimento quando a entrada do túnel deslizou silenciosamente em sua direção e a máquina em que ele viajava começou a ganhar velocidade, arrojando-se pelas profundezas da terra. Quaisquer que fossem seus temores, haviam sido esquecidos em sua ansiedade de conversar com aquela figura quase mítica do passado. — Não lhe parece estranho — começou Yarlan Zey — que, embora os céus estejam abertos para nós, tenhamos tentado soterrar-nos na Terra? É o começo da doença cujo fim você viu em sua época. A humanidade está tentando esconder-se, está assustada com aquilo que jaz lá fora, no espaço, e em breve terá fechado todas as portas que levam ao Universo. — Mas eu vi naves espaciais sobre Diaspar — disse Jeserac. — Não serão vistas por muito tempo ainda. Perdemos contacto com as estrelas, e em breve até os planetas estarão desertos. Levamos milhões de anos para realizar a jornada para o espaço, mas apenas alguns séculos para retornar às bases. E dentro de pouco tempo teremos abandonado quase toda a própria Terra. — Por que fizeram isso? — perguntou Jeserac. Ele conhecia a resposta, mas por algum motivo sentiu-se impelido a formular a pergunta. — Precisávamos de um refúgio onde nos abrigássemos de dois medos: o medo da Morte e o medo do Espaço. Éramos uma raça doente e não queríamos mais ter nada a ver com o Universo… e por isso fingimos que ele não existia. Já vimos o caos reinar entre as estrelas, e desejávamos paz e estabilidade. Por isso, Diaspar tinha de ser fechada, para que nada de novo jamais pudesse entrar na cidade. «Projetamos a cidade que você conhece e inventamos um falso passado para ocultar nossa covardia. Ah, não fomos os primeiros a fazer isso… mas fomos os primeiros a fazê-lo completamente. E redesenhamos o espírito humano, retirando-lhe a ambição e as paixões mais violentas, de modo que se satisfizesse com o mundo que agora possuía.» «Foi preciso mil anos para construir a cidade e todas as suas máquinas. A medida que cada um completava sua tarefa, eram lavadas as memórias de sua mente, implantando-se um padrão cuidadosamente planejado de falsas recordações, sendo sua identidade armazenada nos circuitos da cidade até que fosse necessário chamá-la de volta à existência.» «Assim, chegou finalmente o dia em que já não restava em Diaspar um único homem vivo. Só havia o Computador Central, obedecendo às ordens com que fora alimentado e controlando os bancos de memória em que estávamos dormindo. Não havia ninguém que tivesse qualquer contacto com o passado… Assim, nesse ponto, a história começou.» «Então, um a um, numa seqüência predeterminada, fomos convocados dos circuitos de memória e ganhamos carne outra vez. Como uma máquina recém-terminada e posta a funcionar pela primeira vez, Diaspar começou a desempenhar as tarefas para que fora projetada.» «No entanto, alguns nutriam dúvidas desde o começo. A eternidade era muito longa, percebíamos os riscos envolvidos em não deixar nenhuma válvula de escape e em tentar fechar-nos completamente do Universo. Não podíamos desafiar os desejos de nossa cultura, de modo que trabalhamos em segredo, impondo as modificações que supúnhamos necessárias.» «Os Únicos foram invenção nossa. Apareceriam a longos intervalos e, se as circunstâncias lhes permitissem, descobririam se haveria além de Diaspar qualquer coisa que valesse os riscos do contacto. Jamais imaginamos que seria preciso tanto tempo para que um deles tivesse êxito… nem imaginamos que esse êxito seria tão grande.» Apesar da suspensão das faculdades críticas, que constitui a própria essência de um sonho, Jeserac surpreendeu-se, fugazmente, com a maneira como Yarlan Zey era capaz de falar com tamanha segurança de coisas acontecidas um bilhão de anos após o tempo em que ele vivera. Era tudo muito confuso… e ele não sabia mais em que ponto do espaço ou do tempo se encontrava. A viagem estava chegando ao fim, as paredes do túnel já não ficavam para trás a uma velocidade tão estonteante. Yarlan Zey começou a falar com uma rapidez e uma autoridade que não havia demonstrado antes. — O passado terminou. Fizemos nosso trabalho para o bem ou para o mal, e isso não está mais em discussão. Quando você foi criado, Jeserac, foi-lhe inoculado aquele medo do mundo exterior, bem como aquela compulsão de permanecer dentro dos limites da cidade, medo e compulsão que você compartilha com todos em Diaspar. Você sabe agora que o medo era infundado, que ele lhe foi imposto artificialmente. Eu, Yarlan Zey, que lhe gerei esse medo, agora o liberto. Compreende? Com essas últimas palavras, a voz de Yarlan Zey alteou-se cada vez mais, até parecer reverberar através de todo o espaço. O túnel através do qual se precipitavam como que se esfumou e estremeceu ao redor de Jeserac, parecendo indicar que o sonho estava chegando ao fim. No entanto, enquanto a visão desaparecia, ele ainda escutava aquela voz imperiosa, tronitruando em seus ouvidos: — Você não tem mais medo, Jeserac. Você não tem mais medo. Jeserac esforçou-se para despertar, tal como um mergulhador sobe das profundezas oceânicas para a superfície do mar. Yarlan Zey desaparecera, houve, porém, um interregno estranho em que vozes que ele conhecia, mas não podia reconhecer, lhe falaram encorajadoramente e ele se sentiu apoiado em braços amigos. Então, como uma rápida aurora, tomou consciência da realidade. Abriu os olhos e viu Alvin, Hilvar e Gerane de pé a seu lado, com expressões de ansiedade. Mas não lhes prestou atenção, sua mente estava excessivamente ocupada em receber as maravilhas que se estendiam agora diante dele — o panorama de rios e florestas e a abóbada azul do céu aberto. Ele estava em Lys. E não sentia medo. Ninguém o perturbou naquele momento fora do tempo que se gravava para sempre em seu espírito. Por fim, quando se convenceu de que tudo aquilo era realmente real, voltou-se para os companheiros. — Obrigado, Gerane — disse. — Nunca acreditei que você tivesse sucesso. O psicólogo, demonstrando grande satisfação consigo mesmo, estava fazendo ajustes delicados numa pequena máquina que pairava no ar, a seu lado. — Você nos causou alguns momentos de ansiedade — admitiu. — Por duas ou três vezes começou a fazer perguntas que não podiam ser respondidas logicamente, e fiquei com medo de ter de quebrar a seqüência. — Suponhamos que Yarlan Zey não me houvesse convencido… o que você teria feito nesse caso? — Teríamos de mantê-lo inconsciente e o levaríamos de volta a Diaspar, onde você poderia ter despertado naturalmente, sem jamais saber que estivera em Lys. — E quanto àquela imagem de Yarlan Zey que você injetou em minha mente… até onde o que ele disse era verdade? — Quase tudo, creio. Eu estava muito mais interessado em que minha pequena Saga fosse convincente do que em que tivesse exatidão histórica, mas Callitrax examinou-a e não achou erro algum. Está de acordo com tudo que sabemos sobre Yarlan Zey e as origens de Diaspar. — Agora, então, podemos realmente abrir a cidade — disse Alvin. — Isso pode levar muito tempo, mas algum dia poderemos neutralizar esse medo, de modo que todos quantos queiram possam sair de Diaspar. — Levará muito tempo — respondeu Gerane secamente. — E não se esqueça de que Lys não é suficientemente grande para receber várias centenas de milhões de pessoas a mais, se todo seu povo resolver vir aqui. Não creio que isso seja provável, mas é possível. — Esse problema se resolverá por si mesmo — respondeu Alvin. — Lys pode ser pequena, mas o mundo é grande. Por que haveríamos de deixá-lo todo para o deserto? — Com que então, Alvin, você ainda está sonhando — disse Jeserac, com um sorriso. — Eu estava pensando o que você estaria disposto a fazer agora… Alvin não respondeu. Aquela era uma questão que se vinha impondo a ele, com insistência cada vez maior, nas últimas semanas. Ficou ensimesmado, caminhando atrás dos outros, enquanto desciam a colina em direção a Airlee. Seriam os séculos vindouros um longo período de tédio e ociosidade? A resposta estava em suas próprias mãos. Ele se havia desincumbido de seu destino. Agora, talvez pudesse começar a viver. Capítulo XXVI Há uma tristeza especial na realização, na percepção de que uma meta há muito buscada foi finalmente atingida e que a vida tem de ser agora encaminhada para outros fins. Alvin conheceu essa tristeza, enquanto vagueava sozinho pelas florestas e pelos campos de Lys. Nem mesmo Hilvar o acompanhava, pois há momentos em que um homem tem de ficar distante até mesmo de seus amigos mais íntimos. Alvin não errava sem destino, embora nunca soubesse qual aldeia seria sua próxima parada. Não estava à procura de lugar algum em particular, mas de um estado de espírito, de uma influência, de um estilo de vida. Diaspar não tinha agora nenhuma necessidade dele, o fermento que introduzira na cidade estava trabalhando rapidamente, e ele nada podia fazer para acelerar ou retardar as mudanças que estavam acontecendo. Aquela terra pacífica em que ele se encontrava também mudaria. Muitas vezes perguntava-se se cometera um erro, no implacável impulso de satisfazer sua própria curiosidade, ao abrir o velho caminho entre as duas culturas. No entanto, era decerto melhor que Lys conhecesse a verdade — que também ela, tal como Diaspar, fora fundada em parte sobre medos e falsidades. Às vezes ficava a imaginar que forma assumiria a nova sociedade. Acreditava que Diaspar devia fugir à prisão dos bancos de memória, restaurando outra vez o ciclo da vida e da morte. Sabia que Hilvar estava certo de que isso podia ser feito, ainda que suas propostas fossem demasiado técnicas para que Alvin as compreendesse. Talvez voltasse um tempo em que o amor em Diaspar não fosse completamente estéril. Seria isso, pensava Alvin, aquilo de que sempre sentira falta em Diaspar — aquilo que ele estava realmente procurando? Sabia agora que, quando satisfeitos o poder, a ambição e a curiosidade, restavam ainda os anelos do coração. Ninguém realmente vivera antes de haver realizado aquela síntese de amor e desejo com que ele jamais sonhara até chegar a Lys. Ele pisara os planetas dos Sete Sóis — o primeiro homem a fazê-lo em um bilhão de anos. No entanto, isso pouco lhe significava agora, às vezes imaginava-se disposto a trocar todos os seus feitos pelo choro de um recém-nascido, que ele soubesse ser carne de sua própria carne. Em Lys, poderia um dia encontrar aquilo que desejava. Havia em sua gente um calor e uma compreensão que, compreendia agora, faltavam em Diaspar. Mas antes de poder repousar, antes de poder encontrar a paz, havia ainda uma decisão a ser tomada. Em suas mãos caíra o poder. E ele ainda possuía esse poder. Era uma responsabilidade que ele procurava e aceitara com ardor, mas agora sabia que não poderia ter paz enquanto aquela responsabilidade lhe pesasse nos ombros. No entanto, abandoná-la seria trair uma confiança… Ele estava numa aldeia de pequeninos canais, à beira de um vasto lago, quando tomou a decisão. As casas coloridas, que pareciam flutuar, ancoradas, sobre as ondas suaves, formavam uma cena de beleza quase irreal. Havia ali vida, calor e conforto — tudo que ele sentira não existir em meio à grandiosidade inóspita dos Sete Sóis. Um dia a humanidade estaria novamente pronta para o espaço. Qual novo capítulo a humanidade escreveria entre as estrelas, Alvin não sabia. Isso não seria preocupação sua, seu futuro estava ali, na Terra. Contudo, realizaria mais um vôo antes de voltar as costas às estrelas. Quando Alvin conteve o ímpeto ascendente da nave, a cidade estava distante demais para ser reconhecida como obra humana, e já se percebia a curva do planeta. Daí a pouco puderam ver a linha do crepúsculo, a milhares de quilômetros de distância, em sua marcha interminável sobre o deserto. Acima e em torno deles estendiam-se as estrelas, ainda brilhantes, apesar de toda a glória que haviam perdido. Hilvar e Jeserac mantinham-se em silêncio, adivinhando, mas sem saberem com certeza, por que Alvin estava fazendo aquele vôo e por que lhes pedira que o acompanhassem. Nenhum deles se sentia disposto a falar, enquanto contemplavam o panorama desolado. O vazio oprimia a ambos, e Jeserac sentiu de repente fúria e desprezo pelos homens do passado, que haviam deixado a beleza da Terra morrer devido à sua própria negligência. Esperava que Alvin estivesse certo em seu sonho de que tudo isso pudesse ser modificado. Ainda existiam o poder e o conhecimento — restava apenas o desejo de voltar atrás nos séculos e fazer os oceanos agitarem-se de novo. A água ainda estava lá, bem oculta nas profundezas da Terra, ou, se necessário, poder-se-iam construir usinas de transmutação para produzi-la. Havia muito o que fazer nos anos à frente. Jeserac sabia que se encontrava entre duas épocas, em torno de si, podia sentir a pulsação da humanidade acelerar-se outra vez. Havia grandes problemas a enfrentar, mas Diaspar podia arrostá-los. A reconstrução do passado duraria séculos, mas quando estivesse terminada o Homem teria recuperado quase tudo quanto perdera. No entanto, poderia reconquistar tudo? Era difícil acreditar que a Galáxia viesse a ser recuperada — e, mesmo que se conseguisse isso, para que serviria? Alvin interrompeu seu devaneio, e Jeserac desviou os olhos da tela. — Eu queria que vocês vissem isso — disse Alvin calmamente. — Talvez nunca tenham outra oportunidade. — Você vai deixar a Terra? — Não. Nada quero com o espaço. Mesmo que outras civilizações ainda sobrevivam nesta Galáxia, duvido que valham o esforço de encontrá-las. Há muito o que fazer aqui. Sei agora que este é meu lar, e não vou abandoná-lo novamente. Alvin olhou para os grandes desertos, mas o que seus olhos viam eram as águas que estariam rolando sobre eles dentro de mil anos. O homem redescobrira seu mundo e o tornaria belo enquanto vivesse ali. E depois disso… — Não estamos prontos para sair rumo às estrelas, e muito tempo se passará antes de podermos enfrentar o desafio outra vez. Estive imaginando o que deveria fazer com esta nave. Se ela permanecer aqui na Terra, sempre estarei tentado a usá-la, e jamais terei paz de espírito. Entretanto, não posso perdê-la. Sinto que ela me foi confiada, e devo usá-la em benefício do mundo. «Por isso, decidi o seguinte. Vou mandá-la sair da Galáxia, entregue ao comando do robô, a fim de descobrir o que aconteceu a nossos ancestrais… e, se possível, o que pretendiam encontrar quando deixaram nosso Universo. Deve ter sido algo de maravilhoso para que abandonassem tantas coisas.» «O robô nunca se cansará, por mais que dure a viagem. Um dia nossos primos receberão minha mensagem, e saberão que estamos à espera deles aqui na Terra. Eles voltarão, e espero que já então sejamos merecedores deles, por maiores que se tenham tornado.» Alvin calou-se, fitando um futuro a que ele dera forma, mas que possivelmente nunca veria. Enquanto o Homem estivesse reconstruindo seu mundo, aquela nave estaria cruzando a escuridão entre as Galáxias, e dentro de milênios retornaria. Talvez ele ainda estivesse ali para reencontrá-la, mas mesmo que isso não ocorresse ele estava satisfeito. — Acho que você procede bem — disse Jeserac. Então, pela última vez, ressoou o eco de um medo antigo, atormentando-o. — Mas suponhamos — acrescentou — que a nave estabeleça contacto com alguma coisa que não desejamos encontrar… — Aos poucos, sua voz silenciou, enquanto reconhecia a fonte de sua ansiedade e sorria, banindo com esse sorriso o último fantasma dos Invasores. — Você se esquece — disse Alvin, levando-o mais a sério do que esperava — que em breve teremos Vanamonde para ajudar-nos. Não sabemos quais seus poderes, mas todos em Lys parecem crer que são potencialmente ilimitados. Não á isso, Hilvar? Hilvar não respondeu imediatamente. Era verdade que Vanamonde constituía o outro grande enigma, o ponto de interrogação que perpetuamente se interporia no caminho da humanidade, enquanto ela habitasse a Terra. Parecia seguro dizer que a evolução de Vanamonde rumo à consciência de si mesmo já fora acelerada por seu contacto com os filósofos de Lys. Tinham grandes esperanças de cooperação futura com a supermente infantil, acreditando poderem reduzir os tempos fantásticos que seu desenvolvimento natural exigiria. — Não tenho certeza — confessou Hilvar. — Por algum motivo, não acho que devamos esperar demais de Vanamonde. Podemos ajudá-lo agora, mas seremos apenas um breve incidente em sua vida total. Não creio que seu destino final tenha qualquer coisa a ver conosco. Alvin olhou-o com surpresa. — Por que pensa assim? — perguntou. — Não sei explicar — disse Hilvar. — Trata-se apenas de uma intuição. — Poderia ter acrescentado mais coisas, mas preferiu silenciar. Esses assuntos não eram passíveis de comunicação, e ainda que Alvin não fosse rir de seu sonho Hilvar não se dispunha a discuti-lo, nem mesmo com o amigo. Era algo mais que um sonho, ele tinha certeza disso, e era uma coisa que o perseguiria para sempre. De alguma forma, havia penetrado em sua mente durante aquele contacto indescritível e incompartilhável que tivera com Vanamonde. Porventura saberia o próprio Vanamonde qual deveria ser seu destino solitário? Algum dia, as energias do Sol Negro chegariam ao fim e ele libertaria seu prisioneiro. E então, ao fim do Universo, quando o próprio Tempo estivesse cambaleante, prestes a se deter, Vanamonde e a Mente Louca deveriam encontrar-se frente a frente, entre os cadáveres das estrelas. Esse conflito poderia fazer descer o pano sobre a própria Criação. No entanto, tratava-se de um conflito que nada tinha a ver com o Homem, e cujo resultado ele nunca viria a conhecer… — Vejam! — bradou Alvin subitamente. — Era isso que eu queria mostrar a vocês. Compreendem o que significa? A nave estava agora sobre o Pólo, e o planeta abaixo deles era um hemisfério perfeito. Contemplando a faixa de crepúsculo, Jeserac e Hilvar puderam ver, ao mesmo tempo, tanto a aurora como o pôr-do-sol dos dois lados do mundo. O simbolismo era tão perfeito, e de tal forma notável, que eles jamais esqueceriam aquele momento, por mais que vivessem. Neste universo, a noite caía, as sombras se alongavam em direção a um oriente que não conheceria outro alvorecer. Mas em outro lugar as estrelas ainda eram jovens e a luz da manhã refulgia, e, pelo caminho que já trilhara no passado, o Homem voltaria um dia a caminhar. Londres, setembro de 1954 S. S. Himalaya Sydney, março de 1955